Capítulo I ? Discussão de António Gouveia com Pedro Hispano

I. António de Gouveia (n. em Beja em 1505 e † em Turim em 5 de Março de 1566), «um dos raros espíritos que constituíram o eterno ornamento da Renascença», «cavaleiro andante da eloquência e da erudição», como diz Quicherat, duma família ilustre pelo sangue e mais ainda pela inteligência, fez a sua educação literária na «florescente» Paris, no colégio de Santa Bárbara, para onde veio em 1527, talvez a convite de seu tio materno Diogo de Gouveia, que então o dirigia, talvez para seguir o exemplo de seus irmãos mais velhos, Marcial, André e Diogo (?), que muito provavelmente a esta data já eram professores de artes. Doutorado em Artes em 1532, inicia o magistério em Santa Bárbara, colégio que durante muito tempo foi quase exclusivamente dirigido por portugueses, da sua família, e que abrigava uma grande colónia de moços escolares na sua maioria subsidiados por D. João III, chegando Diogo de Gouveia, o Antigo, a pensar, senão a propor a D. Manuel, a sua compra; mas logo, em 1534, na companhia de Buchanan, Nicolau de Grouchy, seus amigos, Diogo de Teive e Guilherme Guerente, parte para o colégio de Guiana (Guyenne) em Bordéus, a instâncias de seu irmão André que o ia dirigir.

Começava então a esboçar-se o movimento de reforma no estudo do direito romano pela crítica da glosa. António de Gouveia, como humanista, pressentindo nesse estudo alguma coisa de novo, de inédito, para a conquista do homem e para a conceção geral da vida, decide estudá-lo — em 1537 — nas Universidades de Tolosa e Avinhão. Era então um simples estudante; mas mais tarde, quando o seu nome se prestigia pela erudição, pela clareza e subtileza dos seus comentários, pela forma como iluminava a rigidez e secura dos textos com o retoricismo de Cícero, Cujácio admira-o e não receia assinalar-lhe o primeiro lugar entre os novos romanistas.
 
No ano seguinte, em 1538, porventura devido aos seus amores com Catarina Dufour (?), filha de Pedro Dufour, presidente do Parlamento de Toulouse, e que desposou em 1549, vai para Lyon, onde Sebastien Griphe, o Aldo Manúcio da Renascença francesa, lhe imprime sucessivamente, os Epigramas e Cartas, a edição de Virgílio e Terêncio, e a tradução e comentário da Isagoge de Porfírio. Lá, trava conhecimento com o jurisconsulto Emilio Ferreti, com quem cultiva o Direito, dedicando-lhe uma profunda amizade, se não gratidão, a ponto de o considerar como seu segundo pai.          
 
De regresso a Santa-Bárbara, em fins de 1541, ou princípios de 1542, de novo ensina artes. A ânsia da novidade, o desejo de descobrir o homem através da herança clássica, o que era de facto uma criação, a preocupação enciclopédica, fez de Gouveia, como de quase todos os humanistas, um inconstante. A paixão que agora o domina é o conhecimento da filosofia, como uns anos atrás o rígido, cesáreo direito romano. Este período marca na sua vida pela fecundidade do trabalho.
 
Edita e comenta Terêncio, a Oração contra Vatinio de Cícero  e, muito provavelmente, em satisfação dos seus estudos filosóficos, publica a Critica Logices pars, certans cum Ciceronis Topicis, o De Conclusionibus, e um comentário e tradução do Organon de Aristóteles.
 
Aristóteles é então o seu autor predileto; e compreende-se que o fosse. Espírito culto, absolutamente integrado nas correntes espirituais do seu tempo, António de Gouveia procuraria surpreender o verdadeiro pensamento de Aristóteles, tanto mais que não lhe faltavam incentivos, desde a sugestão do meio cultural de Santa Bárbara, melhor direi, a exortação a esse estudo, até à influência indireta de Cícero, que Gouveia estudou profundamente e que no seu ecletismo de romano não poucas referências faz ao Estagirita, designadamente nos Tópicos, que Gouveia comentou.
 
Quando escolar (1527-1532?) aprendeu a filosofia, como ele próprio diz, com Pelágio Rodrigo, e mais tarde (1534-1537), durante a sua permanência no colégio de Guiana, não lhe teriam sido estranhas as afamadas lições de dialética de Nicolau de Grouchy, resumidas em Coimbra, quando professor do Colégio das Artes, nas Praeceptiones dialecticae (publicadas em Paris em 1552), que Elie Vinet considerava como uma obra-prima. Aliando a esta preparação um profundo conhecimento do grego, Gouveia podia, como poucos professores da Universidade, estudar Aristóteles no original, tanto mais que ignorava, se é que como humanista não desprezava, as interpretações da Escola que, como ele próprio confessa, deturpavam a filosofia, tornando-a vã e palavrosa.
 
II. Foi neste estado de espírito que em Setembro de 1543 Ramo o surpreendeu com as Aristotelicae animadversiones. A ignorância e as «calúnia» de Ramo, os perniciosos efeitos que a sua doutrina exercia pela subversão do princípio de autoridade, não podiam deixar de provocar no aristotélico, que não escolástico, António de Gouveia, uma reação. De facto assim foi. Em 27 de Novembro — dois ou três meses incompletos depois do aparecimento das Aristotelicae animadversiones, Gouveia publica a sua Pro Aristotele Responsio adversus Petri Rami calumnias, dedicando-a a Spifame (Iacobus Spifamius), chanceler da Universidade e conselheiro real. A Universidade recebe-a com alvoroço e o prestígio que alcança é tão grande que a Faculdade de Artes votou por aclamação que a Pro Aristotele Responsio fosse impressa à sua custa, espalhando-se por todas as Universidades a glória do seu autor. Se esta era a forma como Ramo devia ser combatido, todavia, tal era a exaltação dos espíritos, foi insuficiente para os acalmar. Do Chatelêt a questão, em apelação, é suscitada no parlamento; mas, ou porque os inimigos de Ramo receando uma decisão como de justiça a levassem ao conhecimento do rei por intermédio do seu leitor e conselheiro Duchatel, amigo de Galland, ou porque o próprio rei, espontaneamente, a procurasse resolver («nous les eussions évoquez à nous pour sommairement et promptement y pourvoir»), o certo é que por cartas régias foi decretado que entre Ramo e Gouveia se travasse uma discussão sobre o valor das Aristotelicae animadversiones. Dentre tantos opositores de Ramo, a bem dizer, toda a Universidade, esta nomeação, sendo uma preferência, provoca naturalmente reparos. Vejamos o próprio texto da carta régia:
 
«... advertis du trouble advenu à nostre chère et aimée l´Université de Paris, à cause de deux livres faits par Maistre Pierre Ramus, intitulez l'un Dialecticx institutiones, et l'autre Aristotelicae animadversiones, et des procez et différents, qui estoient pendans en nostre cour de Parlement audit lieu, entre elle et ledit Ramus, pour raison desdits livres, nous les eussions évoquez à nous pour sommairement et promptement y pourvoir, et a cette fin eussions ordonné que Maistre Antoine de Govéa, qui s'estoi présenté á impugner et débattre lesdits livres, et ledit Ramus qui les sustenait et défendoit...». Ter-se-ia oferecido espontaneamente Gouveia ao ter conhecimento da decisão do rei, ou pelo contrário seria o próprio rei que, provavelmente instruído por Duchatel da publicação da Pro Aristotele Responsio, o nomeasse, embora para isso o tivesse ouvido? O texto, na sua imprecisão, justifica as duas interpretações e por isso, à míngua de factos, julgamos preferível deixar em suspenso este assunto. Como quer que seja, porém, um facto ressalta, qualquer que seja a interpretação que se julgue mais verosímil: é a preferência dada a Gouveia sobre Joaquim Périon, que, embora depois de Gouveia, mas antes desta discussão, já tinha publicado os seus Discursos contra Pedro Ramo.
 
Não se explicará porventura esta nomeação por uma razão de competência?
 
Quer-nos parecer que sim; mas não nos antecipemos, porque esperamos no decurso do nosso estudo elucidar este ponto. Para dar cumprimento a esta decisão, o rei ordenou na mesma carta, que me parece ter sido datada de Fevereiro de 1544, porque a sentença dos árbitros é de 1 de Março de 1544 e a discussão, como em breve veremos, não foi longa, que se constituísse uma comissão de cinco membros, dois à escolha de cada parte, e um quinto de nomeação régia («— éliroient et nommeroient de chacun costé deux bons et notables personnages, connoissans les langues grecque et latine, et expérimentez en ia philosophie, et que nous élirions et nommerions un cinquiesme») para analisar as Institutiones dialecticae e Aristotelicae animadversiones. Ramo e Gouveia nas suas discussões («... pour visiter lesdits livres, ouïr lesdits de Govéa e Ramus en leur advis»).
 
António de Gouveia nomeou Pierre Danes (1497-1577), professor de grego no Colégio de França, tendo discípulos como Amyot, Jean Dorat, etc., embaixador francês no Concílio de Trento, e que estudara profundamente a obra do Estagirita  e Francisco Vimercato (em latim Vicomercatus, †1570), italiano, de Milão, professor em Pavia e Bolonha e em 1540 agregado à Faculdade de Artes e mais tarde ao Colégio de França como professor de filosofia grega e latina, comentador de Aristóteles e que os Conimbricenses, como afirma Renan, consideravam como averroísta.
 
Ramo escolheu os seus amigos Jean Quintin, professor de Direito Canónico  («docteur en Decret», dizem as cartas régias) e Jean de Beaumont, médico; o árbitro nomeado pelo rei foi Jean de Salignac, doutor em Teologia. Constituída assim a comissão, no dia aprazado compareceram Gouveia e Ramo, discutindo-se secretamente, o que provocou protestos por parte dos ramistas. Não era, sem dúvida, esta a melhor forma de realizar um ato desta natureza; mas a prudência aconselhava-a porque, se tivesse sido pública, com a efervescência que dominava em todos os espíritos, teria sido impossível, como diz Quicherat, impedir as interrupções, senão as vias de facto. Como decorreu este pleito tão semelhante ao que Boileau ridicularizou no Arrêt Burlesque? Qual a sua marcha, os seus incidentes? É difícil, senão impossível, responder, tanto mais que os testemunhos rareiam e são em grande parte tendenciosos.
 
As fontes primárias, a que todos os biógrafos de Ramo e os raros de Gouveia têm recorrido, são as Cartas Régias de confirmação da sentença dos árbitros que condenou Ramo, deferindo a vitória a António de Gouveia, e a narração que Omar Talon (Audomarus Talanis), o amigo dedicado e entusiasta defensor das ideias de Ramo, faz na Academia.        
 
III. Pelas Cartas Régias de 10 de Maio de 1544, onde vagamente se história, num laconismo que um ou outro ponto chega a ser omissão, este curioso e significativo debate, o processo foi regular e a condenação de Ramo uma solução lógica. Com efeito, convocada a reunião, Ramo e Gouveia discutiram as proposições das Aristotelicae animadversiones; entretanto, Ramo apelava para o rei duma decisão dos juízes — decisão que as cartas régias não esclarecem e que tudo nos leva a crer que fosse a anulação da matéria discutida durante os três primeiros dias e a que se refere, como veremos, Omar Talon. Francisco I decidiu-a, ordenando ao preboste de Paris que a discussão recomeçasse, declarando que não permitia novos agravos ou apelações.
 
Renovado o debate, Ramo, sentindo-se incapaz de defender os seus livros, deu por finda a discussão, declarando submetê-los à censura dos árbitros. Perante esta desistência, Pierre Danes, Francisco Vimercato e Jean de Salignac, propuseram sucessivamente a Jean de Beaumont e a Jean Quintin o patrocínio de Ramo, o que recusaram, convidando-o a nomear novos árbitros, ao que Ramo não acedeu. Em face destas sucessivas desistências que significavam ou uma confissão tácita de erro ou um alheamento da questão, os juízes Pierre Danes, Francisco Vimercato e Jean de Salignac, obrigados a julgar, condenaram Ramo, deferindo portanto a vitória a António de Gouveia.
 
Foi esta sentença, em que Ramo era considerado «temerário, arrogante e impudente» por ter censurado e reprovado o train e arte da lógica, universalmente aceite e que ele ignorava, além de censurar Aristóteles nas Aristotelicae animadversiones, onde manifestamente mostrava a sua ignorância, que as referidas cartas régias confirmaram e ampliaram, como veremos.
 
IV. Ouçamos, porém, a parte contrária, Omar Talon, o defensor de Ramo. Publicadas as Aristotelicae animadversiones, Ramo foi acusado judicialmente de corromper as artes e a teologia com a sua refutação de Aristóteles. Os protestos aumentavam cada vez mais e a questão é confiada ao Parlamento; notando, porém, os seus acusadores que ela seguia os seus trâmites legais e que se provavam os ódios dos seus adversários em vez das acusações, à custa de novos estratagemas e intrigas, conseguem que a questão seja apresentada ao rei para a julgar. Este resolve-a, estabelecendo um tribunal de 5 membros, dois de cada parte e um quinto de sua nomeação para apreciarem e julgar uma a uma as asserções das Aristotelicae  animadversiones.
 
Ramo, em obediência às ordens régias, compareceu no dia aprazado perante os cinco juízes, apesar de três — Pierre Danes, Francisco Vimercato e Jean de Salignac — serem seus inimigos. Dois dias durou a discussão. Ramo sustentava que a dialética de Aristóteles era imperfeita porque não fora definida nem dividida. Contra todas as regras, os árbitros Pierre Danes, Francisco Vimercato e Jean de Salignac declararam por escrito que a dialética pode ser perfeita sem a definição, enquanto que Jean Beaumont e Jean Quintin eram de, parecer contrário, isto é, que qualquer questão para ser regular e metódica devia partir de uma definição, o que igualmente deixaram escrito. -No dia seguinte, porém, Danes, Vimercato e Salignac reconheceram e assim o escreveram que a divisão da dialética em invenção e juízo era necessária; mas vendo que Ramo logicamente concluía que tinha razão em condenar a lógica de Aristóteles porque não fora dividida, adiaram a discussão.
 
No dia seguinte, porém, apercebendo-se do erro que tinham cometido e a que a dignidade os forçava a manter, declararam por escrito ser necessário recomeçar a discussão, anulando-se a matéria discutida nos dois dias anteriores. Ramo protestou contra esta decisão, porque manifestava claramente um propósito de condenação, além de que anulava decisões anteriores, apelando para o rei. Este, denegando a apelação, ordenou que os cinco juízes se pronunciassem afinal, em última instância, sobre esta questão. Jean Beaumont e Jean Quintin, percebendo que se assistissem ao julgamento seriam cúmplices da injustiça que se preparava, retiraram-se, não sem ter declarado por escrito a opinião de que não devia violar-se o direito de discutir em público assuntos filosóficos. Ramo imita-os e os três juízes Danes, Vimercato e Salignac, sós, pronunciam então um veredictum apaixonado em que condenavam as Aristotelicae  animadversiones e Institutiones dialecticae, proibindo o seu autor de versar oralmente ou por escrito, qualquer assunto de filosofia.
 
Por fim o rei, iludido por tantas intrigas e calúnias, aprovou esta sentença por cartas régias que foram espalhadas pela França e pelo estrangeiro, celebrando-se esta condenação com pomposos espetáculos onde Ramo era injuriado e os aristotélicos aplaudidos.
 
V. Tal é, em síntese, a narração de Ornar Talon.
 
É manifesta a contradição com certas passagens das cartas régias. Assim, estas declaram que Ramo, vendo que não podia defender as suas doutrinas, se submeteu à apreciação dos árbitros e só depois, quando se procedia à censura, é que Jean Beaumot e Jean Quintin declararam não querer comparticipar, insistindo-se ainda com Ramo para nomear novos árbitros, o que não quis; pelo contrário, Ornar Talon refere que os dois juízes renunciaram, acompanhando-os Ramo, que foi condenado sem ser ouvido. A qual destas narrações devemos dar crédito? Ao documento oficial? Tem contra si a suspeição de tendencioso, visto que expõe os factos pela forma que melhor justifica a condenação. A de Ornar Talon? Não menos tendencioso e parcial é, visto que Talon era amigo íntimo e defensor de Ramo
 
É certo que Ornar Talon narrou estes factos, não num escrito anónimo, mas num livro que dedicou ao Cardeal de Lorena, companheiro de Ramo no Colégio de Navarra; mas não deve esquecer-se, e já nos referimos a isso, que foi justamente esta alta personagem quem envidou justamente os esforços junto de Henrique II para se revogar a sentença, como o próprio Talon refere.
 
Se lhe atribuirmos uma grande fé, rejeitaremos como urna fábula o que Pierre Galland refere. Este, ex-reitor da Universidade, na Vida de Duchatel, seu amigo, diz que Francisco I tendo conhecimento das contínuas invetivas dum certo sofista contra Aristóteles, Quintiliano e Cícero, resolveu condená-lo às galés; Duchatel, porém, que exercia uma grande influência no espírito do rei, sugeriu-lhe uma outra forma de punição mais suave e mais harmónica com o seu delito: a de o confundir pela discussão. O rei assim ordenou e quando soube que Ramo fora completamente vencido pelo seu adversário limitou-se a confirmar a decisão dos árbitros por cartas régias.
 
Será esta exposição verdadeira? Em parte, quer-nos parecer; mas não esqueçamos que Galland era um dos maiores inimigos de Ramo.
 
São estas as narrações coevas. As posteriores, baseando-se unilateralmente em qualquer destas, pecam também por tendenciosas, porque, além do seu vício de origem, manifestam claramente o propósito de reabilitar a memória de Ramo: tais as narrações de Graves e, de certo modo, a de Waddington, para não citar senão as mais recentes baseadas quase exclusivamente em Omar Talon.
 
Do exposto, claramente resulta que não podemos ter a pretensão de relatar os factos tais quais se passaram; todavia, baseando-nos nestas mesmas fontes, que são primárias, procuraremos reconstituir a verdade, a despeito de tantas incertezas.
 
VI. Ao aparecerem, em Setembro de 1543, as Aristotelicae  animadversiones, António de Gouveia, espontaneamente, decide criticá-las, publicando em 27 de Novembro do mesmo ano a Pro Aristotele Responsio adversus Petri Rami calumnias, cuja ação pacificadora foi insignificante, mas, em compensação, teve o mérito de destacar o seu autor. As más vontades, os ódios, cresciam dia a dia e para os satisfazer unicamente ocorria àqueles espíritos dum conservantismo mesquinho os meios violentos, desde a condenação judicial às galés, porventura. Gouveia, a quem certamente repugnavam estes meios, muito provavelmente procurou a solução mais lógica e harmónica com uma questão desta natureza. O rei atendeu-o, instituindo-o, uma justa, uma espécie de duelo, entre ele e Ramo, a quem assistiam como árbitros Pierre Danes e Francisco Vimercato, como representantes de Gouveia, Jean Quintin e Jean de Beaumont, de Ramo e Jean de Salignac, por parte do rei.
 
Convocada a reunião para o dia 9 de Fevereiro, compareceram os dois contendores. Uma questão prévia, de magna importância para Ramo, os separa. Ramo entendia dever começar-se teoricamente a discussão pela definição da dialética enquanto que Gouveia queria que se discutisse sem preliminares a competência lógica ou dialética de Aristóteles.
 
Quem tinha razão? Ocorre naturalmente perguntar. Ramo, insistindo previamente para que se definisse a dialética, era lógico que capciosamente preparava uma armadilha ao seu adversário, visto que desviava o objeto da discussão para as Institutiones dialecticae, removendo portanto os perigos que lhe adviriam da análise das Aristotelicae  animadversiones, além de que, como socrático que se dizia ser, imitava Sócrates, quando no Banquete censurava os oradores que o precederam por não terem começado os seus discursos com a definição do amor.
 
Todavia, quer-nos parecer que o direito assistia a Gouveia, justamente porque fora para se analisar e determinar o valor real das críticas a Aristóteles que se instituíra a discussão ; demais, na lógica que então se professava nas Escolas, a proposição que Ramo quereria defender, isto é, a dialética considerada como «arte de bem dissertar» e a sua divisão em invenção e juízo, que remontava a Cícero, era universalmente aceite.
 
O que de parte a parte se teria dito não o sabemos; mas o que nos parece, com Quicherat, é que decorreu a hora sem que nenhum dos adversários cedesse.
 
No dia seguinte, recomeçando a discussão nos mesmos termos do dia anterior, ao que parece, Gouveia, talvez pensando que enredaria o seu adversário, transigiu, «aceitando o debate sobre a divisão da dialética». Ramo, então, subitamente, desviando o objeto da discussão, argumentaria com a impossibilidade de dividir a dialética sem previamente ter sido definida; e se António de Gouveia encontrou argumentos para não ficar calado, sem dúvida que «não se retirou com as honras da tarde», sendo certo que os árbitros que nomeara, o censuraram pela concessão que fizera. Tudo nos leva a crer que no dia seguinte Gouveia, apercebendo-se do logro em que caíra, ou porque os juízes Danes, Vimercato e Salignac a isso o-compelissem, propôs que se recomeçasse a discussão, anulando-se a matéria discutida nos dois dias anteriores.
 
Ramo, a quem isto não convinha, porque procurava por todas as formas desviar da discussão as Aristotelicae  animadversiones, continuando o mesmo assunto, visto que assim, de certo modo, atenuava as suas críticas a Aristóteles, porque este no Organon não definira previamente a dialética, protestou perante os juízes, solicitando-lhes que a discussão continuasse sobre os assuntos do dia anterior. Danes, Vimercato e Salignac, que tomavam o partido de Gouveia, pronunciam-se a favor deste, enquanto que Beaumont e Quintin consignam por escrito uma opinião inteiramente favorável a Ramo.
 
Este recorre (?) para o rei («dont nous advertis», dizem as Cartas Régias), que ordena ao preboste de Paris para que compelisse Gouveia e Ramo a recomeçarem a discussão, decidindo, pois, a apelação (?) a favor daqueles juízes. Ramo recusa-se então a discutir, e os juízes Danes, Vimercato e Salignac, convidam sucessivamente Quintin e Beaumont, os árbitros que Ramo nomeara, a substituí-lo, ao que não acedem, porque, como diz Omar Talon, não queriam comparticipar na injustiça que se planeava. De novo insistem com Ramo para que nomeie outros representantes; mas este, ou porque antevisse uma condenação, qualquer que fosse o resultado da discussão, ou porque quisesse ser solidário com o procedimento dos árbitros que nomeara, recusou-se, declarando submeter-se às decisões dos juízes.
 
Perante estas sucessivas escusas, os juízes Danes, Vimercato e Salignac, obrigados a julgar, condenam-no, em sentença de 1 de Março de 1544, por temerária, arrogante e impudentemente ter condenado o ensino da lógica, universalmente aceite, e que ele próprio ignorava, suprimindo-lhe as Aristotelicae  animadversiones e Institutiones dialecticae, deferindo, portanto, a vitória a António de Gouveia.
 
Foi esta sentença que as Cartas Régias de 19 de Março confirmaram e ampliaram, proibindo Ramo de versar por escrito ou oralmente qualquer assunto de dialética ou de filosofia, e de invetivar Aristóteles ou qualquer outro autor cujas doutrinas a Universidade aprovasse, estabelecendo, demais, sanções.
 
Publicadas ao som de trombetas, afixadas em francês e latim pelas ruas de Paris e copiosamente espalhadas pelas Universidades estrangeiras, o parlamento de Paris regista-as em 10 de Maio (?), sem a menor oposição.
 
VII. Sem dúvida que a vitória de Gouveia não é em si um ato brilhante — e ele próprio parece que assim pensava porque neste mesmo ano (1544) vai para Toulouse ensinar o Direito, de que foi insigne reformador; a Universidade, porém, acolheu-o festivamente, celebrando o seu nome com pomposos panegíricos em que Hércules e Teseu e todos os domadores de monstros ficavam muito aquém do nosso compatriota.
 
Treze anos depois, em 1557, era ainda relembrada, em Santa Bárbara, a sua vitória e o seu nome aplaudido como um dos seus melhores alunos.
 
A dominar, porém, esta justa dialética há a estranha, para não dizer ridícula, atitude de Francisco I.
 
Como explicá-la? Gaillard é de opinião que se o rei foi severo é porque considerava Ramo como um bárbaro que se opunha às Humanidades e procurava sufocar o progresso das Letras. Esta explicação, mormente se atendermos às condições culturais da época, não deixa de ser engenhosa; todavia, com Heubi, parece-nos que o procedimento régio foi antes o resultado da conceção pragmática e religiosa que Francisco I teve do humanismo e das circunstâncias históricas da França nesta época.
 
Com efeito, uma vez mais, vejamos o texto das já tantas vezes citadas Cartas Régias. Nelas declara que «nous avons mis toute la peine que possible nous a esté de l'accroistre et enrichir de toutes bonnes lettres et sciences à l'honneur et gloire de nostre Seigneur et au salut des fidè-les...», ideia em que muitas vezes insiste, já nas cartas de committimus, em 1544, publicadas a favor dos leitores reais, já nos privilégios que estabeleceu, onde declarava que a cultura devia ter como resultados produzir homens virtuosos.
 
Por outro lado, a situação histórica da França nesta época era muito crítica. Em Setembro de 1543, o duque de Clèves, o fiel aliado de Francisco I e genro de Margarida de Navarra, que tanta influência exerceu no desenvolvimento do platonismo em França, fora vencido por Carlos V e obrigado a assinar um tratado pelo qual renunciava à aliança com a França. Pouco depois, em princípios de 1544, Carlos V preparava-se para invadir a França por este e Henrique VIII por Calais: ora o édito de condenação de Ramo é de 19 de Março. Nestas circunstâncias, dominado por negócios e questões que afetavam a França, compreende-se que não tivesse muito tempo para se interessar por um debate filosófico e, tendo um pretexto, — a condenação de Ramo pelos árbitros, decidisse definitivamente a questão, ratificando esta condenação.
 
Assim, bem se compreende que procedesse contra Ramo, porque este, simultaneamente, atacava o filósofo que maior influência exerceu na Igreja e perturbava a ordem pública, que convinha assegurar.

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