Instituições de cultura ? século XVI

ORGANIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR: AS UNIVERSIDADES

DE COIMBRA E DE ÉVORA

Historiámos sumariamente num capítulo do volume anterior da presente História (IV, pp. 265-7) a trasladação da Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, e dissemos então que a mudança não foi acompanhada da reforma profunda da orgânica do ensino. Os estatutos conferidos por D. Manuel à Universidade de Lisboa, embora modificados parcialmente por legislação avulsa, persistiram como diploma fundamental. Fazia-se sentir, porém, a necessidade de reforma, e ou fosse pela iniciativa régia, ou por sugestão da Universidade, em 1556, meses antes da morte de D. João III, ocorrida em 1557, Baltasar de Faria veio expressamente a Coimbra, investido nas funções de visitador, ou inspetor como hoje diríamos, para organizar novos estatutos. Ouviu professores, coligiu elementos, e regressando a Lisboa três anos depois, em 1559, apresentou à Universidade uma reforma, denominada de Quartos Estatutos, os quais a Universidade aceitou e foram lei.

Nada sabemos hoje destes Estatutos, que se perderam sem deixar vestígios. A sua vigência, porém, não foi longa, porquanto em 1565 se apresentou em Coimbra, como visitador da Universidade, o bispo de Miranda D. António Pinheiro, de cuja sumária visita resultou outra reforma, conhecida pelos Quintos Estatutos.

Estes Estatutos não foram bem aceites pela Universidade, que contra eles reclamou, vendo em parte as suas objeções atendidas nas adições aos Estatutos que em 1567 foram apresentadas pelo reitor Aires da Silva.

O jugo filipino, na marcha da sua defesa e consolidação, não podia desinteressar-se da Escola que tradicionalmente formava o funcionalismo e os mentores da opinião; por isso, logo em 1583 se inicia outra reforma com o visitador-reformador Manuel de Quadros, coadjuvado por alguns lentes. Mais tarde o empreendimento passa às mãos do próprio vice-rei de Portugal, o cardeal-arquiduque Alberto, socorrido de adjuntos; depois para as do reitor D. Fernando Martins de Mascarenhas, que redigiu o projeto, auxiliado pelo lente de Prima e Leis, Dr. António Vaz Cabaço, o qual foi portador dele a Madrid. O projeto sofreu aqui alterações, sendo finalmente decretado e imposto à Universidade em 1592. Os estatutos desta reforma, conhecidos pelos Sextos Estatutos, foram impressos em 1593, em Coimbra; porém, à laboriosidade da sua redação não correspondeu vigência duradoira, porquanto em 1598 eram apresentados à Universidade os Sétimos Estatutos, nos quais se continha outra reforma.

A estes Estatutos propôs o visitador D. Francisco de Bragança, cuja visita teve início em 10 de Novembro de 1604, cento e sessenta e dois artigos de reforma, os quais, discutidos e examinados pelo claustro universitário em 1611 e revistos ainda em Madrid, foram decretados e aceites pela Universidade em 1612.

Os Sétimos Estatutos, modificados e acrescentados pelos 162 artigos, são conhecidos em geral pelos Oitavos Estatutos, cuja vigência foi larga, pois confirmados por D. João IV em 15 de Outubro de 1653 vigoraram até à monumental reforma pombalina de 1772.

O estudo exaustivo da organização universitária impunha a exposição analítica e o confronto de tão variados diplomas. Tal estudo, porém, conduzir-nos-ia a particularidades fatigantes para os leitores, e por isso trocá-lo-emos pela exposição sintética da reforma de 1612, na qual veio a terminar o laborioso esforço de tantos anos.

No período histórico de que nos ocupamos cumpre considerar sob aspetos diversos a organização universitária, designadamente o governo, administração, plano de estudos e graus.

Como organismo público a Universidade estava naturalmente dependente do poder central. O vínculo de dependência, acentuado, como vimos, pelos Estatutos manuelinos, manifesta-se de várias formas, as quais podemos enfeixar sem violência na existência do protetorado.

O protetor da Universidade era o rei. Ao monarca competia, exclusivamente, “fazer, tirar, acrescentar e declarar os estatutos; dispensar neles; eleger reitor, conservador, ouvidor e prorrogar-lhes o tempo; criar ofício ou cadeiras novas, confirmar as maiores levadas por oposição...; apresentar nas conezias magistrais e doutorais; jubilar os lentes, aposentar oficiais; licenças para despesas excessivas, escambos da fazenda, emprazamento de propriedades ou casais, lugares ou vilas, que passem de 40 mil réis de renda para o inquilino; reformação ou visitação da Universidade; nomeação das pessoas que tratem comigo os negócios dela assim na Corte onde eu estiver, como em Lisboa”.

Avocando a si todos estes atos da vida universitária, a designação de protetor significava apenas a sobrevivência de uma palavra sem sentido. Não era já, como outrora, a autoridade real amparo e patrocínio: era a única força donde dependia a vida universitária. É certo declarar-se expressamente que o rei não podia alterar os Estatutos e criar ou suprimir cadeiras sem o parecer e informação do reitor e do claustro pleno, e a todo o tempo se permitia ao claustro pleno submeter ao rei alvitres e apontamentos, porém, era a título de informe, porque só ao rei cabia a resolução final, ou confirmação.

Correspondendo às funções que atualmente são desempenhadas pela Direcção-Geral do Ensino Superior havia a Mesa da Consciência. Ao Presidente da Mesa, ou na sua falta, o vogal mais antigo, cumpria informar o rei acerca dos negócios da Universidade. O exercício deste cargo era permanente e tinha a sua sede em Lisboa; porém, os estatutos filipinos determinavam ainda que junto da Corte, onde quer que o rei estivesse, devia haver outro indivíduo que conhecesse destes negócios.

O governo efetivo da Universidade cabia ao reitor.

Sobre ele descansavam, normalmente, a autoridade do poder central, a fiscalização do cumprimento dos Estatutos, a representação e mandato das deliberações universitárias, nas matérias em que a Universidade gozava de iniciativa; e dizemos normalmente, porquanto acima do reitor podia haver, e houve por vezes, o visitador ou inspetor, e o reformador, cujas nomeações de carácter temporário convertiam a reitoria em dependência sua. Por isso, as suas atribuições eram largas, e dentre elas merecem destacar-se as seguintes:           

1.°) A convocação e direção dos conselhos e congregações, e a presidência dos atos e disputas, públicas ou secretas.

2.°) A informação, junto do Conselho, dos estudantes e quaisquer pessoas de crédito, acerca do modo “como leem os lentes, e se cumprem as obrigações destes Estatutos; e para este mesmo efeito está obrigado cada três meses do ano a visitar todas as lições das Escolas com o conselheiro teólogo mais antigo e com o mais antigo da Faculdade que visitar e saberá se leem em latim, ou alegam para pompa, se alegam modernos deixando os antigos, se induzem os textos, se passam, se dão postila, e os que a podem dar se a ordenam bem, se tiram o barrete aos ouvintes...”.               

3.°) Vigilância da vida dos estudantes, “se há alguns que vivam escandalosamente ou façam perturbação ou inquietações na Universidade ou Cidade, ou não cursam, nem têm livros, nem estudam; e os avisará e repreenderá, e não se emendando os excluirá das Escolas”. Cumpria-lhe ainda informar-se se em Coimbra viviam pessoas, não pertencentes à Universidade, de porte repreensível, e delas dar nota ao rei.  

4.°) Propor o que julgasse conveniente à Universidade.             

5.°) A jurisdição privativa sobre estudantes, doutores, lentes, etc., e nos casos crimes ocorridos na Universidade.       

6.0) Autorização de despesas “necessárias para bem da Universidade, contanto que não passem de 1000 réis cada mês e de 12 000 réis cada ano”.            

O reitor era nomeado pelo rei e escolhido dentre a lista tríplice eleita pelo claustro universitário.         

Em princípio, o reitor servia durante três anos, e consequentemente a eleição devia realizar-se trienalmente, no último dia de Julho; na realidade, porém, a regra não teve aplicação constante, por várias razões dentre as quais deve apontar-se a prorrogação do cargo, aliás permitida pelos Estatutos. O claustro eleitor não era formado pela totalidade dos mestres: constituíam-no apenas o reitor, vice-reitor, os lentes de Prima e Véspera das quatro Faculdades, quatro catedráticos eleitos dentre os catedráticos das cadeiras maiores das quatro Faculdades, um deputado não lente e um conselheiro. Limitado em número, o claustro também não era inteiramente livre na organização da lista tríplice, pois apenas podiam votar “fidalgos graduados, aprovados em virtude, letras e bom exemplo, ou pessoas constituídas em dignidade, ou grau de letras que recebessem na Universidade e não tinham raça alguma”. Os lentes em exercício não podiam ser reitores.

Quando vagava o cargo de reitor e não havia vice-reitor, cumpria ao lente teólogo mais antigo convocar o claustro para a eleição de vice-reitor. Este entrava imediatamente em exercício e procedia à eleição da lista tríplice para escolha do reitor.

Embora representante do poder central e suprema autoridade universitária, os poderes do reitor distavam de ser discricionários, porque as suas funções se exerciam fundamentalmente no sentido coordenador. É, que o governo efetivo da Universidade distribuía-se por quatro organismos: Conselho de Conselheiros; Conselho de Deputados; Claustro e Claustro Pleno.

O Conselho de Conselheiros reunia-se mensalmente e tinha por objeto os assuntos de “governo escolástico”, isto é, pedagógico, designadamente as cadeiras, lições, etc. Era a este Conselho que cumpria organizar anualmente os programas das cadeiras maiores e menores, e verificar se os lentes lhes davam execução. Eram, pois, os conselheiros uma espécie de inspetores, e como tal tinham por obrigação fazer trimestralmente a visita às Faculdades, podendo ouvir as lições dos lentes. Constituíam o Conselho de Conselheiros oito vogais eleitos anualmente: dois teólogos, dois canonistas, dois legistas, um médico e um mestre em Artes.

O Conselho de Deputados, constituído por nove membros, — quatro lentes, quatro não-lentes e um mestre em Artes —, eleitos anualmente, tinha como atribuição capital a administração da fazenda universitária. Correspondia, pois, a uma junta administrativa, cujas sessões se celebravam quinzenalmente.

Pela designação de Claustro entendia-se a reunião conjunta dos Conselhos de Conselheiros e Deputados aos quais podiam ser agregados os lentes de Prima e Véspera das quatro Faculdades. Convocado quando o reitor julgava necessário, pertencia ao Claustro a eleição para o provimento dos ofícios da Universidade e suas terras, assim como o exame dos negócios graves com o Estado ou com Roma.

Finalmente, o Claustro Pleno, no qual residia todo o poder e autoridade da Universidade, era formado pelos lentes das quatro Faculdades, e pelos conselheiros, deputados, chanceler, conservador e síndico. O reitor convocava-o apenas sobre assuntos de gravidade e monta, como conflitos com o reitor, proposições de reforma de Estatutos, obras dispendiosas, diferenças com a cidade, criação de cadeiras, recebimento das pessoas reais, etc.

Nos quatro Conselhos as deliberações tomavam-se por maioria de votos, os quais podiam ser enviados por escrito. Quando o reitor os não convocava nos prazos legais, os respetivos membros tinham o direito de lhe requerer a convocação, e não havendo justa causa de adiamento, de reclamar perante o rei.

A organização universitária era servida por um quadro de funcionários, no qual se reconhece sem dificuldade o vinco medieval, a despeito da centralização e das sucessivas reformas. Faziam parte do funcionalismo universitário:

1.°) O Cancelário, a quem cumpria conferir os graus de licenciado, doutor e mestre, os pontos para as lições dos exames privados, etc. Como dissemos em capítulo anterior, as funções de cancelário pertenciam ao Prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra; no seu impedimento era substituído pelo vigário do mesmo mosteiro, e no impedimento de ambos, por pessoa eleita pelo conselho de Deputados e Conselheiros.

2.°) Um Chanceler. Cargo inerente ao lente de Prima de Leis, tinha as atribuições seguintes: conhecer e processar as suspeições arguidas contra o conservador e demais oficiais da Universidade para despacho final do Conselho de Deputados, e selar as cartas de doutoramento, magistério e licenciatura.

3.°) Um Conservador, que exercia a jurisdição cível e criminal sobre as pessoas, lentes, estudantes e oficiais, que formavam a Universidade. Além deste ofício, imposto pela existência do foro académico, privativo da Universidade, cumpria-lhe ainda devassar anualmente os médicos e demais graduados, “que usam de suas leis contra forma dos Estatutos, e dos que se nomeiam ou assinam em maior grau do que têm”; entender nas taxas das casas alugadas aos lentes, estudantes e oficiais da Universidade; verificar os pesos e medidas dos vendedores na feira dos estudantes e inquirir se as regateiras e regatões açambarcavam, na área de duas léguas fora da cidade, os géneros que vinham à feira dos estudantes, podendo multar até dois mil réis sem apelação nem agravo.

O Conservador tinha 2 escrivães como auxiliares, e era escolhido e nomeado pelo rei dentre a lista dúplice que o reitor, ouvidos os lentes de Prima e Véspera e os Deputados lhe apresentava. Não podiam ser propostos lentes, nem naturais de Coimbra.

4.°) Um Secretário e Escrivão do Conselho, o qual devia ser “homem de verdade, de segredo, honrado, bom latino, sem raça alguma e que não tenha outro ofício”. Tinha por ofício a redação das atas dos Conselhos e Congregações, dar os traslados dos mandados e privilégios e escrever as cartas de todos os graduados, assentos de matrícula e certidões de cursos, e organizar os seguintes livros: Livro dos Cursos; Livro dos Graus; Livro dos Acordos; Livro do registo das provisões dos lentes e oficiais da Universidade; Livro da matrícula; Inventário da livraria pública das Escolas; e o Livro da receita do cartório da Universidade, no qual exararia as bulas e privilégios de Roma, as cartas e provisões reais, as escrituras, etc.

5.°) Um Mestre de Cerimónias, eleito pelo Conselho de Deputados, “pessoa grave, modesta e diligente”, “sempre em hábito de estudante, por mais decente e autorizado”. Cumpria-lhe ordenar que nas congregações, procissões, acompanhamentos, doutoramentos, atos públicos, exames privados, conselhos e quaisquer outros ajuntamentos da Universidade, a pé ou a cavalo, cada um ocupasse o seu lugar, segundo a respetiva precedência das Faculdades e Graus. Além destas funções, tão delicadas naquela época de formalismos e protocolos, exercidas hoje cumulativamente pelo secretário da Universidade, cumpria-lhe ainda ver e saber se os bedéis, guardas e outros oficiais menores serviam os deveres dos seus cargos, admoestando os não cumpridores.

6.°) Um Escrivão da Fazenda, eleito pelo Conselho de Deputados e Conselheiros. Tinha por ofício exarar as notas, escrituras e papéis relativas à fazenda da Universidade; passar quitações, etc. e organizar os seguintes livros: Dos despachos e acordos da fazenda; Das rendas, foros, tenças, pensões, etc.; Dos preços e quantias dos arrendamentos da Universidade; Das notas, contendo as escrituras dos aforamentos, emprazamentos, arrendamentos, procurações, etc.; Inventário dos móveis e finalmente um livro designado por Lembranças da Mesa da Fazenda, no qual sumariaria as dívidas em aberto, o expediente não resolvido, etc.

7.°) Um Escrivão da Receita e Despesa, ou tesoureiro.

 8.°) Um Escrivão dos Contos, ou escriturário.

9.°) Um Escrivão das Execuções das dívidas dos rendeiros e quaisquer outras pessoas.

10.) Um Ouvidor das Terras e Coutos da Universidade.

11.º) Dois Almotacés, que tinham por encargo almotaçar e repartir a carne e pescado à venda nos açougues da Universidade e superintender na feira dos estudantes, taxando os preços dos géneros.

12.°) Dois Taxadores, os quais, com dois cidadãos de Coimbra, eleitos pela Câmara, deviam trienalmente taxar os alugueres das casas arrendadas pelo reitor, lentes, estudantes e demais oficiais com direito a isso. Os privilegiados e estudantes gozavam da preferência do aluguer de todas as casas que andassem de renda em Coimbra e arrabaldes, salvo das sitas na Calçada e na Praça da cidade.

13.°) Um Síndico, o qual procurava nas demandas, feitos e causas respeitantes à Universidade, e servia de informador, sem voto.

14.°) Três Bedéis, um de Teologia, outro de Cânones e um terceiro acumulando o serviço das Faculdades de Medicina e Artes e os cursos de Latinidade. Apontavam as faltas dos lentes e oficiais, notificavam o serviço dos atos e verificavam se os estudantes, antes de fazerem os atos, tinham cursado o tempo determinado.

15.°) Um Meirinho. Era insígnia sua o uso de vara branca e tinha por obrigação percorrer de noite a cidade, com dez homens, armados de chuças ou partazanas, e policiar durante o dia o pátio e locais da Universidade. Além de polícia privativa, a Universidade tinha cadeia para os estudantes e oficiais.

Havia ainda outro meirinho chamado da ouvidoria das terras e coutos da Universidade, o qual servia o ouvidor das terras.

Cientificamente, o quadro de estudos distribuía-se pelas chamadas Faculdades Maiores, e pelas Escolas Menores.

Eram quatro as faculdades maiores: Teologia, Cânones, Leis e Medicina.

A Faculdade de Teologia, primeira nas precedências e na estimação das disciplinas, compreendia quatro cadeiras maiores, designadas pela nomenclatura das horas canónicas, isto é, de Prima, Véspera, Terça e Noa, e três catedrilhas, ou cadeiras menores, conhecidas pelo nome das matérias nelas ensinadas, as quais vagavam trienalmente. Cada cadeira tinha como objeto uma disciplina; assim, na cátedra de Prima lia-se o Mestre das Sentenças, de Pedro Lombardo; na de Véspera, a Suma Teológica, de São Tomás de Aquino; na de Terça, as Escrituras; na de Noa, Escoto, e nas catedrilhas, respetivamente Durando, Escrituras, e S. Tomás ou Gabriel Biel.

A Faculdade de Cânones tinha cinco cátedras e duas catedrilhas. As cátedras de Prima e Véspera versavam as Decretais, a de Terça o Decreto, a de Noa, o sexto das Decretais, e sem designação canónica, a cátedra de Clementincts. As duas catedrilhas ocupavam-se das Decretais e das Clementinas.

Na Faculdade de Leis, constituída por oito cadeiras, liam-se respetivamente: na Prima, o Esforçado (Digestum infortiatum); na de Véspera, o Digesto Novo; na de Terça, o Digesto Velho; na de Noa, três livros do Código, havendo ainda duas catedrilhas de Código e duas de Instituta.

A Faculdade de Medicina tinha seis cadeiras. A cadeira de Prima, que cabia ao mais antigo doutor da Faculdade, dilatava-se pelos seis anos de duração do curso. Nos três primeiros anos, o professor explicava o Tegne de Galeno e os livros De locis affectis; no quarto ano, os De morbo; no quinto, De differentiis febrium e no sexto, os três livros De simplicibus.

Na cadeira de Véspera o curso era de cinco anos. Nos dois primeiros anos liam-se os Aforismos, de Hipócrates; no terceiro, o Novo ad Almansorem, de Razi; e no quarto e quinto ano, os livros De ratione victus, Epidemias e Prognóstico.

A cadeira de Terça, ou de Avicena, durava também cinco anos; nos três primeiros liam-se a Fen prima quarti (das febres) e Fen quarta primi (da medicação em geral); nos dois últimos, Fen prima primi (do objeto da medicina, dos humores, dos membros, etc.), e a Fen secunda primi (das doenças, suas causas, etc.).

A cadeira de Noa, ou de Anatomia, desenvolvia-se também por cinco anos, durante os quais o professor tinha de explicar os dezassete livros de Galeno, De uso partium. Cumpria-lhe ainda dar duas lições de cirurgia por semana e “fazer anatomia de membros particulares seis vezes cada ano, e três gerais”.

As catedrilhas versavam outras obras de Galeno, e duravam cinco anos. Na primeira, liam-se durante dois anos De crisibus e De diebus criticis, e nos três imediatos, De naturalibus facultatibus, De pulsibus ad tirones e De inaequali intemperie. Na segunda catedrilha, em dois anos, De methodo medendi, De sanguinis missione, e nos três restantes, De temperamentis, Arte curativa ad Glauconem e Quos et quando purgare conveniat.

As aulas abriam em 2 de Outubro e terminavam no último dia de Julho; em todas as cadeiras as preleções eram diárias, durando uma hora, salvo as de Prima, hora e meia. Os proventos e obrigações dos mestres das catedrilhas não eram iguais aos das cadeiras maiores, mas para uns e para outros o ensino revestia o mesmo carácter livresco e a mesma orientação escolástica, isto é, a preleção obedecia sempre ao rígido esquema de formular a questão com base no texto da aula, indicar as soluções opostas e concluir pela aconselhável ou verdadeira. Ligando sempre o espírito à matéria de um livro imposto, o professor apenas se podia sentir pessoal e criador na interpretação ou resolução de dificuldades.

Por isso, este método, baseado na memória, desenvolveu, como consequência lógica, o gosto da argúcia e das disputas, no futuro estéreis para o progresso científico. Para atenuar os inconvenientes do método, os estudantes prescreviam o abuso da erudição; e assim recomendavam que “quando se lerem algumas matérias ou questões, em que há opiniões, estudem-nas em suas casas muito bem, em modo que vão nelas resolutos para as haverem de ler, e se poderem resolver na parte que lhes parecer verdadeira. E não curarão de gastar o tempo em referir muitas opiniões de Doutores; somente referirão duas ou três, as que mais principais lhes parecerem; e resolver-se-ão na que lhes parecer mais verdadeira, fundando-a e corroborando-a pelos melhores fundamentos e razões que houver por aquela parte que tomarem respondendo aos principais da parte contrária, procurando de dizer muitas conclusões e doutrinas em uma lição”.

Esta norma, orientadora do esquema das lições, as quais deviam ser ditas em latim, era extensiva a todos os professores das cadeiras maiores, e além dela, os de Cânones e Leis não podiam substituir a leitura continuada de textos e glosas pela de tratados.

Os Lentes das cadeiras menores de Leis, Cânones e Instituta podiam ler em Latim ou em Português, quando julgassem necessário, e cumpria-lhes orientar a preleção por forma que em primeiro lugar esclarecessem a letra do texto, com brevidade e clareza, e a seguir curassem do seu “entendimento verdadeiro”, isto é, lhe explicassem o sentido, sem grande cópia de autoridades, e por fim expusessem a glosa. Nestas cadeiras dominava o modo expositivo sobre o especulativo, isto é, os professores deviam fazer o ensino em extensão, e por isso não podiam dedicar a um só texto mais de quatro lições. Como lhes era vedado fornecer aos alunos postilas ou ditar as lições, a preleção devia ser dita “de maneira, que os ouvintes possam notar o que quiserem, não fazendo pausas, nem intervalos, nem os vagares que se costumam no dar da postila; porque desta maneira as ficam dando indiretamente, que é o que aqui se defende”. O não cumprimento destas obrigações determinava a aplicação de multas.

Em rigor, o catedrático não gozava o que hoje chamamos liberdade de cátedra. Os estatutos determinavam o fundo ou matéria de cada cadeira; e para que a Universidade tivesse conhecimento da forma como se ministrava o ensino, os professores das cadeiras maiores e os das cadeiras menores eram obrigados, respetivamente, a fazerem uma repetição anual e a exporem conclusões, isto é, a prelecionarem publicamente, durante uma hora, sobre pontos de sua escolha. À repetição seguia-se a argumentação, isto é, a crítica e defesa da preleção feita, servindo de arguentes, por turno, três professores da respetiva Faculdade e da afim.

O provimento das cadeiras fazia-se por oposição ou concurso público, podendo concorrer os bacharéis, doutores, licenciados e mestres da Faculdade onde ocorria a vaga. Se o candidato aprovado fosse apenas bacharel, cumpria-lhe obter os graus de licenciado e de doutor no prazo de um ano, sob pena de perda da cadeira.

O concurso não tinha provas práticas. Consistia na exposição de uma lição, escolhida pelo candidato dentre três pontos tirados à sorte, e na respetiva defesa contra as arguições, aliás obrigatórias, dos outros candidatos. Ao contrário dos nossos tempos, não se recrutava o júri nos professores da Faculdade, porque o direito de votar nos concursos das faculdades maiores era privilégio dos estudantes, que tivessem feito pelo menos um curso da faculdade em que ocorrera a vaga. Para obviar a peitas e subornos, o sistema implicava a constituição de uma numerosa assembleia; e com efeito, nos concursos de Teologia e Medicina, o número de votantes não podia ser inferior a cinquenta e nos das cadeiras menores de Matemática e Música tinham voto os lentes de Teologia e Medicina, os mestres e licenciados em Artes e os estudantes destas disciplinas que nelas tivessem feito pelo menos um curso.

Sigamos agora a carreira escolar do estudante desde a matrícula até à obtenção dos graus que a Universidade conferia: bacharel, doutor e licenciado.

A matrícula era a primeira obrigação.

Durante quinze dias após a chegada a Coimbra, desde o primeiro de Outubro ao Natal, inscrevia-se como escolar de uma faculdade, não podendo o secretário exarar o assento da matrícula sem que o estudante comparecesse pessoalmente, jurasse e trajasse hábito talar. Se o estudante pretendia matricular-se em Artes tinha previamente de ser examinado e aprovado por “duas pessoas doutas em latinidade”, as quais verificavam se ele sabia “o que basta para falar latim e compor”; se aspirava à matrícula no primeiro ano das faculdades maiores, carecia de exibir certidão probatória do grau de licenciado ou bacharel em Artes. Exarada a matrícula, frequentava o chamado ano de entrância, nos fins do qual, desde o princípio de Junho, lhe cumpria fazer a respetiva prova de curso ou frequência para poder matricular-se no segundo ano. A prova fazia-se mediante as declarações de dois condiscípulos, os quais juravam a assistência às aulas; porém, era defeso ao reitor da Universidade admitir provas de curso a quem não certificasse que se havia confessado e possuía os livros de texto das aulas. Os cursos duravam oito meses; bastava provar, porém, a frequência de seis meses, desde que os estudantes no ano imediato suprissem a falta dos dois meses.

As obrigações escolares durante os dois primeiros anos eram sensivelmente as mesmas para os estudantes das quatro faculdades, as quais como que se limitavam à assistência das aulas. As diferenças começavam no terceiro ano.

Os estudantes de Teologia iniciavam então uma longa série de provas, cujo carácter dominante é a argumentação dialética. Durante o terceiro ano realizavam-se os exercícios, isto é, a apresentação e defesa de três conclusões, afixadas à porta da aula com três dias de antecedência e que seis estudantes, notificados pelo bedel, deviam obrigatoriamente arguir. A falta do sustentante e dos arguentes determinava a aplicação de multas.

Após a frequência de quatro cursos o estudante teólogo estava em condições de prestar a primeira prova de aproveitamento. Chamava-se-lhe o ato de Tentativa. Realizava-se de Abril em diante, e consistia na apresentação de nove conclusões ou pontos diversos. A aprovação deste ato conferia o grau de bacharel corrente, o qual tinha apenas significação escolar e servia como de preliminar à sucessão de provas em cujo termo estava a formatura.

A seguir à Tentativa, no sexto ano, tinha lugar o ato chamado do Princípio da Bíblia, isto é, a defesa de nove conclusões “de matérias graves da Sagrada Escritura”. A este sucediam, no sétimo ano, o Primeiro Princípio do Mestre, o Segundo Princípio, e o Terceiro Princípio, os quais consistiam respetivamente na defesa de três conclusões extraídas do livro I, do livro II e do livro III das Sentenças de Pedro Lombardo.

A aprovação no ato do Terceiro Princípio conferia o grau de Bacharel formado em Teologia.

O candidato fazia protestação de fé, e lida pelo secretário da Universidade, em voz alta, a admoestação dos lentes para que votassem “com todo o segredo e inteireza, sem ódio, nem afeição”, procedia-se à votação, finda a qual, sendo aprobatória, o graduando solicitava o grau, que o presidente conferia “pondo-lhe um barrete na cabeça e metendo-lhe nas mãos o Mestre das Sentenças, dando-lhe poder para subir à cadeira”.

A formatura, porém, só ficava conclusa com o ato chamado do Quarto Princípio, que como os anteriores recaía sobre matérias do quarto livro das Sentenças.

Se o bacharel formado aspirava aos graus académicos de Licenciado e Doutor e à vida docente, volvia a ser estudante e a prestar novas provas.

Em primeiro lugar, cumpria-lhe após a formatura residir dois anos em Coimbra, chamados de residência, e assistir e argumentar em todos os atos que neste período se fizessem na Faculdade de Teologia, desde o de Tentativa ao da Formatura.

Nestes dois anos, tinha de fazer sucessivamente os atos chamados de Magna Ordinária, Augustiniana e Quodlibetos, e, na entrada do terceiro ano, o Exame Privado.

A Magna Ordinária era um ato de nove conclusões sobre “matéria grave, prática e de casos de consciência”.

À Magna Ordinária sucedia o ato de Augustiniana, assim chamado por ter lugar na aula do mosteiro de Santa Cruz, da ordem de Santo Agostinho. Versava sobre nove conclusões de “matérias dificultosas de Teologia”, e para se avaliar a feição dialética desta prova e resistência física que ela exigia bastará dizer que durava um dia inteiro: das seis da manhã, no Verão, e das sete e meia, no Inverno, até às onze horas, recomeçando às duas da tarde para terminar quando todos os bacharéis, obrigados a argumentar neste ato, dessem por findos os seus argumentos e réplicas.

O derradeiro ato público após a formatura chamava-se de Quodlibetos, isto é, teses livremente apresentadas pelo candidato sobre matérias especulativas e práticas.

As teses careciam da aprovação do lente de Prima e a sua defesa fazia-se, como a Augustiniana, no mosteiro de Santa Cruz.

O Exame Privado realizava-se no décimo ano da escolaridade. A sala da Universidade de Coimbra, onde tinham lugar, soturna, isolada, quase inquisitorial, é ainda hoje quadro evocador da gravidade deste ato. Por ele se abria o caminho do doutoramento e do magistério — circunstância suficiente para que a lei o cercasse com estreita rede de precauções. primeira vista parece corresponder às lições dos concursos universitários dos nossos dias; no íntimo, porém, era mais do que uma prova intelectual, porque no espírito dos Estatutos só mereciam a aprovação os candidatos idóneos moralmente.

O que a Universidade da Contra-Reforma foi um organismo ao serviço dos fins ético-religiosos do Estado, para os quais a idoneidade moral sobrelevava o saber, ou antes, a capacidade discursiva e dialética. Por isso, as congregações das Faculdades deviam proceder ao exame de vita e moribus et sufficientia dos candidatos, não podendo a Faculdade de Teologia deferir o Exame Privado a quem não provasse nove anos de frequência, ser filho legítimo de pais católicos, ter ordens sacras e trinta anos de idade. Para além destas condições, o conselho da Faculdade de Teologia podia ainda denegar ou adiar o ato aos candidatos desonestos, dissolutos, brigosos, escandalosos ou notoriamente insuficientes.

O Exame Privado prestava-se apenas perante a Faculdade, à porta fechada, sob a presidência do Cancelário; daí a razão do nome. Consistia em duas lições sobre dois pontos escolhidos dentre seis tirados à sorte, e a exposição, no conjunto, devia durar duas horas.

As lições sucediam a argumentação e as votações, chamada a primeira de penitência e a segunda de aprovação.

A votação de penitência não tem similar nos usos académicos dos nossos dias. Hoje o júri só pode votar uma das alternativas — a aprovação ou a exclusão; porém, nesta época havia uma terceira possibilidade — a repetição das provas com penitência, isto é, com o adiamento de um, dois ou mais anos, durante os quais o candidato se deveria preparar mais cuidadosamente. Esta votação envolvia, portanto, a apreciação da suficiência do candidato, e realizava-se colocando pontos numa lista branca, cada um dos quais significava um ano de adiamento. A esta votação seguia-se a de aprovação, por AA. e RR., e tanto uma como outra eram secretas.

Com tal sistema, havia portanto três formas de aprovação: com penitência, por maioria e por unanimidade. Qualquer destas espécies de aprovação conferia o grau de Licenciado, mas só a aprovação por unanimidade e sem penitência dava direito ao grau de Doutoramento ou Mestre.

A diferença de requisitos correspondiam naturalmente diferenças nas investiduras dos dois graus. A de Licenciado era simples; para os candidatos teólogos tinha lugar na igreja do mosteiro de Santa Cruz, e para os das outras Faculdades na capela da Universidade. Pelo contrário, a investidura no grau de Doutoramento era solene. Na Faculdade de Teologia, na véspera do dia marcado para a colação do grau, realizava-se o ato chamado de Vespérias, na essência uma espécie de apresentação à Universidade, embora nele houvesse o desenvolvimento oratório de três questões simbólicas: a primeira, exposta pelo presidente, chamava-se Expectatoria magistrorum nostrarum, e a segunda, desenvolvida por um orador e pelo vesperizando. As vespérias terminavam com a oração latina recitada pelo presidente, na qual dissertava obrigatoriamente sobre a autoridade do grau, a exortação do vesperizando e concluía pelas “costumadas graças” ou felicitações.

O desenvolvimento da terceira questão simbólica, que devia ser transformada em questão teológica, cabia a um lente, e tinha lugar no dia seguinte, isto é, durante o desenrolar, aparatoso e solene, da investidura do grau de Doutoramento, perante o ajuntamento de toda a Universidade. A colação deste grau tinha um cerimonial sensivelmente idêntico em todas as Faculdades, e muitos dos seus ritos subsistem ainda hoje na Universidade de Coimbra. O grau de doutor abria as portas do magistério, mediante o concurso ou oposição, como então se dizia, e cujo processo já expusemos.

Além das quatro faculdades maiores o quadro de estudos da Universidade comportava cursos menores, a saber: uma cadeira de Matemática, uma de Música, quatro de Artes (isto é, o curso da Filosofia de Aristóteles), uma de Hebreu, uma de Grego, cinco de Latim e duas de ler, escrever e contar.

No breve esquema que acabámos de traçar, detivemo-nos apenas na organização da Faculdade de Teologia, por poder considerar-se paradigma, embora as outras Faculdades possuam algumas notas características e diferenciais. A brevidade deste capítulo não consente o estudo de tais diferenças, mas não devemos concluí-lo sem examinar os resultados científicos dos métodos e práticas pedagógicas.

O século XVII é unanimemente considerado um século de decadência universitária entre nós, e como causas apontam-se em geral a decadência política da Nação, a excessiva influência eclesiástica e a competição dos jesuítas.

Sem contestar o alcance destas razões, parece-nos no entanto que a decadência resultou principalmente da própria organização universitária e dos métodos de ensino.

Em todas as faculdades universitárias foi lei a obrigatoriedade de textos, e daí a escravização do mestre ao já sabido e a impossibilidade do progresso científico; em todas se nota a regulamentação minuciosa dos deveres magistrais e a ausência de ensino prático, as quais obstaram à renovação pedagógica, e finalmente o mesmo gosto e cultivo das disputas, que trouxe consigo a esterilidade do ensino e o seu isolamento da cultura contemporânea. Pode dizer-se sem exagero que as faculdades maiores tinham carácter técnico, e quem as cursava ambicionava apenas a conquista dos graus académicos, isto é, o acesso à burocracia e ao exercício das profissões liberais. Para a grande maioria dos mestres a escolaridade foi um meio de vida, assim como para os estudantes uma quadra divertida, senão picaresca, e consequentemente as disciplinas que exigiam o exercício desinteressado da atividade intelectual nem tiveram ambiente, nem encontraram cultores.

O ensino das Artes, isto é, das disciplinas filosóficas e científicas, ligado obrigatoriamente ao comentário das obras de Aristóteles, num século em que a física de Galileu desterrara a do Estagirita, e Bacon e Descartes haviam lançado os fundamentos de outras metódicas, servia apenas de introdução aos cursos superiores, e nele se acusa, mais ainda que nas faculdades maiores, a imobilidade e o isolamento da cultura científica contemporânea. Com tais métodos de ensino e planos de estudos a originalidade tornou-se aberração e a renovação de ideias, heresia; e porque a vigência dos Estatutos filipino-joaninos se prolongou integralmente até à reforma pombalina, a vida universitária oferece o espetáculo da inércia e da carência de ideais científicos.

Embora privilegiada, a Universidade de Coimbra não deteve o monopólio do ensino superior da Teologia durante o período histórico, que nos ocupa. Partilhou-o com a Universidade de Évora.

Inácio de Loiola, ao fundar a Companhia de Jesus, consignara à nova ordem principalmente a missão apostólica, sendo como missionários que Diogo de Gouveia, o Velho, recomendou os jesuítas a D. João III e este os acolheu em Portugal. A breve prazo, porém, esta missão, como se fora género lógico, dividiu-se e desenvolveu-se nas espécies que ela virtualmente continha, à cabeça das quais, pelas próprias necessidades da Contra-Reforma, se irá contar a ação pedagógica.

Com efeito, em 1 de Dezembro de 1551, o fundador da Companhia recomendava ao Padre Simão Rodrigues que organizasse em Évora, Lisboa e outras cidades colégios para a educação da mocidade, e por virtude de novas instruções, os Padres Cipriano Soares e Manuel Álvares, aquele famoso pela Dialética, este mais ainda pela Gramática Latina, de universal aceitação, abandonaram Coimbra em fins de Janeiro de 1553 em direção de Lisboa. Pouco depois iniciavam o magistério em Santo Antão, e tão numerosa foi a frequência que houve necessidade de desdobrar a aula do Padre Manuel Álvares. Em Julho, a nova escola tinha já 330 alunos, cujo ensino seguia as diretivas do Colégio Romano, e graças ao apoio e auxílio de D. João III e da Câmara de Lisboa, foi definitivamente convertida em Colégio. A inauguração oficial do Colégio de Santo Antão teve lugar em 18 de Outubro de 1553, e desde então, animada pelo exemplo da capital, data a conquista da juventude escolar pela Companhia.

O Cardeal-Infante D. Henrique consegue de D. João III a cedência dos paços reais de Évora para instalar uma escola pública enquanto se não concluísse o edifício apropriado, e em 28 de Agosto de 1553 a Companhia inaugura solenemente o Colégio do Espírito Santo, de particular importância na história escolar de além-Tejo. O Colégio iniciara-se com três classes de letras e uma lição de casos de consciência (moral); porém, em 1556, ao pequeno quadro de estudos veio juntar-se o curso de Artes, e em 28 de Setembro de 1558 a Penitenciaria atendia as súplicas do Cardeal-Infante, apoiadas pela regente D. Catarina, erigindo em Évora uma Universidade. Na nova Universidade podiam professar-se todas as ciências, salvo Medicina, Direito Civil e a parte contenciosa do Direito Canónico; a sua direção e administração pertenceriam à Companhia; e, no conjunto, ela fruiria os privilégios e isenções da Universidade de Coimbra.

Estas e outras concessões estabelecidas nas Letras da Penitenciaria foram confirmadas pelo pontífice Paulo IV, por bula de 15 de Abril de 1559, e desde logo cuidou o Cardeal-Infante dos Estatutos da nova Universidade e da sua inauguração solene, a qual teve lugar no primeiro de Novembro de 1559.

O governo da Universidade repartia-se pelo reitor e pelo arcebispo de Évora, ficando sujeitos à jurisdição deste e do rei os estudantes e empregados universitários que não pertencessem à Companhia. Tal separação deu ensejo a que a Companhia aspirasse à reorganização da Universidade no sentido da autoridade do reitor não padecer limitações. Conseguiu-o em parte; porque, com o apoio do Cardeal-Infante, por bula de 28 de Maio de 1568, Pio V conferiu o governo da Universidade à Companhia de Jesus, retirando ao arcebispo de Évora e ao Rei a jurisdição e o direito de visitação, o qual ficou pertencendo ao Geral da Companhia, que o exercia por intermédio do Provincial, e de tempos a tempos por comissário nomeado diretamente em Roma.

O rei de Portugal e o arcebispo de Évora continuavam a ser os protetores natos da nova escola, porém a título honorífico, porque o governo efetivo pertencia ao reitor, assistido de três entidades — o Conselho de Conselheiros, os Decanos e os Deputados.

 

O superior ou reitor do Colégio do Espírito Santo, de Évora, eleito segundo as constituições da Companhia, era o reitor da Universidade, e ao exercício deste cargo competia o governo e administração do ensino, designadamente, dentre outras funções, a convocação dos conselhos e congregações, prova de cursos, visita das classes, e a devassa pelo menos uma vez por ano, dos estudantes e oficiais.

Como auxiliar do reitor havia o cancelário, cargo bem diverso do do seu homónimo de Coimbra. Em Évora, servia de “geral instrumento do Reitor para ordenar bem os estudos e endereçar as disputas nos atos públicos e para julgar da suficiência daqueles que se hão-de admitir aos atos e graus”, e além disto, conferir os graus de Licenciado, Doutor e Mestre. Como dissemos, assistiam ao reitor três entidades: o Conselho de Conselheiros, eleitos segundo as constituições da Companhia, quatro decanos, respetivamente de Humanidades, Artes, Teologia e Casos de Consciência, e os deputados, dois por cada uma destas disciplinas, escolhidos pelo reitor.

O reitor podia ouvi-los conjuntamente acerca dos assuntos gerais da Universidade, porém em regra seria individualmente que ouvia os decanos e deputados.

Ao serviço da Universidade existia um corpo de funcionários, com designações idênticas aos da Universidade de Coimbra, porém, por vezes, com atribuições diversas. Estavam neste caso, o cancelário, o secretário do conselho, sempre sacerdote da Companhia, e o conservador, cargo inerente ao corregedor de Évora, o qual exercia jurisdição cível e criminal apenas sobre os estudantes e oficiais leigos da Universidade, nas condições em que a exercia o conservador da Universidade de Coimbra.

Privativo da Universidade de Évora era o cargo de corretor, cujo ofício desempenhado por um secular era “castigar os estudantes, quando e como lhe disser o reitor, o prefeito dos estudos ou os mestres”; e com funções mais ou menos idênticas aos respetivos cargos em Coimbra, o bedel, o guarda das escolas, o meirinho, o almotacé, o escrivão das taxas, o taxador das casas dos estudantes, o síndico, ou procurador das demandas e feitos da Universidade, o escrivão da fazenda e os recebedores das rendas do Colégio e da Universidade.

Pelo que respeita aos estudantes, as prescrições legais não se afastavam muito dos Estatutos conimbricenses, sendo de notar particularmente que os prazos de matrícula eram menores em Évora e que todos os estudantes tinham a obrigação de ouvir missa diariamente, antes das lições, e de se confessarem pelo menos uma vez por ano.

Onde se acentuam as diferenças é na organização docente e no plano de estudos.

A Universidade de Évora compreendia apenas os seguintes estudos: um curso de primeiras letras (ler e escrever); sete classes de Latim e Retórica; o curso de Artes, regido por quatro lentes; três cátedras de Teologia; duas de S. Tomás de Aquino; uma de Sagrada Escritura e duas de Casos de Consciência.

O curso de primeiras letras constituía a instrução elementar ou primária, a qual neste século não foi objeto de providências especiais, e as classes de Latim, Retórica e Artes correspondiam ao que hoje chamamos o ensino secundário, cujo plano era idêntico ao de Coimbra, regido também, quase sempre, se não exclusivamente de facto, por padres da Companhia. Nestas classes, as lições duravam duas horas e meia de manhã, e outro tanto tempo à tarde, salvo aos sábados cujas lições da tarde não iam além das duas horas; as lições de Prima de Teologia, duravam hora e meia, e as das outras cátedras maiores, urna hora. Para a matrícula nestas cátedras era condição indispensável, como em Coimbra, que os respetivos candidatos fossem licenciados, ou pelo menos, bacharéis, em Artes. O curso de Artes, na organização escolar do tempo, correspondia portanto ao diploma atual do curso dos liceus. Vejamos em que consistia.

Para a matrícula no curso de Artes exigia-se a aprovação no exame de Latinidade, o qual se prestava após a frequência das classes de Latim e de Retórica; de sorte que pode considerar-se todo o curso repartido em duas secções a primeira, Latinidade, correspondente ao atual curso geral dos liceus; e a segunda, Artes, correspondente ao curso complementar.

O curso de Artes durava três anos e meio. No primeiro ano, estudava-se a Dialética; no segundo a Lógica, e o que o tempo consentisse para o ensino da Física e da Ética; no terceiro a Metafísica e os Parva Naturalia, e nos seis meses do 4.° ano o De anima. Todo o curso, pois, tinha por base a aprendizagem da Filosofia de Aristóteles, e é esta circunstância que explica certos aspetos e certas carências da cultura nacional até às reformas pombalinas. A Filosofia de Aristóteles, verdadeira enciclopédia do saber antigo, não se ensinava, porém, com o critério histórico-crítico, mas dialeticamente.

Semanalmente, às terças, quintas e sábados, realizavam-se as disputas, nas quais argumentavam os mestres ou os estudantes, obrigação a que nenhum podia esquivar-se, e segundo um plano pormenorizadamente estabelecido.

A meio do curso, exibida a cédula do reitor probatória da frequência durante dois anos e meio, de nove meses cada um, tendo estudado a Lógica e cinco livros da Física, o estudante estava apto a requerer exame de bacharel. Este consistia num interrogatório, em que o “primeiro examinador lhe perguntará um capítulo que melhor lhe parecer de Porfírio (a Isagoge, ou introdução às Categorias, de Aristóteles), o qual capítulo o estudante resumirá, e sobre o conteúdo nele lhe moverá urna questão ou questões contra as respostas das quais arguirá o examinador; o segundo examinador pelo mesmo modo perguntará e argumentará sobre algum capítulo dos predicamentos (1.° livro do Organon de Aristóteles), e o terceiro examinador sobre o livro de interpretatione (2.° livro do Organon), e por esta ordem o primeiro examinador tornará a perguntar dos priores (1ºs Analíticos) de Aristóteles, o segundo dos posteriores (2.°s Analíticos) e o terceiro nos tópicos (4.° livro do Organon), e o primeiro acabará a Lógica com os Elencos (5.° livro do Organon). E acabado isto cada examinador fará um argumento contra o problema dos Físicos, e acerca dele não argumentará com tanto rigor como na Lógica, e nisto se acabará o exame. E logo em acabando, tomará a pedra o segundo; e dará a cédula ao segundo examinador, que o começará a examinar, e por esta ordem procederão até que se acabem os exames, gastando-se um dia inteiro em cada um dos primeiros cinco examinados e daí por diante examinar-se-ão dois cada dia e mais não, tirando o último com o qual também se gastará o dia inteiro”.

Ao bacharelato seguia-se a licenciatura, no quarto ano. Os candidatos à licenciatura, já bacharéis, prestavam uma prova prévia chamada das respostas, a qual se desenvolvia em duas partes: respostas maiores, assim chamada porque sustentavam nove conclusões, num ambiente de certa solenidade, e as respostas menores na qual defendiam apenas três conclusões, argumentadas por outros candidatos.

Aos atos das respostas sucedia-se o exame de licenciatura, propriamente dito, o qual versava sobre todo o curso da Filosofia de Aristóteles, insistindo os arguentes e examinadores mais na Filosofia Natural e na Metafísica, que na Lógica.

Prestadas as provas, procedia-se à votação por escrutínio secreto, podendo o examinando ser aprovado, reprovado ou penitenciado. O grau conferia-se solenemente perante o ajuntamento pleno da Universidade, e quinze dias depois podia proceder-se à colação do grau de Mestre em Artes, conferido individualmente, e não ao conjunto dos aprovados, como o grau de Licenciado.

O grau de mestre em Artes era essencialmente uma formalidade para os melhores estudantes, embora o candidato tivesse de sustentar de maneira breve, uma ou várias conclusões. Só podia conferir-se a quem tivesse 18 anos.

Os graus de licenciado e bacharel em Artes davam acesso à matrícula na Faculdade de Teologia, salvo para os religiosos, que estavam dispensados destes títulos desde que houvessem frequentado todo o curso de Artes. O plano de estudos e a marcha das provas e atos da Faculdade de Teologia eram semelhantes aos da Faculdade de Coimbra, por forma que, como os seus colegas coimbrões, os estudantes teólogos eborenses, até à solenidade aparatosa do doutoramento, faziam os atos de Tentativa, Primeiro Princípio, Segundo Princípio, Terceiro Princípio (Formatura), Princípio da Bíblia, Magna Ordinária, Henriquiana — assim chamado em louvor do Cardeal-Infante D. Henrique, mas correspondente à Augustiniana Quodlibetos, Exame Privado (Licenciatura) e Vespérias.

Se na organização e no plano a Faculdade Teológica de Évora foi similar da de Coimbra, o mesmo se não pode dizer do ensino.

Nos primeiros decénios da sua existência, graças sobretudo ao magistério de Luís de Molina, cuja teoria sobre a Concórdia do Livre-arbítrio com os dons da Graça gozou de imensa repercussão, a Universidade de Évora conquistou uma posição singular entre as escolas de Teologia. Esta foi a sua glória suprema, porém, de fulgor rápido. Nos séculos XVII e XVIII, mais acentuadamente ainda que na rival de Coimbra, o ensino decaiu na repetição e no formalismo, e embora desconheçamos a origem social da maioria dos seus estudantes, é legítimo pensar que a frequentou sobretudo a juventude bem-nascida, cobiçosa de uns títulos académicos, prodigamente dispensados, cuja fácil conquista se obtinha mais com a aparência do saber, que com o saber.


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