Manuscritos de Filosofia do Século XVI existentes em Lisboa. Catálogo. Prefácio

A História da Filosofia tem por objeto as conceções acerca do Mundo, da vida e da existência humana. Conceções, e não modos de ver opinantes, porque a condição primária do acesso dos pensamentos com pretensão filosófica à consideração histórica é que sejam coerentes, isto é, mantenham entre si conformidade lógica, e consistentes, isto é, mantenham com os resultados do saber exato compatibilidade racional. Tanto basta para se inferir desde logo que não é possível fazer-se História da Filosofia sem espírito e sem saber estritamente filosóficos —, ou por outras palavras, a capacidade de repensar o pensamento de outrem e, sobretudo, de lhe apreender os rasgos originais e de lhe estabelecer as correlações e o significado.

Assim considerada, a História da Filosofia é pertença, criação e obra de filósofos, havendo-a vindicado como tal, para sempre, Aristóteles, que no livro A da Metafísica traçou o primeiro conspecto histórico-filosófico, e Hegel, que em lições memoráveis não só fundamentou a irredutibilidade do objeto da investigação histórico-filosófica como exprimiu o seu genial juízo acerca dos «heróis da razão pensante».

Não há, pois, História da Filosofia onde não houver historiação do pensamento filosófico, mas porque não há historiação filosófica onde não houver textos que exprimam o pensamento filosófico, é óbvio que a História da Filosofia pressupõe um conjunto de investigações preliminares relativas ao estabelecimento dos textos e às circunstâncias em que eles foram produzidos. Quer isto dizer, que a História da Filosofia comporta duas operações diversas e relativamente independentes, que cumpre descriminar com exigente clareza, por implicarem atitudes mentais e objetivos diferentes, e cuja confusão é funesta.

A primeira operação tem por objeto principal a individualidade dos filósofos e os escritos que produziram; é acentuadamente biográfica, bibliográfica e, por vezes, filológica. A sua função é preliminar e instrumental, pois consiste em proporcionar o acesso às fontes vivas do pensamento, por forma que os escritos filosóficos possam ser repensados em função da conceção ou das ideias que os nutre e compreendidos em função das conexões e das circunstâncias em que se produziram.

Sem a exatidão e largueza das bases textuais e sem o conhecimento das circunstâncias histórico-culturais, a historiação filosófica não alcança consistência nem se move dentro das coordenadas que a situam, mas é cegueira, para não dizer erro fatal, confundir este trabalho instrumental e prévio com o trabalho próprio do historiador-filósofo. É que a História da Filosofia enquanto tal não é biografia, nem bibliografia, nem filologia, nem história da cultura. O seu objeto não é constituído por palavras, ditos, opiniões ou feitos, mas por pensamentos filosóficos, já considerados em si mesmos, isto é, na originalidade da consciência reflexiva em que se geraram, já em relação aos problemas a que respondem, já em relação aos temas em que se integram, e, portanto, ao significado e valor de posição que ocupam. A historiação filosófica está para além das operações mentais que conduzem ao conhecimento dos textos e das respetivas circunstâncias biográficas e culturais. Ela começa, a bem dizer, quando se descobrem dois aspetos nem sempre claros e confessados na expressão do pensamento filosófico: o aspeto positivo, ou seja apreensão da conceção ou das ideias que o filósofo apresenta como sua criação, interpretação ou criação pessoal, e o aspeto negativo, ou seja, a repulsa, refutação ou substituição da conceção ou das ideias em relação às quais toma posição com a sua conceção ou ideias pessoais.

São estas considerações gerais como que de introito à apreciação do presente livro, a fim de o situarmos no lugar que lhe compete. Organizado definitivamente há muito, sai tardiamente a público por um conjunto de circunstâncias independentes da vontade da Autora e das quais somos, em parte, responsáveis.

Com estas páginas deu-nos a Senhora D.S Mariana A. Machado Santos mais um testemunho da sua devotada, isenta e benemérita dedicação aos estudos de História da Filosofia em Portugal, pois não foi possível organizar este livro sem a corajosa persistência com que durante largo tempo afrontou a aridez de fadigosas buscas. Não são, por isso, vulgares os trabalhos desta índole, mormente quando levados a cabo, como este, desinteressadamente e sem amparo oficial, mas para além do valor moral, de disciplina científica, estas páginas possuem realmente o que a sua organizadora quis que elas tivessem: préstimo, eficiência e valor.

A bem dizer, tudo está por explorar na terra incógnita da História da Filosofia em Portugal, como, de modo geral, na História do pensamento científico e da cultura, e em condições tais que o melhor meio de servir e fomentar tão árduos estudos consiste na elaboração de monografias de assunto preciso e delimitado.

O estudo geral não pode levar-se a cabo sem uma visão do desenvolvimento intrínseco do pensamento filosófico em Portugal, enquanto pensamento de problemas, já em conexão com a filosofia europeia, já em relação com as circunstancialidades históricas do nosso meio e da nossa índole. Sem isto não é possível escrever-se uma História da Filosofia em Portugal, pois o que importa não é que haja uma coisa com o nome de História da Filosofia em Portugal, mas que o que se fizer com este título se faça pela única forma séria segundo a qual as coisas se devem fazer, que é fazê-las bem feitas. Nesta ordem de ideias, os grandes e complexos problemas de metodologia, de interpretação e de conexão, têm de ser pospostos às indagações de objeto preciso e delimitado, sem as quais nunca houve nem pode haver progresso real e eficiente dos conhecimentos.

São muitos e variados os temas que solicitam a atenção, mas como é óbvio, dado não ser possível historiar o pensamento filosófico sem a existência de escritos que o exprimam, a todos sobreleva pela urgência o inventário e estabelecimento crítico dos textos filosóficos da autoria de portugueses. Grosso modo, são-nos acessíveis atualmente os escritos constituídos por livros impressos, mas já se não pode dizer o mesmo relativamente aos escritos vindos a público em jornais e publicações periódicas. O inventário destas últimas peças é particularmente importante para o estudo do movimento de ideias durante o século XIX.

As dificuldades e as exigências, porém, sobem de ponto no que respeita aos manuscritos. No que toca à Idade-Média, as indagações produzidas, quase todas de feição fragmentária e dispersa, não nos dão uma imagem perfeita da realidade. Em relação a certos autores, urge a publicação das suas obras inéditas designadamente Álvaro Pais e Pedro Hispano; e em relação a certas obras, a crítica interna do respetivo texto, designadamente a Corte Imperial. Depois da divulgação da imprensa, a partir do segundo quartel do século XVI, pode dizer-se que possuímos os escritos filosóficos na forma que os autores quiseram que eles fossem conhecidos, e, portanto, sem as interpolações tão frequentes nos manuscritos medievais. Possuindo, porém, em geral, o próprio texto que os autores diretamente prepararam para o público, nem sempre, contudo, nos é conhecida a totalidade do que escreveram. Em princípio, as relativas facilidades de utilização da tipografia permitem supor que ficaram inéditos os escritos de feição mais ou menos secundária; no entanto, só o conhecimento total da obra de um autor permitirá decidir se é ou não assim, e portanto, em cada caso concreto, se estamos ou não em face de escritos menores e como que refugados. Daí a necessidade do historiador da Filosofia em Portugal ter conhecimento do espólio inédito posterior à divulgação da imprensa, tanto mais que é na obra dos minores que mais francamente se refletem as ideias gerais dominantes em cada época ou situação cultural: se o historiador-filósofo carece acima de tudo de apreender a génese, a expressão e o significado dos pensamentos originais, a sua tarefa não dispensa de maneira alguma o conhecimento das conceções e das ideias generalizadas, contra as quais nem sempre confessada e claramente se ergue e elabora o pensamento original.


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