[O ideal moderno da ciência]

Este ideal, que foi o ideal de Descartes, de Galileu e de Newton, para só referir estes nomes gloriosos, não foi hostil aos valores morais e muito menos ainda desdivinizou o mundo; mas estabeleceu definitivamente que a posição valorativa, essencialmente pessoal, é impotente para explicar e dominar a realidade. E assim volvida a razão para a análise objetiva e para a descoberta das leis, o intento científico, como disse Galileu no Diálogo sobre os dois sistemas principais do mundo, o ptolomaico e o copernicano, consiste em mostrar como as coisas se passam, em vez de especular porque as coisas acontecem. Desde então, o espírito vive sob o acicate da dúvida. Distante do reino das soluções terminantes e definitivas, que a tudo davam uma resposta e impregnavam de sentido a vida, o espírito moderno, e mais ainda o contemporâneo, não marcha da solução para novas soluções, mas de problemas para novos problemas. Tendo começado no século XVI, mediante a crítica filológica e humanista, com o exorcismo da letra, em breve operou a deslocação imensa, que foi útil talvez para o domínio da matéria e trágica sem dúvida para o sentido da vida, de transportar as inquietudes humanas do plano da transcendência para o da imanência. Por isso, o ideal da ciência moderna não é estático e contemplativo; é ideal dinâmico, tenso para o futuro, que não para o passado, a tal ponto que Cournot pôde finamente dizer que “quelque bizarre que l'assertion puisse paraitre au premier abord, ia raison est plus apte à connaitre scientifiquement l'avenir que le passé”. Pode a senhora e serva deste ideal, a razão, apoiada no método, arrebatar o segredo à esfinge que nos circunda? Não seria agora adequado um ensaio de resposta, embora pense que o homem não pode dispor de outro instrumento. Limito-me, por isso, a dizer que nenhum dos grandes génios que instauraram o novo estilo de pensamento e modelaram o ideal moderno da ciência, duvidou da possibilidade, quaisquer que fossem as dúvidas e labores que previamente tivessem vivido. 

Data de então uma experiência inédita na história da humanidade, cujo alcance não pode vaticinar-se, e cujos resultados, iniciados na ordem intelectual e na explicação das coisas, invadiram a esfera da ação, quero dizer, da técnica, e já penetraram, e mais prometem penetrar no nosso século, e nos vindouros, a própria morfologia da vida humana.       

O ideal moderno da ciência, que teve no processo de Galileu o seu momento dramático, porque este processo, como observou Bertrand Russell, não significa em rigor o conflito entre a ciência e a religião, mas a pugna entre o espírito de indução e o espírito de dedução, isto é, entre a ciência que se elabora e a ciência já feita, sobre a qual se discorria dedutivamente, carecia de uma forma de associação humana, que fosse a sua expressão visível. Se a ciência é uma marcha, o que, diga-se de passagem, é contestável, se ela tem por objetivo, o que admitimos, a explicação inteligível da realidade idêntica e uniformemente para todos, da sua própria natureza resulta que ela tem de eliminar o individual e o qualitativo para se situar nas relações constantes entre os fenómenos e na redução do heterogéneo ao homogéneo. A precisão instrumental do método científico conduz atualmente o sábio, com relativa facilidade, à impessoalidade objetiva; mas na aurora da constituição da ciência natural, o sábio careceu de confrontar e conferir as suas experiências e as suas conclusões com as dos seus pares, e foi esta necessidade, Senhores, que fez brotar do próprio exercício da atividade científica as Academias.       

De início simples reuniões privadas, em breve se consolidaram em instituições oficiais, quando o novo ideal científico, tenso para a criação e para a descoberta, se comunicou e difundiu. As academias tornaram-se, pois, a expressão concreta do racionalismo científico — assim como, a partir do século XIII, as universidades foram a expressão da ciência consolidada, que apenas exige que a transmitam. Duas estruturas mentais diversas, como é óbvio, e portanto morfologias diferentes de convívio. A nova forma de convivência, iniciada em 1603 com a Academia dos Linces, à qual o génio de Galileu, em 1616, emprestou muito da sua glória, propagou-se à Europa culta, designadamente à França, em 1658, com a Academia das Ciências; à Alemanha, onde Leibniz, nos fins do século, funda uma Sociedade de Ciências, que foi a mãe da Academia das Ciências de Berlim; e à Inglaterra. Talvez nenhuma destas instituições, todas aparentadas, definisse tão precisamente o seu objetivo como a Sociedade Real de Londres, ao estatuir que apenas congregaria quem se consagrasse “a matérias filosóficas, à física, à anatomia, à geometria, à astronomia, navegação, magnetismo, química, mecânica, e às experiências sobre a natureza”, sem que “a Sociedade faça suas as hipóteses, sistemas ou doutrinas sobre os princípios da filosofia natural, propostos ou mencionados por um filósofo qualquer, antigo ou moderno”. Escrevendo a Espinosa, Oldenburg dizia4he em 1661 que no “Colégio filosófico [de Londres] se aplicavam a fazer observações e experiências com o possível cuidado e a estudar as artes mecânicas. Nós cremos”, acrescentava, “que as formas e qualidades das coisas podem explicar-se por princípios mecânicos e que todos os efeitos observáveis na natureza resultam do movimento, da figura, da estrutura e das suas diversas combinações, sem haver necessidade de recorrer às formas inexplicáveis e às qualidades ocultas, asilo da ignorância”. A academia, no sentido geral, tornou-se, pois, sinónimo do labor pessoal, da investigação científica, da liberdade crítica, tão intimamente, que o signo do seu nascimento é simultaneamente a sua lei e razão perdurável de ser.

A hora portuguesa soou em 24 de Dezembro de 1779, quando o Duque de Lafões, frequentador do salão de Helvécio, ao que suponho, e, ao que se sabe, culto, viajado, discretamente racionalista e amante da observação da natureza, a grande paixão do findar do século XVIII, arrebatou à assinatura do secretário de Estado o aviso régio estabelecendo a Academia Real das Ciências. Com esta data, na qual a modernidade científica ressoa com a maior vibração que na reforma pombalina da universidade, se anunciou, não tão definitivamente como desejaríamos e carecemos, o termo da era da confusão do livro com a experiência, da glosa com o saber, da erudição com a ciência, que haviam sido o lema e o supremo defeito da Academia Real da História Portuguesa.

Desde esta data já não havia lugar para as exortações e requisitórios de isolados franco-atiradores, como Castro Soromenho, o newtoniano, Ribeiro Sanches, o sábio e colaborador da Enciclopédia, e o semi-discípulo de Genovesi, Verney, a quem um redator da Acta Eruditorum, de Leipzig louvava como tratadista da lógica. O novo teor de pensamento conquistara verticalmente os dirigentes intelectuais da nação, e se a primeira oração pública de Teodoro de Almeida foi uma manifestação de orgulho provinciano, não isenta de combatividade, poucos anos depois Aragão Morato vindicaria a omissão placidamente, escrevendo que “só a observação e a experiência podiam ser a regra segura dos trabalhos a que se dedicavam” os académicos. “Caminhar ao mesmo tempo no profundo conhecimento da natureza pelos diversos caminhos que a ela conduzem”, acrescentava, “levantar a língua e a história portuguesa do abatimento e confusão, onde ainda a haviam deixado penosos esforços de homens sábios e ilustrados; esclarecer sobretudo as classes secundárias da nação e tirar do santuário das ciências, impenetrável ao vulgo, os conhecimentos práticos, que influíssem nos agricultores e artistas e dessem urna útil direção aos seus trabalhos, eis aqui a nova e gloriosa empresa dos primeiros sócios”. A obra da Academia, quaisquer que tenham sido as suas vicissitudes, que no fundo são as vicissitudes da própria cultura nacional, é a prova da vitalidade deste programa. Eu não posso historiá-la nem julgá-la, reportando-a às conexões de ideias e sentimentos comuns ao pensamento ocidental e aos anelos e ditames da nossa comunidade pátria. Falecem-me, para empreendimento de tanto alcance, o tempo e a competência; mas ao estabelecer a segunda conclusão a que somos chegados, isto é, que o advento da nossa Academia representou a consagração do espírito científico e do ideal de ciência gerado no século XVII, formula-se o problema da sua significação atual.


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