2. Reflexões sobre Teixeira de Pascoais

Foi de homem simples o curso da vida de Teixeira de Pascoais. Sem lances e incidentes fora do comum, sem brados e rasgos de comoção política ou religiosa, que são os arautos mais velozes da notoriedade, sem episódios memoráveis e até sem anedotas significativas, a existência deste homem singular e extraordinário foi totalmente dominada pela entrega à sua missão literária, no isolamento tranquilo e inspirador da sua terra natal. O que domina e prende neste homem, de viver trivial mas singular nos modos e até nos vincos fisionómicos, é a originalidade do seu génio, que irrompe irresistivelmente, sem alarde nem cálculo, espontâneo e pujante. De vida puramente interior, mas não de alma erma e solitária, atento somente aos apelos da sua sensibilidade e ao que com eles se identificava, tudo em Teixeira de Pascoais é testemunho irrefragável de um espírito vivente num mundo de configuração própria, sem o centro e sem as coordenadas do mundo que nos é habitual. Dá gosto conviver pela leitura com um ser tão raro, pela autenticidade da inspiração e pela sinceridade com que se abre, sem reticência nem premeditação. Conviver com Pascoais, insisto, é um prazer que enleva, apesar da mágoa que afetivamente me pesa, porém no que vou dizer não deixarei correr a admiração sem alguns entraves de crítica nem tão pouco submeterei a exposição à cadência do elogio académico nem aos andaimes da comunicação erudita, aliás prematura, dada a proximidade da memória do Poeta nos nossos corações e na nossa saudade.

Desejo somente justificar com ' as razões da compreensão, e não com as da história literária, com os da análise, temática ou ainda com os valores da estética, a admiração; que desde a mocidade rendo ao génio de uma obra, que considero expressão genuína da mentalidade poética e, enquanto tal, única e sem par na nossa língua. Com estas palavras não quero dizer que Teixeira de Pascoais seja o melhor dos poetas portugueses. Não. Longe de mim o propósito de estabelecer paralelos literários e de fazer análises estéticas em ordem a juízos de comparação, tanto mais que tenho por seguro que os grandes poetas portugueses, precisamente por terem personalidade própria e irredutível, possuem características peculiares que os tornam os melhores em conformidade com a sua maneira de ser e com os valores estéticos do seu poetar. Colocando-me predominantemente no terreno das estruturas mentais e no das maneiras de configurar a existência, digo somente que a obra de Teixeira de Pascoais, na totalidade e na diversidade das suas manifestações, exprime, como a de nenhum outro escritor português, a mentalidade poética, no que esta tem de genial e de extravagante, de revelador e de vazio, de enlevo e de torpor, de iluminado e de espectral. O que Pedro Nunes significa para a mente que demonstra com rigor, Garcia da Orta para a mente que descreve com exatidão, Pedro da Fonseca para a mente que comenta, Herculano para a mente que reconstitui historicamente, Vieira para a mente que explora os recursos da palavra, Teixeira de Pascoais o significa para a mente que poetiza. Da sua obra se não pode dizer com propriedade que se reparte pela poesia e pela prosa nem que a vazasse em géneros mais ou menos diferenciados, porque tudo o que lhe saiu da pena é, pela estrutura mental e pelo ritmo interno, pura e genuinamente poético. Daqui, a unidade e a conexão de toda a sua obra, tão coerente e solidária, no conjunto e em cada parte, que a compreensão do sentido dos poemas somente se alcança plenamente com os enunciados de certos períodos das prosas, assim como a génese e o discurso do pensamento do prosador somente se explicam à luz da mentalidade poética. Impõe-se, por isso, que discriminemos na sua obra as raízes que lhe deram vigor, o alento espiritual de que se nutriu, e as expressões com que se manifestou e produziu; mas porque cada um destes assuntos impõe considerações próprias, será sobre a maneira de ser do poeta que mais atentamente refletirei.

Teixeira de Pascoais é tipo exemplar do homem isento de compromissos alheios aos ditames da própria consciência e do escritor devotado à realização da própria obra, ou mais exatamente, ao cumprimento do próprio destino. Bem nascido socialmente, independente e aliviado de preocupações do dia de amanhã, poderia ter gozado uma existência ociosa e regalada. Tudo sacrificou, porém, durante cinquenta anos de infatigável labor, ao seu destino “de maníaco escritor, sempre sentado à mesa de trabalho, com a caneta na mão”, como de si mesmo disse. Daí uma obra relativamente vasta, produzida quase toda, senão toda, no remanso do seu solar de Pascoais, onde a sua sensibilidade e a sua mente se vingaram da “banalidade citadina”, “meditando, aligeirando o espírito que voa à maneira dos pássaros e murmura no estilo dos regatos”, conforme o seu dizer.

“Em Portugal, ou a nossa aldeia, esse ninho de árvores e lembranças, ou a atmosférica Lisboa —, a vida pensativa e a leviana”, confessou; e, com efeito, a “vida pensativa”, que foi a vida que viveu, não é compreensível, e muito menos explicável, sem a situarmos no ambiente físico e moral em que se criou, desenvolveu e se extinguiu e, principalmente, sem a radicarmos morfologicamente na estrutura mental que lhe imprimiu unidade.

Poeta, e somente poeta, autêntico, sincero, convicto e confiado, sem outras dimensões que não fossem as da nativa constituição, nem por isso Teixeira de Pascoais se furtou, como aliás ninguém pode furtar-se às categorias da historicidade, isto é, não se desprende do conjunto de circunstâncias ambientais e epocais em que a sua obra se gerou e produziu. No que toca ao ambiente, a alma do poeta do Maranus compenetrou-se íntima e profundamente de três componentes locais: a casa em que nasceu e lhe decorreu a existência, com a constelação de sentimentos inerentes ao solar de família, sem aliás os imbuir de presunção aristocrática; a aldeia em que habitou, de algum modo continuação da casa solarenga, pelo eflúvio do viver simples, e, sobretudo a paisagem dos vales e serranias de Ribatâmega, pela propiciação de imagens e de representações que o conduziram à configuração de um mundo de factualidade imaterial.

A casa de família, a vida rústica, e a paisagem enquanto paisagem, não constituíram, propriamente, objeto do seu sentir e do seu configurar, mas a gestação espiritual e a atividade criadora do poeta das Elegias e do Maranus e do prosador do São Paulo e do São Jerónimo e a Trovoada produziram-se e desenvolveram-se com a revelação de imagens aurorais e funcionais que se radicam no ambiente amarantino.

Teixeira de Pascoais não se cansou de repetir que as raízes do seu espírito se prendiam ao Marão e ao Tâmega, mas, em rigor, não foi um enamorado da paisagem amarantina, senão um convivente com ela, o que equivale a dizer que se entregou totalmente à intimidade consigo mesmo e com o que intuía e configurava no ambiente que o rodeava. Sem o isolamento de São João de Gatão não é realmente explicável a criação dos poemas da Vida Etérea e de As Sombras, mas a função primordial e capital do isolamento, que não solidão e ainda menos soledade, consistiu em proporcionar à consciência do Poeta o convencimento de que viver é entrar em relação com o latente e com o que transcende inefavelmente a presença e atualidade das coisas. De si disse, no São Jerónimo e a Trovoada, que era “outro bárbaro nado e crescido, na remota Lusitânia, entre penedos e sombras, fantasmas de névoa e de granito”; e, no Duplo Passeio, que a infância lhe decorrera “entre seres mitológicos, o rio, a sombra das árvores, a tristeza da tarde”. Vivendo no isolamento não vivia só, porque a sua mente se habituara a conviver com realidades imateriais, tanto ou mais reais que as coisas patentes. “Quem não avista a solidão, ao cair da tarde, e o silêncio, à luz da Lua?” pergunta no São Jerónimo e a Trovoada e acrescenta: “Se a solidão e o silêncio não existem para lá das formas solitárias e silenciosas, então não existe a nossa alma —, as nossas ideias e sentimentos, em síntese personificada e animada”.


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