A minha resposta ao último considerando do decreto que desanexou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Isto me basta sobre as preferências eruditas.

Quanto a serem livrescas...

Adivinha-se o dégoût do jornalista, a fobia do estudo sério, fundamentado e com citações. Deveria abster-me de responder; mas sempre direi que meu Pai me educou no respeito à propriedade alheia, não distinguindo eu entre propriedade material e intelectual. Confesso à garrulice dos meus detratores, e em especial ao Sr. Joaquim Coelho de Carvalho, mais este crime. E dir-lhes-ei ainda que abomino o impressionismo e o que para aí chamam petulantemente crítica subjetiva; e, na regência das cadeiras que a Faculdade me confiou, em cada lição citei sempre a respetiva bibliografia. Como professor, procurei converter os meus alunos de escolares em estudantes, sugerindo-lhes que estudar não é só aprender cousas, e frequentar uma biblioteca na época heroica, que é a vida académica, deve equivaler a dialogar com Platão, ouvir Kant ou passear com Goethe no parque de Veimar...

2. A minha «quase completa orientação tomista de forma escolástica»

Sobre ser livresca, «a filosofia revelada» pela Faculdade de Letras é «tomista de forma escolástica».

Ex digito, gigans...

A imbecilidade deste juízo, só comparável à perfídia com que se lançou ao público!

Cronologicamente, esta acusação só surgiu quando o bacharel Joaquim Coelho de Carvalho reconheceu que o Conselho da Faculdade de Letras não premiava…o seu humanismo, propondo-o prof. de História Moderna e Contemporânea, nem sequer, ao menos, o contratava, recorrendo ao seu saber bíblico — tem umas traduções imperfeitas dos Salmos e do Cântico dos Cânticos, vertido este último dum hebreu que não sabe e odeia — para reger o curso de História das Religiões.

A miséria de tudo isto! Mas vamos lá ao tomismo de forma escolástica..., porque, além de tudo o mais, é ainda através das minhas dissertações que se golpeia a Faculdade.

Pondo os termos no seu lugar: não sou escolástico, nem tomista. Poderia sê-lo: não é crime, nem denuncia uma inferioridade intelectual. Da vasta obra do Aquitanense guardo apenas o que nela vive de eterno — o que o Espírito Universal nela incarnou, num momento dialético da sua evolução.

Perceberá o bacharel Joaquim Coelho de Carvalho o que isto quer dizer?

Não há em nenhum livro meu, nem na regência dos meus cursos, nada que prove ser escolástica, ou tomista a atitude do meu espírito.

Na dissertação sobre António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença (1916), se alguma coisa ressalta, embora lá se fale numa longa nota de silogismos em Barbara, Baralipton, etc., é justamente a reação contra o formalismo escolástico.

Numa memória que apresentei ao congresso de Granada sobre A teoria da verdade e do erro nas Disputationes Metaphysicae de Francisco Suárez (1917), onde se citam bastantes escolásticos porque... o assunto é escolástico, assim concluo : «Suárez foi verdadeiramente o último grande Doctor, e pelo seu eclectismo, método, rigor e subtileza, vive e perdura na sua obra toda a Escola; por isso, bem se compreende que Descartes e Espinosa o meditassem e da sua obra extraíssem 'abundante y de subidos quilates, aquel oro que Leibniz reconocia en la escolastica', como disse o insigne Menéndez y Pelayo. Dir-se-á, talvez, tão dogmático, que nem sequer aflora o problema da possibilidade da verdade, tão intelectualista, que o universo devém um silogismo em marcha, do mesmo modo que postulando a evidência como princípio criteriológico, não explica nem distingue a verdade do erro; mas insuficiências essas, se assim se podem chamar, que deram ao filósofo uma solução a todos os problemas, e ao crente o supremo prazer de tudo considerar sub specie aeternitatis».

Na dissertação sobre Leão Hebreu, Filósofo (1918), acentuando-se o seu platonismo algo florentino, ao expor as fontes da doutrina deste ignorado judeu português, fala-se na escolástica semítica, particularmente de Maimónides, que numerosas vezes cito. Que culpa tenho eu, que o Sr. Joaquim Coelho de Carvalho, ao lê-la, esgrimindo com as «especulações originais» (é do considerando) na ponta do seu lápis verde.., de sete estalinhos, tivesse touché uma... «quase completa orientação tomista de forma escolástico»?

Continuemos, com paciência e dó...

Como professor, procurei incutir aos meus alunos o amor dos estudos sérios — entristecido de ver ao que nos tem levado o psitacismo e o lugar-comum. Não declamei nunca, por princípio e ódio à retórica. As minhas lições não raro tiveram o carácter da elaboração dum estudo feito perante o curso. A apresentação dos factos, a sua conexão, o estabelecimento do princípio geral, numa palavra, todo o processus do meu trabalho e do meu espírito, o patenteei, para que a lição não fosse dogmática. Se para alguma filosofia solicitei em particular a atenção dos meus alunos, e nunca ex catedra, foi para o neokantismo: comentando na aula os Fundamentos da metafísica dos costumes, de Kant; suscitando-lhes em palestras — passeio com eles e nunca lhes fechei a porta — o interesse pela leitura de Kant, Renouvier, Lange, Natorp, e aproveitando os seus conhecimentos linguísticos para traduções, como felizmente pude fazer este semestre de inverno, confiando a um, melhor conhecedor do alemão, a versão do belo livro de Arthur Buchenau, Kants Lehere von kategorischen Imperativ.

Pensa assim o escolástico «aluno laureado» da Faculdade de Letras de Coimbra...        

3. O meu espírito universitário

Assistente vai para três anos, não possuo ainda uma obra; mas o pouco que tenho feito é honesto, absorvido pela ideia, que aqui se vive em Coimbra, de, honrando a profissão, servir a Pátria. Por isso não sou político, no baixo e sectário sentido da palavra; mas na modéstia do meu lugar sou universitário.

Acusam «o professorado da Universidade» de viver «como que insulado no seu trabalho especulativo, literário ou científico».

O espírito viajado, corrido, aberto a todas as comunicações e com horror ao vácuo; que se surpreende nesta tremenda acusação!

Que um teórico do amor e da solidariedade humana seja um semeador de ódios, e um grave académico, um humorista de café, justifica-se; mas é na verdade incomportável que um professor duma Universidade... seja um universitário!

O insulamento, o conventualismo da Universidade! Nunca dei por ele e jamais a minha irreverência tocou a rebate. Mas calculo que ninguém melhor que o Sr. Joaquim Coelho de Carvalho o terá sentido, passeando-se, de guarda à porta-férrea, arquiepiscopalmente — gosta que o venerem como prelado universitário — pelos salões desertos do Paço das Escolas, desiludido já do prestígio do seu mandarinesco botão de coral escuro, sem papagaios para deitar, falando, ninguém lhe respondendo, olhando, não vendo ninguém!

A cartuxa universitária...

Que irrisório seria tudo isto se não fosse monstruoso! Se nos querem tirar a liberdade de pensar e de exprimir as opiniões filosóficas ou científicas — que o façam, mas ao menos com grandeza, e sem cobardia.

Revoltar-me-ão, mas compreendê-lo-ei.

Para quem carece só da liberdade do café-concerto e sente apenas a necessidade das «mais variadas manifestações da atividade» (isto se diz num considerando do decreto), para que serve a libertas philosophandi, se não sabe o que é filosofia e não sente a angústia intelectual que esta palavra desperta em quem tem o amor da verdade?


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Vamos corrigir esse problema