A minha resposta ao último considerando do decreto que desanexou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

A minha resposta ao último considerando do decreto que desanexou a faculdade de letras da Universidade de Coimbra

Foi desanexada a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pelo Decreto n.º 5 770, publicado no 14.° Suplemento ao Diário do Governo n.º 98, de 10 de Maio de 1919.

Não conhecemos em legislação alguma um diploma que, como este, tendendo a desprestigiar uma corporação, constitua precisamente a sua melhor justificação perante o País e os interesses da cultura. Anda a lógica tão subvertida no Ministério da Instrução que, — quem sabe? — Se se pretendesse louvá-la, talvez a exautorassem. Assim não. Está certo.

Poderia desfiar os vários considerandos desse decreto, focando a pérfida imbecilidade que denunciam. Mas não. Basta apenas para o meu ponto de vista o último — estrepitosa girândola final desse arraial de dislates.

Nele se acusa a Faculdade de Letras de ter «orientado, embora notavelmente, a cultura dos alunos de modo a darem preferência à erudição livresca sobre as especulações originais do espírito moderno, manifestando-se na filosofia revelada nas obras dos seus principais professores e alunos laureados uma quase completa orientação tomista de forma escolástica». Esqueça-se o retorcido da expressão e as escabrosidades gramaticais; mas atentemos na «erudição livresca» manifestada «na filosofia revelada nas obras dos alunos laureados» e na sua «quase completa orientação tomista de forma escolástica».

Não sei ao certo, embora se legisle tanto com sobrescrito, quantos e quais são os alunos laureados, que o decreto tão honrosamente distingue. Eu sou um deles — não é sem vaidade que o digo. Além de ter sido o único candidato à secção de Filosofia da Faculdade de Letras, acresce a declaração que um dos autores do decreto, o Sr. Joaquim Coelho de Carvalho, me fez e mais tarde ratificou a alguns dos raros que tinham de subir... o calvário da Reitoria.

Este bacharel julgava-me duma «erudição rara na minha idade, mas com o espírito deformado pela escolástica». Entre as minhas convicções políticas e ideias filosóficas notava um abismo... Era lá possível que um republicano se tivesse ficado intelectualmente pelo século XIII?

... Isto pensava um homem, cujo passado republicano se limita... a ter sido o indigitado ministro dos estrangeiros no movimento de 13 de Dezembro e que num mês de consulado na Universidade quis percorrer vertiginosamente o caminho que poderia ter seguido durante os 60 e tal anos da sua vida...               

Tanto correu que, rebentando, se estatelou. Passemos adiante...        

Simples assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, não posso, pelo muito que lhe devo, pelo mais que lhe quero, deixar de me justificar perante ela e perante a alma-mater, a Universidade. O que vai ler-se não é, pois, uma diatribe: é um depoimento. Terei de falar de mim: que se não leve à conta de vaidade o que não passa duma imperiosa necessidade. Orgulho, só o tenho de bem ter servido a Faculdade e por ela o meu País. Isto me basta.             

1. A minha «erudição livresca»

Formei-me em Letras, secção de Filosofia, em Outubro de 1915. Decorreu-me a escolaridade entre duas tendências: uma, impulsiva, que me arrastou ao mais ardente jacobinismo; outra, contemplativa, pela qual me isolava no meu quarto trabalhando delirantemente. Venceu, afinal, esta última, não sei se por mais forte, se pelas dolorosas desilusões da realidade, embora aquela se não apagasse ainda.         

O vivíssimo desejo de consagrar a vida ao estudo e a acolhedora informação final, com que a Faculdade me honrou, animaram-me a preparar o doutoramento, — preliminar legal dum futuro concurso, ao qual aspirava.              

Durante o curso, a meditação assídua de Kant, o convencimento de que a atitude criticista é a atitude verdadeiramente filosófica, sugeriram-me o anelo de haurir na Universidade de Marburg novas razões ao meu incipiente kantismo, seguindo os cursos de Cohen e Natorp e inteirando-me sur place do renovador movimento neo-kantiano.        

A guerra impediu-me; mas com ela vibrou o meu estreito nacionalismo, chauviniste, cuja essência perdurará sempre, quaisquer que sejam os crimes dos homens, embora atenuada de alguns pecadilhos, como o de ter reputado «meus irmãos em Portugal» criaturas como o atual ministro da Instrução. Passemos adiante... Voltei-me para os estudos portugueses. A vivacidade dos sentimentos levou-me a considerar conceptualmente, com Hegel, a história como o desenvolvimento do Espírito, isto é, o desenvolvimento da filosofia na história como a criação da própria filosofia. É então que começam os meus estudos de filósofos portugueses. Inteirei-me do pouquíssimo que havia escrito, organizei bibliografias (um dos crimes do considerando!), fiz leituras várias, e desde logo, apesar de reconhecer a pobreza da nossa herança filosófica, reputei prematuros os juízos de Bruno e Basílio Teles. Afigurava-se-me, e afigura-se-me, que o que se impõe são estudos sérios: a conclusão virá por si.

A estas razões puramente pessoais outras acresciam.

Todos nós, os rapazes meus contemporâneos que concorreram ou fizeram atos grandes na Universidade, quaisquer que fossem as nossas ideias políticas ou religiosas, quaisquer que fossem as nossas preferências científicas ou filosóficas, estudámos sempre a feição nacional que elas revestiam. As teses dos últimos anos aí estão a prová-lo, não as lendo só quem não quer ou não sabe. Demais, se era na História da Filosofia que eu queria especializar-me, não devia porventura provar à Faculdade que, antes de a ensinar, era capaz de a versar e expor com seriedade?

Por tudo isto, e pelo mais que não vem a propósito, escrevi as dissertações de doutoramento e concurso, respetivamente sobre António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença (A. de G. e Pedro Ramó) e Leão Hebreu, Filósofo (Para a história do platonismo no Renascimento).

No prefácio daquela, escrito em 1916, exprimi claramente a ideia que me guiava, e, para documentar o que acima digo, aqui transcrevo a seguinte passagem:

«Apesar de contestada [a filosofia portuguesa] por uns, indiferente à maior parte, mas aproveitada por estranhos, pensamos sempre que o Génio Nacional, como unidade viva e livre, se deveria refletir na Filosofia.

Com efeito, se uma nacionalidade é em si um produto espiritual, para nós mais representativo do que a comunidade de interesses, sentimentos,tradições, língua, caracteres étnicos, autonomia do poder político, etc., com que ordinariamente é definida, se, por outro lado, a filosofia não é um estéril e vão exercício da inteligência, mas uma exigência imperiosa do espírito, o que impede teoricamente que um povo livre, na plenitude da sua autonomia, se afirme e reconheça, independentemente doutras manifestações, na Filosofia? Apesar do valor universal dos problemas filosóficos, quem é que não distingue o claro utilitarismo inglês do obscuro metafisicismo alemão, e não põe o senso prático dos romanos à subtil e fecunda especulação helénica?

Abstraindo, porém, desta possibilidade racional da nacionalidade na Filosofia, que nós incidentalmente aflorámos, os factos pouco a pouco nos formaram a convicção — temos a esperança que um dia devenha ainda certeza científica — de que a História da Filosofia Portuguesa é tão real como a História da Filosofia inglesa, alemã, etc., quando mais não seja, pela continuidade dos problemas, embora mais modesta, constituindo, portanto, um vasto campo a explorar, senão a descobrir. Nesse estudo quisemos colaborar e também, por nossa parte, contribuir para saldar a dívida de ingratidão para com os nossos maiores, que gerações educadas no lugar-comum nos legaram, e que onerosamente sobre nós, os novos, recai».


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