Joaquim de Carvalho, crítico literário e historiador da ciência, por José V. de Pina Martins

O terceiro estudo apresenta uma abordagem lúcida de “Teixeira de Pascoais e Miguel de Unamuno no seu epistolário”. Nela faz Joaquim de Carvalho um paralelo equilibrado e sereno entre o poeta das Sombras e o pensador das intuições agónicas. Não é sem interesse sublinhar que o mestre de Coimbra interpreta o mundo poético de Antero de Quental como “o mundo dos problemas especificamente humanos, da luta pelo direito e pela justiça, dos destinos últimos da consciência moral, das dúvidas metafísicas; o de Eugénio de Castro como [...] o mundo do bom senso, construído e expresso com dados sensoriais, donde uma poesia [...] rica de tonalidades pictóricas, de ritmo musical, de modelação plástica, e o de Fernando Pessoa como um mundo solipsista, de quem somente se reconhecerá no próprio eu e no complexo subtil dos estados e das relações subjetivas de que se apercebia”. Diferente era, e diverso, o mundo poético-filosófico de Unamuno, “enlaçado por intuições agónicas da existência vivente”. Para Joaquim de Carvalho, Teixeira de Pascoais surge, nas suas últimas cartas, como um autêntico vate, simultaneamente poeta e profeta.

Este escrito do pensador de Coimbra tem as características de um verdadeiro testamento espiritual, porque, datado de Setembro de 1957, traz já o sinete do seu último ano de vida. O epistolário é, para ele, um testemunho da compreensão e do afeto que uniram estas duas grandes personalidades ibéricas, irmãs pelo génio e tão diferentes pela obra e pela sua própria vocação espiritual.

O capítulo sobre “A Alma Portuguesa”, formado por três estudos, qual deles o mais interessante, liga-se ainda indiretamente a Teixeira de Pascoais e diretamente à temática privilegiada pela Renascença Portuguesa.

O primeiro, acerca da “Problemática da Saudade”, constitui uma fascinante reflexão filosófico-filológica sobre a definição do conceito de saudade, em relação com a soledade e com a designação latina de “desiderium”. Depois de algumas alusões a uma componente ancestral de origem céltica que teria surgido na língua falada no noroeste da Península (na região de Entre-Douro-e-Minho e na Galiza), o mestre de Coimbra disseca meticulosamente a fenomenologia do ato saudoso. “Ser-se saudoso de” implicaria uma consciência dolorosa de um estado de consciência. A saudade surge, assim, como um ponto de partida para a definição de uma metafísica existencial. A essência da saudade define-se pela ausência de um objeto amado que já se possuiu e profundamente se deseja. Estudo, este, de admirável limpidez, expresso em estilo terso e cristalino.

O segundo ensaio foca os “Elementos constitutivos da consciência saudosa”. Embora o seu autor o considere como um simples esboço, aclara e reforça o excurso precedente, repetindo alguns dos seus conceitos básicos. “A consciência saudosa [...] — sustenta o insigne mestre— não é fundamento suficiente e bastante de explicação metafísica da realidade que se vive”, mas a explicação desta não pode menosprezar as correlações implicadas pela saudade.

O terceiro estudo, intitulado “Compleição do patriotismo português” é, de facto, o mais importante dos três, embora, na sua segunda parte, resuma o conteúdo dos dois que o precedem. O conceito de pátria portuguesa está ligado, para o mestre de Coimbra, à terra em que nascemos e à família que nos educou; integra-o ainda a outra componente da saudade ou da consciência saudosa.

“Camões não poderia explicar-se sem o ponto de partida histórico-filosófico destas realidades”. O Brasil seria o melhor local para afirmar esta consciência do patriotismo, numa perspetiva universalista que, longe de diluir o conceito de pátria, ainda o acentua mais profundamente.

 

A primeira parte deste volume V inclui ainda, no capítulo 7, dois suculentos prefácios, no 9.º alguns escritos circunstanciais de homenagem a investigadores e professores, no 10.º uma evocação literária de temas filosóficos, no 11.º um longo excurso simpático e de meticulosa análise sobre a atividade intelectual no Brasil e, a terminar, uma dupla reflexão: acerca da inspiração vitalista e a universalidade dos temas poéticos, com uma opinião fundamentada acerca dos limites do ensaísmo. Não sendo possível dar uma síntese mesmo muito breve de cada um destes escritos, salientemos apenas o que nos parece ser, em relação a todos eles, a sua lição exemplar, como o mais significativo e cientificamente válido.        

Os escritos de homenagem a investigadores e professores (Luciano Cordeiro, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Luciano Peróira da Silva, Agostinho de Campos, Virgílio Correia, Egas Moniz, Richardo Jorge e Carlos Eugénio Correia da Silva) são, na sua grande maioria, notas e elogios de In memoriam, mas recomendam-se como testemunhos de amor votado por Joaquim de Carvalho a alguns vultos desaparecidos da cultura nacional. Se, por exemplo, a exaltação da grandíssima filó-Ioga Carolina Michaëlis de Vasconcelos é óbvia, a evocação de Carlos Eugénio Correia da Silva é uma página comovente: “Perderam as letras um crítico à maneira de um Sainte-Beuve cristianizado? Perdeu a ciência um sábio capaz de converter a Filologia em amor do logos, de descobrir sob a letra o espírito que a vivifica?   

Perdeu a erudição um humanista da imorredoira estirpe de Quinhentos? Creio que sim; e porque o creio, inclino-me com ânimo respeitoso e dolorido perante a memória da mais promissora mocidade do nosso tempo”.

“Promissora mocidade”: Joaquim de Carvalho não sente apenas a perda do jovem amigo, mas também o vazio que deixa na nossa vida intelectual. E ainda o futuro da Universidade e da cultura portuguesas que, com o desaparecimento do malogrado professor, sofre um duro golpe, o que o mestre de Coimbra, no seu amor da Pátria e da Ciência, profundamente lamenta.

Como não fazer ainda uma leve menção do capítulo 10, que o organizador deste volume intitula “Evocação literária de temas filosóficos”? A meditação breve sobre ciência e sabedoria impõe-se como um intermezzo ou pausa nas atividades científicas e pedagógicas de Joaquim de Carvalho. Solicitado por tantas responsabilidades — professor, diretor dos Acta Universitatis Conimbrigensis, da Revista Filosófica, da coleção filosófica da Atlântida, redator e membro da comissão encarregada pela Academia das Ciências de Lisboa da edição das Obras de Pedro Nunes, investigador infatigável, chefe de uma família numerosa— só de vez em quando lhe era dado, em horas tranquilas, poder dedicar-se à especulação criativa. O seu estilo era menos o de um frio raciocinador sistemático do que o de um filósofo de pensamento normativo, rico de substância humana e ética. Este pendor da sua forma mentis é principalmente visível nas suas dissertações sobre temas universais. Era sensível a um ideário incarnado, à criação metafísica não dissociada do contexto histórico, em profunda conexão com o autor e a obra situados no seu terreno circunstancial.

Isto é ainda visível no conjunto de trabalhos e recensões do capítulo 11, “Atividade intelectual no Brasil”, em cuias páginas se reflete a ciência do mestre e a experiência de um espírito cultíssimo, assim como o influxo dos seus interesses mentais mais diretos —veja-se o que escreve acerca do Quod nihil scitur de Francisco Sanches —, sem já mencionar o vibrante patriotismo que não podia deixar de ter um documento valioso na sua particular estima pela realidade cultural do Brasil. O racionalismo e o ceticismo despertaram sempre um interesse muito vivo na reflexão filosófica de Joaquim de Carvalho. Todos os seus estudos ostentam o sinete da sua inteligência indagadora, mas sem que esta se divorcie de uma ciência sólida e da atenção consagrada ao devir histórico que marca todas as atividades intelectuais. 


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