3.° - O Tratado das Categorias

I. Com a análise das críticas ao tratado das Categorias, Gouveia enceta propriamente a defesa do Organon.

O Organon, constituído atualmente pelas Categorias (n/a), o tratado Da Interpretação (n/a.), os Primeiros (II liv.) e Segundos (II liv.) Analíticos (n/a), os Tópicos ou Lugares Comuns (n/a — liv. VIII) e os Argumentos Sofísticos (n/a), é o mais antigo e mais perfeito tratado de lógica que o helenismo nos legou.

Aristóteles é verdadeiramente o criador da lógica, especialmente por ter dado uma forma precisa e definitiva às leis da prova e analisado exaustivamente a técnica da dedução, na forma silogística, embora Platão fosse o primeiro filósofo que investigou a verdade e a sua natureza, afirmando a legitimidade do conhecimento universal em face do (n/a) de Heráclito e dos raciocínios capciosos dos sofistas e megáricos. Ele é verdadeiramente o precursor do silogismo com a teoria da divisão (dicotomia) — teoria que Ramo preconizava nas Institutiones dialecticae e que muito se generalizou na Inglaterra, devido aos ramistas William Temple e John Milton; mas o certo é que foi Aristóteles quem expôs e uniu em sistema as formas do pensamento e da expressão, tão exaustivamente que Kant o considerava como definitivo.

Qual a ordem de sucessão e de composição destes tratados que constituem o Organon?

Será a que expusemos e que é universalmente aceite? Será outra?

Pelo que respeita à composição pode afirmar-se a negativa, porque no Perihermeneias cita Aristóteles os Analíticos, e nestes os Tópicos; mas não repugna admitir que, embora compostos isoladamente como tratados independentes, Aristóteles os reunisse doutrinalmente pela ordem que indicamos. Porque os não disporia neste plano, que é justamente o plano de sequência, se ele foi o génio criador do método? Demais os factos comprovam esta opinião.

Nos Elencos Sofísticos diz expressamente que os Analíticos são consagrados ao silogismo demonstrativo, os Tópicos à conjetura e às regras da discussão e os Elencos Sofísticos ao silogismo sofístico e aos meios de o evitar — sistema que a Metafísica confirma, ao distinguir três modos de conhecimento e estudo das coisas: filosófico — permitindo a descoberta da verdade, dialético, que dá probabilidades, e sofístico, que é uma vã aparência.

Conquanto esta questão não fosse ventilada por Pedro Ramo, nem por Gouveia, é lícito todavia perguntar o que pensava Gouveia.

Vimos já que ele falava na «ordem compositiva e progressiva do Organon» e justificava a Introdução de Porfírio para não se «alterar a ordem de Aristóteles», o que nos permite supor, senão afirmar, que reputava aquela ordem dos tratados lógicos, como da autoria de Aristóteles.

II. Costuma dividir-se, depois dos escolásticos, o livro das Categorias em três partes: Proteoria ou ante-praedicamenta, teoria ou praedicamenta e Hipoteoria ou post-praedicamenta.

Na Proteoria, Aristóteles classifica os termos que não devem considerar-se como categorias, em sinónimos ou unívocos, homónimos ou equívocos e parónimos ou termos derivados, porque as categorias devem ser distintas no pensamento e na expressão.

De tudo o que existe, diz Aristóteles, umas coisas podem ser predicáveis, isto é, afirmadas ou negadas de um sujeito, mas não existem em nenhum, como por exemplo a palavra homem que pode afirmar-se de A, B ou C, etc., sem poder afirmar-se privativamente de um só; outras, pelo contrário, pertencem a um sujeito sem serem predicáveis a nenhum outro, como por exemplo a ciência de A, precisamente por ser uma coisa individual; e, finalmente, outras não existem no sujeito nem lhe podem ser predicáveis, como as substâncias individuais que não são predicáveis porque são individuais, nem existem no sujeito porque são substâncias.

É. na teoria ou praedicamenta que Aristóteles expõe as Categorias, que devem considerar-se como classes de conceitos objetivos suscetíveis  de serem predicáveis como sujeito ou atributo num juízo, e não como ideias do entendimento puro à priori, como as categorias de Kant e Renouvier. As categorias aristotélicas são:

Substância (n/a), ex.: homem, cavalo.

Quantidade (n/a), ex.: com o comprimento de duas varas; duas varas.

Qualidade (n/a), ex.: sábio, culto.

Relação (n/a), ex.: metade, duplo, maior.

Lugar (n/a), ex.: no Liceu, no ágora.

Tempo (n/a), ex.: ontem, no ano passado.

Situação (n/a), ex.: estar sentado, estar deitado.

Posse (n/a), ex.: estar calçado, armado.

Ação (n/a), ex.: queimar, cortar.

Paixão (n/a), ex.: ser cortado, ser queimado.

Aristóteles consagra quatro longos capítulos às quatro primeiras categorias, referindo-se ligeiramente às restantes, por as julgar suficientemente claras por si próprias.

Na hipoteoria ou post-praedicamenta, a matéria mais importante é a das relações lógicas dos termos entre si, isto é, a identidade e a oposição.

As formas da oposição são:

1.° Por simples relação, isto é, os dois termos correspondentes de uma relação, como o duplo e a metade.

2.° Os contrários, como o bem e o mal.

3.° A posse e a privação, como a cegueira e a visão. 4.° Os contraditórios, como sim e não.

O tratado das Categorias termina pela análise dos conceitos de contrariedade, contradição e dos três modos do tempo: anterioridade, simultaneidade, sucessão ou movimento, que não expomos porque não têm uma relação direta com o assunto que nos interessa.

III. Ramo, seguindo a divisão escolástica, tradicional, do tratado das Categorias, nos ante-praedicamenta, afirmava que os sinónimos e homónimos «eram usurpações gramaticais dos dialéticos» e que os parónimos deveriam ser tratados nos lugares da argumentação — além de que eram de utilidade insignificante as regras: «tudo o que se diz de uma coisa, como de um sujeito, diz-se necessariamente do sujeito» e «constituem diferenças diversas as espécies de géneros diversos que não se incluem uns nos outros», regras que Aristóteles formulava relativamente às relações das palavras entre si.

IV. A primeira crítica já Gouveia respondeu, como vimos, provando que os sinónimos e homónimos não eram usurpações dos dialéticos.

Aristóteles, abrindo as Categorias com esta matéria, procedeu logicamente, porquanto «propondo-se tratar os sumos géneros e capítulos de todas as palavras tinha necessariamente de indicar previamente os meios que poderiam ser de maior utilidade e auxílio na redução das palavras ao seu género, como a homonímia e antinomia».

Podia ainda dizer-se com Ramo que os parónimos não deviam ser incluídos nos ante-praedicamenta, mas nos lugares da argumentação (Tópicos)?

Evidentemente que não, porque «o género abrange o que tem o mesmo nome e o mesmo conteúdo e não apenas o que tem o mesmo nome».

Assim, se a justiça foi considerada como uma qualidade, também o justo o deve ser — o que nos prova a legitimidade e utilidade da primeira regra referida.

É certo que a segunda regra é intuitiva — e esse é o seu único defeito, mas nem por isso a devemos abandonar. Se assim se procedesse, tínhamos de pôr de parte certas proposições como — o todo é maior do que a parte, sobre qualquer coisa é verdadeira a afirmativa ou a negativa, além de que as mais seguras e melhores regras são precisamente as que menos dúvidas comportam. Demais, a sua utilidade ressalta quando queremos «assinalar a cada género as suas formas e constituir as ordens de todas as palavras».

V. Ramo afastando-se da ordem das Categorias passa aos post-praedicamenta, onde reconhece o inconveniente da matéria ter sido exposta com brevidade e sem método.

Na verdade, é lacónica a exposição, e assim devia ser, diz Gouveia, porque é uma matéria que facilmente se compreende com as indicações dos praedicamenta.

Afirmando Aristóteles que nos contrários «não havia oposição de essência (substância) e portanto esta podia receber afeções contrárias; que o quanto não se opunha ao quanto, o grande ao pequeno, o pouco ao muito, que não eram contrários, mas correlativos», não devia porventura tratar dos géneros dos contrários?

Dizendo dos correlativos «que nenhum existe antes do outro, mas são simultâneos» podia deixar de explicar como é que uma coisa tem lugar antes de outra e como certas coisas se dizem simultâneas? Não devia porventura precisar as diversas aceções em que tomava a palavra posse? Tendo tratado a ação e a paixão, que são formas de movimento, podia omitir o movimento e as suas espécies?

Levianamente, pois, Ramo, condena «a didática (ratio docendi) de Aristóteles, unanimemente elogiado como o artista supremo do ensino».

VI. Na teoria ou praedicamenta, Ramo criticava o laconismo com que Aristóteles versou as categorias e a sua deficiência, porque, constituindo os predicamentos ou categorias a hierarquia das coisas (ordo rerum) por géneros, espécies e diferenças, a lista que Aristóteles formulou não compreende todos os géneros, espécies e diferenças, numa palavra, toda a natureza.        

VII. O livro das Categorias é dos tratados lógicos de Aristóteles o que mais discutido e diversamente apreciado tem sido. A seu respeito, desde as escolas filosóficas de Atenas, para as quais muito provavelmente Porfírio compôs a Isagoge, até ao século XII em que, juntamente com o Perihermeneias, nas traduções de Marius Victorinus e Boécio, com a Isagoge na tradução de Boécio e talvez os Primeiros Analíticos (Vetus Logica), constituía a base do ensino da lógica, período em que a sua influência foi grande e indiscutível, desde o Renascimento, em que surgem as primeiras críticas que mais tarde se acentuam com Kant, Hegel e sobretudo com Stuart Mill, para quem a enumeração aristotélica das categorias se semelhava «a uma divisão dos seres vivos em homens, quadrúpedes, cavalos, burros e póneis», abundam as mais contraditórias opiniões.            

Como diz Gomperz, esta diversidade de opiniões revela uma visão incompleta, quando não ignorância, da intenção de Aristóteles. Evidentemente que as categorias aristotélicas não são como as de Kant, formas a priori do entendimento puro, isto é, formas de ligar a priori os elementos diversos de uma intuição geral; mas terão, como querem Trendelenburg  e Grote, um carácter gramatical, isto é, a substância representaria o sujeito da proposição, a qualidade e a quantidade o adjetivo, o lugar e tempo respetivamente os advérbios de lugar e de tempo, etc., ou serão, como ordinariamente dizem os comentadores e historiadores, e a meu ver acertadamente, as formas gerais da realidade concreta, isto é, como diz Boutroux, os géneros irredutíveis das palavras e por consequência das coisas, porque as classes de palavras correspondem a classes de coisas?

Gouveia, respondendo a Ramo, contestava que as categorias representassem a hierarquia do universo, porquanto Aristóteles unicamente pretendeu ensinar-nos «as propriedades e significação das dicções», os sumos géneros de todas as palavras. Explicando-as por uma forma inteligível, Aristóteles realizou o seu intento.

VIII. Desta exposição claramente resulta que Gouveia surpreendeu o verdadeiro sentido das categorias aristotélicas e que defende o tratado das Categorias à luz da própria doutrina peripatética.

A escolástica é-lhe indiferente — tão indiferente, que nem sequer alude à crítica que Ramo fazia do uso dos predicamentos na Escola, omitindo a terminologia escolástica e desculpando-se do emprego da expressão praedicamenta com a citação de Ramo.


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