2. Reflexões sobre Teixeira de Pascoais

“Em todos os meus livros, escreveu em 1936, no prefácio do São Jerónimo e a Trovoada, não obedeci a nenhum pensamento preconcebido, a nenhuma intenção agressiva ou defensiva deste ou daquele credo, tanto religioso, como político. Escrevendo, cedo apenas a uma necessidade espiritual de revelação ou confissão. Cumpro uma lei da Vida.”

Com efeito, Teixeira de Pascoais foi escritor por ditame vital e espiritual, obediente apenas ao imperativo da sua constituição psíquica. Outros o excederam na exploração dos recursos da palavra oral, no significado das conceções, na multiplicidade de dotes, na operosidade do trabalho: tais um Vieira e um Rui Barbosa na eloquência do verbo, um Camões na expressividade dos sentimentos, um Gil Vicente na ingenuidade da inspiração lírica e no arrojo da sua alma de guerrilheiro, um Garrett no viço e floração da sensibilidade, um Camilo na fecundidade da imaginação, um Teófilo na obstinação de todas as horas, um Oliveira Martins na presunção e na audácia do talento. O paralelo da estesia poética permitiria ainda admirar noutros poetas, mais vivamente do que em Teixeira de Pascoais, a musicalidade do ritmo, a modelação das imagens, a ênfase do verso, a comunicabilidade dos estados de alma, as inquietudes de consciência e o sentido da vida fecunda, exultante ou evanescente. Por mais longe e fundo, porém, que se leve o paralelo com a morfologia da sensibilidade e com a diversificação e expressividade da estesia, penso que se Teixeira de Pascoais tem parceiros na autenticidade e na sinceridade da inspiração, ninguém o igualou na virtualidade genésica da palavra e da metáfora, graças às quais o seu espírito criou um universo de f atualidade poética que se lhe tornou habitual e dentro do qual se produziu e objetivou toda a sua obra, de poeta e de prosador. Na sua mente, poesia e realidade, intuição e expressão compenetram-se íntima e inseparavelmente; por isso, o poetar de Teixeira de Pascoais não foi música nem estatuária, virtuosidade ou artifício, e muito menos espetáculo e passatempo, mas confidência e, sobretudo, revelação, em consequência da sua maneira de ser, que consistiu em estar poeticamente no mundo e, portanto, em não dirigir a mente para o mundo, já como lugar-onde de coisas práticas, já como expressão coerente de conhecimentos exatos. “O poeta é um enviado”, escreveu numa página dos Poetas Lusíadas. “Ele vem ao mundo afirmar as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da Vida e lhe dão um sobrenatural sentido. Ele vem sublimar o vulgar, revelar o grande que as pequenas coisas escondem, converter o ruído em harmonia e a harmonia em melodia. Só ele deu uma alma divina ao corpo bruto da, natura, completando a obra de Jeovah.”

Esta página, que somente um poeta que o fosse intrínseca e exclusivamente poderia escrever, mostra bem a índole e o teor da mentalidade poética. Ao contrário do sábio e do homem prático, a mente do poeta que o é radical e constitutivamente, não entra em contato com as coisas, senão que as coisas é que entram em contato com a mente do poeta e sofrem pelo contato uma estrutural transfiguração. Ë que, verdadeiramente, a mente do poeta não se ocupa das coisas como elas são, mas das vivências que as coisas despertam. Por isso, enquanto o homem de ciência se esforça por dizer como são as coisas do seu comportamento concreto e até, às vezes, o que elas são objetivamente, isto é, para todo e qualquer ser dotado de razão lógica, o poeta, que o é intrinsecamente, dá-nos, pelo contrário, a impressão subjetiva que o contato das coisas lhe suscita. O sábio dá-nos o resultado da experiência criada, conduzida e expressa pela razão lógica, e tanto mais rigorosamente quanto mais a traduzir na linguagem das relações quantitativas; o poeta dá-nos a vivência de uma experiência subjetiva, conduzida pela emoção e expressa pela imagem e pela metáfora, e tanto mais original quanto mais se traduzir por forma pessoal e inconfundível.

Quer isto dizer que o poeta não pode ser pensado sem o objeto da sua poesia, isto é, poeta e poesia têm de ser pensados na relação que mutuamente mantém a palavra e a coisa que ela exprime. Se não erro, é esta relação que conduz à apreensão da radical originalidade de Teixeira de Pascoais e à sua significação singular na história da poesia portuguesa.

Na quase totalidade dos nossos poetas é manifesto o sentido realista. Com maior ou menor adaptação, estão no mundo da ciência ou no da experiência de toda a gente. Assim Gil Vicente situa a chacota, a crítica e a parénese no mundo trivial e alegórico do homem medievo; Camões, aliás coerentemente, situa a epopeia da vontade resoluta no mundo da física aristotélica e da astronomia ptolemaica, tidas por expressão exata da realidade; Antero situa o ideal da aniquilação da vontade como termo das dores da consciência num Universo que, após Eduardo de Hartmann, pensava que era metafisicamente coerente com a ciência moderna; e outros poetas, situados na experiência do mundo quotidiano, transmitem, dentre outros estados, a evasão de dadas circunstâncias ou de certos momentos, ou se entregam ao fluir da emotividade ou ao apelo da fantasia. Em todos, o mundo em que se situam é dado não só como patente mas ainda como real e consistente, pouco ou nada importando o sentido e o teor dos objetos dos seus estados, emoções ou fantasias, visto pressuporem e radicarem no mundo que lhes é dado tal e qual. A poesia que nos transmitem é essencialmente poesia antropocêntrica. Com Teixeira de Pascoais outro é o sentido do poetar. Como acentuei, a sua obra não se compreende sem o recurso à estrutura da mentalidade poética mas não se explica totalmente por ela, porque o poetar de Teixeira de Pascoais situa-se numa conceção do Mundo não só diversa mas hostil à conceção científica. É um poetar predominantemente ontocêntrico e não somente antropocêntrico, tanto mais que a sensibilidade e a reflexão se conjugaram para lhe ditarem a convicção plena de que “o destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus”. É que o homem lhe não aparecia somente como sujeito lógico, mas também, e acima de tudo, como lugar ontológico, de realidades essenciais, que estão para além do mundo da Ciência, ou seja o mundo, não do conhecimento mas do reconhecimento, o qual cria atingir mediante intuições e vivências mais expressivas e valiosas do que os dados e juízos do mundo do conhecimento científico.

“Nunca me conformei com um conceito puramente científico de existência, ou aritmético-geométrico, quantitativo-extensivo”, escreveu em O Homem Universal. “A existência não cabe numa balança ou entre os ponteiros dum compasso. Pesar e medir é muito pouco; e esse pouco é ainda uma ilusão. O pesado é feito de imponderáveis, e a extensão de pontos inextensos, como a vida é feita de mortes. A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa nem eletromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atómico perdido no infinitamente pequeno, ou da nebulosa Andrómeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia!

“A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão. Esta apenas descobre um simples jogo de forças repetido ou modificado lentamente, gestos insubstanciais, formas ocas, a casca dum fruto proibido.


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