[O ideal moderno da ciência]

Na atitude valorativa, pelo contrário, o espírito ordena as coisas e os fenómenos em relação ao homem, isto é, a um certo valor reputado absoluto, e trocando o ser pelo dever-ser, encontra nos modos optativo e imperativo a sua expressão adequada. Segundo a nossa mentalidade de ocidentais é essencial à ideia de universo a de cosmos, isto é, a ordem e a harmonia, tão essencial e constitutiva, que dificilmente revivemos a estupefação de Pitágoras quando descobriu as maravilhas do número, e repudiamos como índice da suprema monstruosidade da imaginação cética a hipótese cartesiana de um diabrete, cujo génio trapaceiro nos ludibriasse permanentemente. Simplesmente, a ordem e a harmonia do universo podem ser estabelecidas em função do ser ou em função do valor, e assim teremos dois universos diferentes, o universo do ser, e o universo do valor, relativamente autónomos, porque, como nos adverte a experiência quotidiana, o que existe pode não valer, e o que não existe, reputar-se o valor supremo, como a justiça, a beleza e a bondade, sempre apetecidas e jamais logradas. Foi a atitude valorativa que impregnou o nosso espírito setecentista, e cuja estrutura se manteve para além dos limites cronológicos do século. Em rigor, os objetos físicos não entraram no âmbito das suas dúvidas e inquirições. Atribuiu-lhes, claro, a existência do realismo ingénuo da perceção; mas conferindo-lhes existência e utilizando-os, o nosso setecentista quedava-se indiferente às inquirições teóricas que sugerem, porque, crente na física de Aristóteles e vendo a natureza através dos livros, trocara o mundo da visão objetiva pelo mundo das intelecções virtuais. O seu espírito era dominado, não pela consciência dos objetos, mas pela consciência do valor, isto é, pelas qualidades irreais que as coisas podem sugerir. Eu podia verter, sem grande esforço, uma cornucópia de exemplos; mas permiti que peça apenas a verificação a D. Francisco Manuel de Melo, homem quase completo e que com o padre António Vieira partilha a glória de ter possuído a inteligência mais penetrante do seu século. Fiel ao espírito da Contra-Reforma, tão universalmente dominador que nele não descobrimos uma ninfa Egéria e mais dificilmente ainda as vagas dissimulações da tendência humanista, na introdução do Tratado da Ciência Cabala, o qual é um requisitório erudito, que não científico, contra essa aberração do século que lançou os fundamentos da ciência da natureza, D. Francisco louva a constância na fé tradicional da nação. Este louvor, de natureza supratemporal, não revela o tipo histórico de mentalidade cuja estrutura tentamos apreender, porque o observamos, e os vindouros observarão, pela presença irrefragável do numinoso, pelo valor incomparável da caridade, da qual a filantropia contemporânea é quase sempre um hostil desvio, e pelo sentimento de universal dependência e irmandade, que encontrou na mais emotiva das orações, o Pai-Nosso, a sua expressão profunda e inconsumível. Mas ao louvor do crente acrescentou o juízo revelador de um estilo de pensamento, quando escreveu que “esta observância em nossos maiores tão bem verificada, os manteve sempre receosos de toda a perigosa especulação, contentando-se de saberem o necessário para dirigirem congruamente suas ações do corpo e espírito, sem alguma mistura de supérfluas disciplinas, cujo exercício, aceite aos homens pela novidade, sói levantar o entendimento humano a uns altos donde de ordinário se precipita”. Em todos os tempos se ouviram palavras idênticas, porque é da índole da natureza humana persistir no mesmo elenco de impulsos vitais; simplesmente a relação dos impulsos entre si pode ser diversa, e é justamente na disposição deles que reside a singularidade da época do nosso poliistor e moralista. Como haveis reconhecido, ele relegava para a superfluidade o afã de saber, curando acima de tudo de não pecar, errando. Assumira, assim, a posição do homem que valoriza, sob a ideia de que a ordem que reina no universo é uma ordem teleológica, ou, mais precisamente, uma ordem que hierarquiza e subordina todas as coisas a um fim supremo, de natureza ético-religiosa, corno é óbvio. Em seu juízo, mais um eco, que uma criação, o mundo “envelhece, caduca e vai caindo em novas corrupções e delírios”, o que tanto monta dizer que situava num passado longínquo a idade de ouro da humanidade, e, ao mesmo tempo, vituperava a introdução de “disciplinas novas e agradáveis contra a força e virtude da sólida verdade”.

No grande duelo entre a natureza e a cultura, cuja carta de desafio fora lançada com gesto varonil durante a Renascença, o nosso setecentista tomou a posição beligerante de conceber a história anti progressivamente, isto é, corno marcha para a 'decadência e caducidade. No íntimo, reputava-se um soberano transeunte pela natureza física, e daí a inapetência científica, e, mais do que inapetência, desconfiança dos resultados pragmáticos da cultura, porque urna espécie de misologia lhe gerara a suspeita de que a atividade da razão podia pôr em perigo o sossego do coração, a ordem teórica, a ordem prática.

É que o centro de gravidade da sua vida residia num mundo invisível aos olhos da face, mas substantivamente real ao coração; e bem vedes, Senhores, que em tal atitude, o intento dubitativo e renovador se repercutia pelos céus, violando a lei suprema do homem, a qual consistia em pôr de acordo o seu pensamento com a lei dominadora desse mundo invisível. Convicta da autoridade dos antigos, a inteligência movia-se dentro de um sistema rígido de conceitos, refratários à análise. É óbvio que esta conceção dava ao homem a segurança e a posse do eterno: ele sabia donde vinha e para onde marchava. Todos os seus atos tinham então uma significação profunda, porque só ele, a um tempo ser racional e moral, possuía a substantividade plena; mas se o homem sabia donde vinha e para onde caminhava, o seu saber, introrsamente valorativo, edificava-se sobre a imobilidade da consciência intelectual. Jamais o nosso setecentista se debruçou criticamente sobre o intelecto para interrogar como surge o inteligível, e em que medida é que o universo do discurso coincide ou é coerente com o universo dos factos. Por isto, Senhores, ele trocou a investigação dos factos e a inquirição das ideias pela tortura das palavras; a curiosidade científica, pelo engenho literário, exuberante como em nenhum outro período; a ideia pela metáfora e a ciência e o amor do real pelo comentário erudito, pesadão e preguiçoso. Não foi uma peripécia casual a iniciação do nosso século XVII com os Comentários dos Conimbricenses à obra de Aristóteles, monumento de erudição e subtileza, o qual representa a nossa mensagem suprema ao saber europeu da época, tão relembrada nos nossos dias pela influência no pensamento de Descartes. Grandiosa e notável foi sem dúvida; mas a sua monumentalidade aparatosa continha no íntimo o anacronismo e um vício radical que impossibilitava a atividade científica no sentido moderno. É que o estilo de pensamento, que lhe estava subjacente, modelado pelo ideal aristotélico-escolástico de ciência, era em si mesmo contraditório com o ideal da ciência nova. Este estilo de pensamento, servido por um método perfeito de análise, a dedução silogística, apenas ditava ao pensamento que definisse e operasse o trânsito do género para a espécie e da espécie para o indivíduo. Por um lado, enleava a razão numa mecânica abstrata, que a isolava de todo o sentido renovador, e por outro, prendia-a a um saber estático. A Renascença, a época heroica dos grandes cometimentos, legara a ideia estimulante da autonomia da natureza, para a qual a gesta dos nossos descobridores concorreu na ordem empírica com estupenda ressonância, e forjou um novo tipo humano, servido por um novo estilo de pensamento. Desde então, e sobretudo no século XVII, que é o século do génio, como lhe chama Whitehead, e no século XVIII, o homem, confiante em si próprio e na racionalidade do ser, examina o que sabe, interroga o que o cerca, e pela alegria de criar, pelo prazer de explicar, formula um sistema do universo more geometrico, destrói a autoridade, substituindo-a pelo bordão ao qual se apoiará nas magníficas e inauditas jornadas: o método. Desde então, o homem já se não contenta em vencer a dúvida com o saber: quer ter a certeza de que não erra, e foi esta certeza, Senhores, que nos conduziu, a nós ocidentais, a um novo ideal de ciência e ao domínio sobre a matéria, do qual somos hoje, a um tempo, as vítimas e os felizes usufrutuários.


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