7. Anotações ao Liber De Crepusculis de Allacen

Como a obteve?

Ignoramo-lo; nem diretamente, num passo da sua obra, nem indiretamente, por notícias de contemporâneos, lográmos qualquer informe seguro. Só temos, pois, o caminho das conjeturas...

A primeira, baseamo-la na própria informação de Regiomontano.

Quando o famoso astrónomo, de obra vasta para vida tão curta, indicara aos estudantes de Pádua o De crepusculis de Allacen, não lhes repetia uma notícia de segunda mão, porque falava com conhecimento de causa. É que em Viena de Áustria, quando aluno de Jorge Purbáquio (Peurbach), tivera ensejo de ler o manuscrito desta obra copiado por seu mestre, que aliás copiara outras traduções de Gerardo de Cremona. Este manuscrito existe atualmente na Biblioteca Nacional de Viena de Áustria, no fim do códice 4799 (fols. 77 v-78 r) com o título: Liber abhomadi in alfegeyr est in crepusculo.

Teria Pedro Nunes obtido cópia deste manuscrito, como obteve a do De ponderibus, de Jordão Nemorário, convencido de que Regiomontano não falara em vão, apesar do De crepusculis de Allacen não figurar no imponente Catálogo —Hae opera fient in oppido Nuremberg Germaniae ductu Ioannis de Monteregio, inserto, como já dissemos numa nota (hic, supra), na TabulaeElypsiü... (1514) de Purbáquio?

A resposta reclama, naturalmente, como condição prévia, o cotejo do manuscrito vienense com o texto publicado por Pedro Nunes. As atuais circunstâncias calamitosas da Europa impedem-nos esta tarefa, que adiaremos para melhor oportunidade; em todo o caso permitimo-nos supor que não foi a cópia deste manuscrito, ou de um do seu tipo " que Pedro Nunes logrou obter pela solícita diligência de um amigo ou correspondente, porque consideramos mais admissíveis as seguintes conjeturas, que nos transportam, respetivamente, para a vizinha Espanha e para o nosso próprio país.

Baseia-se a segunda conjetura no seguinte passo que destacamos em itálico, do De arte atque ratione nauigandi (Livro II, cap. IV):

“Quod autem dicit Alphonsum Regem Albategnii opus non legisse, guia nondum in Latinum translatum esset, falsum est. Nam Arabicis libris omnino usus fuit, quibus eo tempore tota Hispania pleníssima erat, et adiutus mauris quibusdam Toletanis tabulas caelestium motuum construxit. Quin in opere illo magno Hispanice ab eo conscripto quod in Complutensi extat Bibliotheca ipsas tabulas qum circumferuntur posuit, tabulas etiam Ptolemmi et Albategnii, ut liceret cuius quibuslibet tabulis uti. Sed hwe notiora sunt, quam ut a nobis inculcari sit necesse”.

Segundo o nosso ponto de vista, ressalta claramente das palavras grifadas que Pedro Nunes viu em Alcalá de Henares, na biblioteca da então famosa universidade complutense, o manuscrito dos Libros dei saber de astrologia de Afonso o Sábio, que só foi dado à luz pública

em 1863, e sabia perfeitamente, afirmando-o com plena segurança, que no tempo do famoso monarca, avô de D. Dinis, o rei trovador, abundavam na Espanha livros arábigos e respetivas traduções latinas.

Não é crível que tivesse examinado este manuscrito pelos anos em que frequentou a Universidade de Salamanca (1521? 1525?), porque tais curiosidades e canseiras não são normalmente toleradas pela verdura dos anos e pelos impulsos e aspirações de quem felizmente vive mais como estudante que como estudioso. Demais, o De arte atque ratione nauigandi é o resultado de ampla e profunda refundição dos dois tratados finais do Tratado da Sphera publicados em 1537, e a circunstância de só nele se referirem os Libros dei saber de astrologia inculca que o exame deste manuscrito foi feito depois de 1537, ano em que, como dissemos, foi publicada a Oratio de Regiomontano, pela qual teve conhecimento de um escrito de Allacen sobre o crepúsculo.

Nestas condições, havendo quase a certeza de que Pedro Nunes visitou a biblioteca da Universidade de Alcalá de Henares depois de 1537, é de conjeturar que foi nas suas estantes, famosas pela abundância de escritos árabes, que encontrou o Liber de crepusculis de Allacen, e não no arquivo da catedral de Toledo, de acesso dificultoso e onde não consta existir nem ter existido o manuscrito desta tradução de Gerardo de Cremona, apesar de a ter levado a cabo na imperial cidade.

Finalmente, pode ainda conjeturar-se que Pedro Nunes não necessitou sair de Portugal para obter esta obra, porque poderia ter disposto do manuscrito numa biblioteca portuguesa, possivelmente a livraria real, que parece ter tido largo desenvolvimento no reinado de D. João III.

Estão por fazer, com ampla e precisa informação, os inventários das nossas livrarias medievais e quinhentistas, e sem eles são precárias certas hipóteses e correlações literárias e histórico-científicas; em todo o caso, a sobrevivência na nossa primeira biblioteca de um códice com várias traduções do arábigo e do hebraico para latim, designadamente de Averroes, de Alfarabi, de Al-Kindi, de Maimónides, de Isaac ben Saiamo, e com escritos de Juan de Sevilla e de Domingo González prova que até nós chegaram algumas das versões do notável grupo de tradutores de Toledo, não importa para o caso se cedo, se tardiamente. Se assim foi, porque não admitir a hipótese de entre estas traduções se encontrar a do escrito de Allacen, feita por Gerardo de Cremona, o mais operosa de todos estes tradutores?

Seja como for, Pedro Nunes logrou ter à sua disposição, por esforço próprio e não por dádiva de influente personagem, porque o teria declarado segundo o estilo moral da época, o manuscrito da obrinha de Allacen, e com o afã característico dos humanistas e eruditos do seu século, aos quais tanto deve a cultura europeia, deu-a à luz pública, não sem vencer dificuldades de leitura e de interpretação: “Sed id adeo deprauatum et mendis corruptum inueneram, ut plus in alieno codice castigando, quam meo de integro cudendo sudauerim” (vol. II, p. 7, 11. 4-7).

Como já dissemos, não chegou até nós o texto árabe de Allacen e, portanto, não pode contraprovar-se exatamente a versão de Gerardo de Cremona, cuja atividade, inseparável dos progressos científicos do século XIII, se desenvolveu em Toledo, onde faleceu, ao que parece, em 1187.

Esta circunstância, porém, não exclui algumas observações que amplamente justificam as dificuldades com que Pedro Nunes deparou e teve de vencer. A primeira, resultava do facto de Gerardo de Cremona ter impregnado de arabismos o texto latino do Liber de crepusculis, como reconheceu Kastner; e a segunda, procedia do método com que trabalhava e da sua ausência de preocupações de rigor científico, como observou o Sr. O. J. Tallgren. Este ilustre professor da Universidade de Helsínquia, submetendo algumas partes da versão do Alma jesto que Gerardo de Cremona fez do árabe para latim a sábia e meticulosa crítica, escreveu o seguinte, que cremos ter pleno cabimento em relação ao texto que Pedro Nunes teve de expurgar para o tornar publicável:

“(...) Gérard manque de sens critique et commet, malgré la collaboration avec un moçarabe [Galib], toute sorte d'erreurs térnoignant d'une connaissance insuffisante de ia langue arabe, pour ne point parler des arabismes de syntaxe qui rendent difficile de comprendre son latin barbare sans recourir au texte arabe (...). On ne trouve dans ia traduction de Gérard aucun indice qui nous fasse songer qu'il ait connu l'opportunité d'étudier, soit un globe céleste ou d'autres gravures, soit le ciel étoilé. Il ne s'est manifestement préoccupé que d'une traduction mot à mot et, pour ainsi dire, lettre à lettre, avec un minimum de critique quant aux leçons à choisir”.

Como editor consciencioso, Pedro Nunes realizou a depuração literária e, segundo cremos, a correção científica da versão de Gerardo de Cremona nas laudas que serviram para a primeira edição; no entanto, como adiante se aponta e acima se disse já, emendou ainda o texto da segunda edição.    


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Vamos corrigir esse problema