1.° - Introdução

1. As Aristotelicae animadversiones abriam por uma classificação dos dialéticos: 1) os que investigam a verdade e nela se exercitam e 2) os que seguindo um determinado autor, de tal forma acomodam as suas opiniões às dele que desprezam o culto e exercício da verdade, no manifesto propósito de rebaixar Aristóteles, incluindo-o na segunda categoria.          

Gouveia, argutamente, na lógica das próprias ideias de Ramo, observa que nesta classificação, apesar de tendenciosa, não há lugar para Aristóteles. Com efeito, não pode incluir-se na primeira categoria porque tudo quanto disse deve ser reputado falso, e da mesma sorte na segunda porque em tudo, salvo na nobili et vexata questão das ideias, seguiu Platão, o filósofo divino, o perfeito dialético.

A ser lógico, portanto, Ramo, ao criticar Aristóteles, deveria criticar também Platão, além de que, para Aristóteles não ser excluído, teria de constituir uma terceira categoria, tanto mais que em assuntos de Lógica lhe compete de direito o primeiro lugar.

Abrindo o seu livro por uma divisão incompleta, Ramo cometeu um erro grave, indesculpável num reformador da Lógica.

António de Gouveia, que conhecia melhor a história da filosofia do que Ramo, contestava que Aristóteles fosse um puro platónico «porque, sendo dotado de uma admirável robustez e fecundidade de inteligência, fez muitas e brilhantes descobertas pessoais de que Platão não suspeitou, não se afastando dele unicamente na nobili et vexata questão das ideias, e nesta por uma forma radical». Numa ridícula e pretensiosa preocupação exaustiva, que mais se acentuou no século XVII, costumava remontar-se a história à criação do homem.

Ramo, mais prudente do que Genuense (Genovési), cujas Instituições Lógicas e Metafísicas foram por mais dum século o texto do ensino da filosofia em Portugal e que considerara Adão um «egregius logicus», atribuíra, contudo, a Prometeu, fundando-se no Filebo de Platão, a invenção da arte dialética.

Gouveia, apesar de louvar Ramo pela probidade da citação e da autoridade de Platão, percebendo o seu alcance, reconhece que não havia necessidade de remontar a dialética a uma origem tão antiga, a menos que Ramo nos quisesse convencer que aprendeu esta arte em outros autores que não em Aristóteles, o seu verdadeiro fundador. «É impossível apresentar uma única passagem da sua célebre dialética, diz, não usurpada ou não aproveitada por Cesário, Hegendorf, Titelman, Melanchton, como por mim próprio no De Conclusionibus» — e o próprio Ramo muitíssimo lhe deve. Não é porventura incorreta esta «descortês ingratidão em querer ocultar os autores aproveitados?». Demais, como devemos julgar Ramo, se na própria obra em que considera Aristóteles como «impostor e inimigo da verdade», invoca a sua autoridade para provar que Zenão de Eleia é, depois de Prometeu, o dialético mais antigo? Apesar duma origem tão antiga é, todavia, a Platão, no entender de Ramo, a quem a dialética mais deve, visto que a cumula de louvores e a considera como rainha e senhora de todas as artes. Mas se a dialética foi descoberta e escrita pelos antigos e Platão apenas a elogia, deve-lhe porventura mais do que aos seus fundadores? É que, continua Gouveia, «Ramo não percebeu que para Platão a dialética é a ciência que podemos chamar teologia e sabedoria e não, como nós, a capacidade de discutir». O que é mais estranho é que a dialética se mantivesse pura até Platão, corrompendo-a os seus sucessores, como se as coisas não começassem a corromper-se quando atingem a sua maturidade específica e sumo grau de perfeição, onde não podem persistir muito tempo. Mas supondo, porém, que se deturpa depois de Platão — o que é contraditório, porque ainda se não tinha constituído, ocorre naturalmente perguntar quem foi o causador? — Aristóteles, diz Ramo, isto é, quem, «conservou vivo o velho costume de investigar a verdade e tornou mais fecundas as suas vantagens, propondo o exercício da discussão perpétua». Uma vez mais, ainda, Ramo é ilógico. Com efeito, Aristóteles, enquanto viveu, não a podia ter corrompido, porque «conservou o hábito de investigar e cultivar a verdade»; no caso contrário, nada repugna consentir que tal se diga, «porque nunca li nem defendo o que escreveu depois de morto». Há ainda uma outra hipótese: a de Aristóteles a ter corrompido nas suas obras. Como? «Apresentando o erro pela verdade, ou envolvendo a verdade num véu de sombras? Se apresentou o erro pela verdade, o que pensaremos da probidade e ponderação de Cícero, quando mandava instruir o seu Orador na dialética de Aristóteles; e, nos Tópicos, ao distribuir as regras do raciocínio pela invenção e juízo, o considerava como príncipe de ambas?». Mas se em Aristóteles tão-somente é censurável a obscuridade, não há o direito de lhe chamar «impostor», a menos que Ramo julgue haver ludíbrio onde apenas há incompreensão — confusão tão fácil e natural em quem, como ele «de há pouco se dedica a essa leitura, completamente desconhecedor do grego». Se Ramo critica Aristóteles pela obscuridade, com muito mais razão deveria criticar os Estoicos que, como diz Cícero no Orador, «criaram preceitos dialéticos mais espinhosos». Saberá, porém, Ramo, o que Aristóteles entendia por dialética? Não o diz em parte alguma das Aristotelicae animadversiones, o que justifica a presunção de ignorância. «A dialética, diz Gouveia, é o ramo da arte de discorrer que nos fornece argumentos para discutir nos dois sentidos a questão proposta». Era pela definição da dialética que as Aristotelicae animadversiones deveriam começar, precisamente para que o leitor se convencesse da probidade e procedência das suas críticas; mas Ramo preferiu amontoar impropérios contra Aristóteles e os aristotélicos, formando destes últimos o peregrino conceito de que «fizeram chegar à última virulência a parte aristotélica há seiscentos anos recebida do seu fundador». «Vejo perfeitamente a quem te referes, diz Gouveia, embora não ouses dizer os nomes. Falas em Alexandre Afrodísio, Temístio, Simplício, Amónio, João Gramático, e quantos filósofos mais, Santo Deus!».

Os peripatéticos anteriores a estes, como Teofrasto, Stratão e tantos outros, pois nunca faltaram a esta doutrina defensores e sectários, foram contaminados da mesma epidemia que estes, sendo que distam menos de Aristóteles, e abandonando o velho culto da investigação e exercício da verdade entraram em caminho oposto e, satisfeitos com os conhecimentos transmitidos por Aristóteles, não procuraram nada de melhor». Haverá porventura diferenças fundamentais entre académicos e peripatéticos, para que Ramo os distinga? Não vemos Cícero afirmar que, neste ramo da filosofia, tiveram a mesma opinião, afastando-se unicamente na célebre questão das ideias? O que é verdadeiramente estranhável é a afirmação de que Aristóteles nunca pensou na natureza — afirmação tendente a demonstrar que Aristóteles não tratou da arte de discorrer.

Com efeito, para Ramo, «a arte dialética é uma imagem da dialética natural; ora nos comentários de Aristóteles nada se propõe segundo a natureza (monitio naturae), nada quanto à verdade da natureza que não seja confuso, deturpado, inquinado, poluído: portanto nos comentários de Aristóteles não se encontra a arte dialética».

Gouveia, porém, contesta a legitimidade deste raciocínio, porque «a dialética é o nome duma arte», não vendo como «possa transferir-se para a natureza». «Quem quer que saiba latim não é necessariamente gramático, como quem quer que fala um orador, quem quer que discorra um dialético —a menos que o façam por arte. Assim concebida, a dialética não é uma imagem da dialética natural, mas um processo com que se cultiva a tendência inata do espírito para o raciocínio. Porém, suponhamos que seja uma imagem da dialética natural. Vejo que a baseias na invenção e no juízo», precisamente aquelas partes da dialética em que Aristóteles deve ser considerado como príncipe, no dizer de Cícero. «Como não há então a mais leve sombra de dialética nos livros de quem tratou os processos da invenção, argumentação e as regras do juízo, com tanto cuidado que mereceu receber de M. Túlio o título de príncipe de ambas as especialidades?».

II. Para que se não julgue infundada a opinião de Cícero, Gouveia expõe sucintamente a estrutura do Organon, porque «é impossível que alguma coisa se escreva sobre esta terceira parte da filosofia, com mais exatidão ou mesmo com melhor disposição dialética». Em todas as ciências e artes, de que a Lógica «é como que uma verdadeira serva e satélite», é necessário recorrer à Apodixis, — que Quintiliano traduz por prova evidente, Cícero, razão necessária e Gouveia, demonstração, «porque só ela gera o verdadeiro conhecimento». Por isso o lógico deve estudar a sua estrutura; «mas, como a opinião é a bem dizer um passo para a verdade, deve também explicar o conteúdo da argumentação provável, que se acomoda aos sentimentos e opiniões dos indivíduos». É a esta forma de argumentação que Aristóteles, com propriedade, chama dialética (disputatrix), porque, «na verdade, ora se afirma, ora se nega e, seja qual for o lado da questão que se lhe entrega, encontra-se disposta a confirmar ou a destruir».

Não deve julgar-se, porém, inútil este exercício, precisamente porque proporciona «a maior facilidade na invenção da verdade». Se o fim direto da Lógica é o estudo da razão necessária, isto é, da demonstração, e «sendo ela o silogismo, do silogismo terá que tratar quem sobre a lógica tenciona escrever». O silogismo, porém, não existe independentemente das proposições (enuntiatio) que o constituem; e por isso se impõe necessariamente o estudo das relações dumas com as outras (ratio earum inter ipsas), dos seus elementos, isto é, os nomes e os verbos, «cujas propriedades, significações e géneros se contêm em dez ordens ou classes, que Aristóteles chamou categorias», como introdução ao estudo da constituição e formas do raciocínio.

Começando, pois, pelos elementos, o lógico estudará sucessivamente «a força das palavras simples, a forma das proposições, a constituição do silogismo e a estrutura da prova necessária e evidente; em segundo lugar inculcará, por assim dizer, certos lugares de argumentação provável, donde se podem tirar todos os materiais para a discussão em ambos os sentidos e, finalmente, procurará prevenir contra as ilusões dos sofistas» para evitar que o espírito se desvie da verdade. Aristóteles, expondo o Organon por «esta forma compositiva e progressiva», não tratou porventura da dialética natural?

Depois de expor assim tão sumariamente a estrutura e fins do Organon, Gouveia procura demonstrar que, em cada uma das suas partes, não há menos arte e inteligência do que no Conjunto; mas antes de entrar propriamente neste assunto, seguindo a exposição das Aristotelicae animadversiones, repudia a censura que Ramo dirigia aos dialéticos por terem usurpado certos termos aos gramáticos e a forma como classificou o Organon.

III. «Os dialéticos usurparam aos gramáticos os termos próprios de arte, ou foi o contrário que se deu? Tenho o contrário por posterior, visto que os gramáticos apareceram depois dos dialéticos. Compulsando cuidadosamente as memórias antigas, comprova-se que em nenhum povo houve gramáticos antes da língua começar a corromper-se e a contaminar-se. Quintiliano, ao escrever sobre as Partes do Discurso, conta Aristóteles e Teodocto entre os que primeiro ensinaram o seu número e a sua espécie. Não sendo gramáticos e encontrando-se nos seus escritos os termos antónimo e sinónimo, dizes tratar-se de usurpações de dialéticos, contrariamente à minha opinião. Pareces assim ignorar que gramáticos e dialéticos não chamam sinónimos ao mesmo. Para aqueles são sinónimos espada e gládio e semelhantes os termos que se empregam para um mesmo objeto; pelo contrário, para os dialéticos, o que tem o nome e estrutura comum de algum género superior. Homónimos nunca li nos gramáticos e vejo-os definidos no começo das Categorias de Aristóteles».

IV. Ramo classificara o Organon referindo as Categorias, os sete primeiros livros dos Tópicos, à invenção; o tratado da Interpretação, os Primeiros e Segundos Analíticos, ao juízo; o oitavo livro dos Tópicos e os Elencos Sofísticos, ao exercício.               

Esta classificação reputa-a Gouveia própria de quem nunca leu Aristóteles. Assim, como é que podem referir-se à invenção as Categorias? 

Ramo fundara-se em Quintiliano; mas este unicamente diz que a substância, qualidade, quantidade e relação pertencem ao estado e as restantes «aos lugares dos argumentos», isto é, à invenção.     

Demais, Aristóteles, enumerando as Categorias, não pretendeu ensinar-nos a «matéria das questões» ou «os lugares da invenção», mas «os géneros, os significados, as propriedades das palavras simples ou compostas», para «oferecer géneros e capítulos de todas as dicções (dicti), a que pudessem referir-se os seus significados e donde se extraísse matéria para todos os pronunciados (proposições)».              

Assim, exemplificando, «compreendendo-se que o homem significa essência, a linha quantidade, a cor qualidade, constituímos imediatamente as enunciações: o homem é essência, a linha é quantidade, a cor é qualidade».

Sem fundamentar a sua opinião, Ramo atribuíra o Perihermeneias ao juízo. Gouveia concorda que assim deve ser, mas se atendermos unicamente «ao facto da proposição ser um elemento do silogismo», que é a forma por excelência do juízo, e não a qualquer outro motivo.  

Da mesma sorte os Analíticos pertenciam ao juízo.       

Que os Primeiros Analíticos, onde está exposta a teoria do silogismo, pertençam ao juízo, ninguém legitimamente o pode contestar; os Segundos, porém, visto que Aristóteles neles ensina unicamente «a matéria da prova necessária (Apodixis), os momentos de que consta, a forma porque se pronunciam, para não poderem estender-se a todas as aplicações e outras coisas do mesmo género, que nada interessam o processo da inferência, parece mais instrumento da prova evidente do que das regras do juízo.

Para melhor se compreender o motivo desta asserção julgo necessário expor as razões porque considero o juízo parte do raciocínio.

A divisão mais geral das artes e ciências (disciplinae), distribui-as em dois grupos: umas referentes à ação, outras ao conhecimento, procurando aquelas o bem e o mal, estas o verdadeiro e o falso, porque sem raciocínio não pode julgar-se a coberto de erro».

E assim é que o «nosso silogístico», como lhe chama Cenáculo, observa que, quem quer saber se o que se afirma pela palavra é verdadeiro, tem que atender a um terceiro termo, ou como Aristóteles lhe chama, ao médio, «porque se este se combinar e concordar com ambos os objetos da questão diremos a afirmação verdadeira, e se, pelo contrário, concordar apenas com um, pronunciaremos ser verdadeira a negativa (veram esse negantiam pronunciabit)».

Gouveia comprova esta doutrina com um exemplo, que é desenvolvido por uma forma tão correta que o grande Cenáculo lhe chamava «um lindo exemplo de tecer um silogismo convincente sem argúcias exóticas, nem atqui ergo pretendido pelos que mais gostam da casca».

Assim, suponhamos que se propõe a seguinte questão: «é concubina a esposa com quem vivemos?».

«Para a decidir temos de procurar um terceiro termo, que devemos tirar dos lugares da argumentação. Encontro o matrimónio, que julgo coincidir com a esposa que temos em casa, e não com a concubina, e sem nenhuma limitação concluo — não é concubina a esposa com quem se vive.

Encontro além disso a retribuição e vejo que a concubina recebe uma retribuição, que a esposa não recebe, e concluo — a esposa não é concubina.

É esta a força, a eficiência do silogismo, que está na maneira, e por assim dizer, na forma de encadear e ligar a argumentação. Ensinado por Aristóteles nos Primeiros Analíticos, como o repetiria nos Segundos?».

Passando ao oitavo livro dos Tópicos, Ramo dizia pertencer ao exercício — «talvez, nota Gouveia, por conter a disposição dialética».          

Mas, naturalmente, ocorre perguntar: «por que razão se não atribuem todos os Tópicos ao exercício, a despeito dos sete primeiros livros se referirem à invenção dos argumentos»?     


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