2. Reflexões sobre Teixeira de Pascoais

Esta é a mais original conceção de Teixeira de Pascoais, a que lhe valeu mais notoriedade e a correlata sequela dos aplausos fervorosos e das reservas perspicazes.

Levaria longe a análise da conceção saudosista, pela multiplicidade de problemas que suscita, pelo que me referirei somente ao que mais importa à respetiva génese e significado.

Como se depreende de numerosas referências, Teixeira de Pascoais foi levado à conceção da saudade em virtude da conexão que estabeleceu entre a lembrança e a esperança, as quais, como diz em Poetas Lusíadas, que é o livro onde se encontram as mais significativas páginas sobre esta conceção, “são as íntimas energias que trabalham o ser”. A esperança é o elemento ativo e criador; a lembrança é o elemento que dá fixidez e corpóreo relevo à criatura, sendo a saudade a consequência da compenetração da lembrança e da esperança, “casadas e excedidas num além de misteriosa e religiosa ansiedade”, como diz no mesmo livro dos Poetas Lusíadas".

Não pode dizer-se que Teixeira de Pascoais haja sido totalmente original ao estabelecer a correlação da lembrança e da esperança, pois Santo Agostinho, pelo menos, já a havia estabelecido nas páginas vívidas do Livro X das Confissões. É possível que Teixeira de Pascoais não tivesse lido estas páginas, quando pelos anos de 1911 se lhe precisou com mais relevo a conceção da saudade. Leu-as, sem dúvida, mais tarde na época da elaboração do seu Santo Agostinho,, nas tivesse-as ou não lido, entre o apologeta das Confissões e o poeta do Regresso ao Paraíso, que é o poema da consciência que se sente religada ao espiritual mediante o invisível e o inefável, há, pelo menos, esta diferença fundamental: o apologeta encontra a conexão da memória e da esperança na mediação de Cristo, isto é, na santidade, e o poeta encontra-a na mediação da saudade, isto é, a plenitude da consciência pela compresença da ausência, ou a vida vivida, e do desejo, ou a vida a viver. Mediante a saudade, o poeta sentiu a compresença de dois estados que a sua sede de individualidade e a sua fome de omnitude solicitavam: se a consciência saudosa é, sob certo aspeto, idêntica consigo mesmo, porque não é uma consciência que de outrem se receba, sob outro aspeto é consciência do diverso, por também ser uma consciência que se reporta a seres e essências que ainda se não tornaram atuais ou existentes.

Tanto basta para se notar que a conceção da saudade não desempenha na mundivivência de Teixeira de Pascoais algo de semelhante à essentia actuosa da substância na conceção de Espinosa, porque a saudade é intrinsecamente, para o poeta, a maneira pela qual ele intui na consciência o universal e ao mesmo tempo modela o universal em conformidade da sua maneira de ser além de lhe dar a mediação entre a ausência e a presença, o passado e o futuro. Por isso, a natureza, na intuição de Teixeira de Pascoais, não é o teatro indiferente e anónimo da causalidade necessária, mas o lugar onde se dão, como que organicamente, as essências e impulsos imateriais. Daí o energitismo que pulsa espiritualmente em toda a sua obra e cuja sugerência mais bela e significativa se contém nos versos famosos da imorredoira “Elegia do amor”:          

Cada folha que tombava Era uma alma que subia.

Tal é, em descarnado resumo, o que se me afigura nuclear na individualíssima e irredutível maneira de ser de Teixeira de Pascoais. As suas intuições e configurações da realidade e das personalidades históricas de que se ocupou pouco dizem à mentalidade que somente obedece às exigências racionais do rigor e da exatidão. Como de todos os grandes poetas, pode dizer-se que o seu pensamento foi gratuito e metafórico, tão gratuito e metafórico que se não deixa cingir em conceitos claros nem encadear em juízos coerentes e consistentes. É um pensamento poético, mas como tal não é um pensamento vácuo e inútil, porque nos dá duas coisas indispensáveis à vida do espírito: a primeira consiste na revelação de qualidades e de valores que estão fora da inquirição da mente estritamente lógica, sem as quais o banquete da cultura não tem beleza nem enlevo transfigurador; e a segunda consiste na libertação da consciência estética e intelectual. É que a cultura de um povo não se constitui com a estratificação e com a rotina de formas, de fórmulas e de locuções, porque vive e se nutre somente do ar puro, sadio e renovador, da indagação original dos seus sábios, da reflexão independente e audaz dos seus pensadores, do simbolismo e alada fantasia dos seus poetas e artistas e dos rasgos e iniciativas dos seus homens práticos. Ninguém como Teixeira de Pascoais, no século em que vivemos, arrebatou o espírito português às anónimas e sempre atuantes forças da estratificação da beleza, da rotina da locução e da inércia do pensamento, opondo-lhes a transfiguração da sua arte, a pujança do seu génio criador e a sugerência das suas intuições primordiais. Honrá-lo é dever da inteligência que se respeita e mandamento da consciência cívica que se preza.


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