Desenvolvimento da filosofia em Portugal durante a idade média

 

Este assunto, mormente depois da Historia de los heterodoxos españoles, de Menéndez y Pelayo, é conhecido de todos os estudiosos da cultura peninsular; mas é de elementar justiça citar o estudo do P. Alejandro Amaro, que dilatou consideravelmente o quadro herético que o polígrafo insigne apresentara, embora em nada lhe alterasse o valor interpretativo. Destas heresias interessam-nos principalmente as que gravitam em torno de Tomás Scoto, que Álvaro Pais nos apresenta como emigrado das ordens franciscana e dominicana, e «seductor publice in scholis decretalium Ulixbone». Com ele disputou Álvaro Pais, mas só a prisão nos cárceres de Lisboa parece ter feito calar este heresiarca. O seu espírito audaciosamente crítico não se detinha perante as mais temerárias consequências, que simultaneamente atacavam a economia teológica e as construções filosóficas então dominantes. As teses antiteológicas deste «summus hereticus hereticorum» eram essencialmente negativas. Negava a ressurreição, a imortalidade, a filiação divina de Jesus, a virgindade de Maria, etc., e como síntese destas negações condensava numa blasfémia inaudita toda a sua irreverência de desesperado da teologia: as religiões judaica, cristã e maometana eram obra de três impostores.

Estas negações são o corolário duma conceção filosófica radicalmente racionalista; e na verdade Álvaro Pais diz-nos que Tomás Scoto julgava Aristóteles mais sábio que Cristo e sustentava que a fé encontrava na razão, que não nas Escrituras, o seu melhor fundamento. Este racionalismo é um eco da influência de Averroes; e quer-se melhor prova do que a tese da eternidade do Mundo, isto é, a negação da criação ex-nihilo, que Tomás Scoto defendia? O conceito aristotélico da matéria primeira, eterna, substrato lógico do devir e ideia-limite da máxima indeterminação, é a fonte remota desta atitude; mas a sua origem próxima deve filiar-se nos Comentários de Averroes, o mais audacioso e retumbante intérprete medieval do Estagirita.

Segundo o Comentador, a geração, sendo apenas movimento, supõe um sujeito. Este sujeito (substractum), de infinitas possibilidades, ingerado e incorruptível, não possuindo nenhuma qualidade positiva mas apto a sofrer as mais opostas modificações, é a matéria primeira. Esta interpretação, que com as teorias da unidade do intelecto ativo, eternidade do tempo e do Mundo, constituiu, a essência do averroísmo, foi um verdadeiro schibbolett entre crentes e espíritos fortes; e apesar de refutada, perseguida e odiada, gerou duma forma mais ou menos inconsciente e subterrânea as tendências libertinas e racionalistas da Idade Média e da Renascença. Este espírito herético, que se reflete na própria literatura, como nas canções do trovador João de Guilhade, e segundo o testemunho de Álvaro Pais, nas poesias, hoje perdidas, de Afonso Geraldes, de Montemor-o-Velho, foi uma ligeira varíola que não afetou a integridade ortodoxa da nação. Alimentado com o entusiasmo, ou porventura com uma crise de momento, atenua-se completamente no século XV.

 

D. João I, o rei de boa memória, numa das Ordenações alude ainda a pessoas «que caíram e caem em mui grave pecado de heresias, dizendo e crendo e afirmando coisas que são contra o nosso Senhor Deus e a Santa Madre Igreja» ; porém estes desvios são episódios obscuros, sem significação geral. Pelo contrário, este século conheceu um entusiasmo religioso, que se manifesta desde as formas externas, como a multiplicação de fundações religiosas, até ao desenvolvimento da cultura teológica. Os pregadores desta época são acima de tudo teólogos, e os seus sermões o desenvolvimento dum ponto de doutrina. É o que flagrantemente nos prova a pregação de Mestre Francisco, à qual D. Duarte alude no Leal Conselheiro. Nela desenvolveu o ignorado pregador um raciocínio idêntico ao famoso pari de Pascal, porém, superficialmente, sem as dimensões metafísicas que o génio do apologeta lhe atribuiu: o homem tudo tem a ganhar com a prática dos mandamentos da igreja, porque ou há uma vida futura, ou não há. Se há, perderia «por sua descrença a maior perda que poderia perder»; se não há, não perdia coisa nenhuma. Esta coincidência, que julgo corroborar a hipótese dos antecedentes muçulmanos do pari, tão erudita e penetrantemente elucidados pelo Prof. Miguel Asín Palácios, revela uma larga cultura teológica, e ao mesmo tempo uma tendência apologética. Havia ainda então em Portugal mesquitas e sinagogas, protegidas por uma discreta tolerância religiosa. Este facto explica-nos, de certo modo, essa tendência apologética, que encontrou a sua mais perfeita concretização no livro chamado Corte Imperial. É este livro um verdadeiro tratado, no qual o seu desconhecido autor faz uma breve Summa teológica, versando a existência de Deus, o dogma da Trindade, o pecado original, a ressurreição, etc., e incidentalmente alguns assuntos filosóficos, como o problema dos universais. Ditou-o sem dúvida o veemente desejo de defender a fé católica contra a filosofia pagã e as teologias rabínica e do Islão; mas a cultura e o tom elevado e raramente depreciativo das suas páginas emprestam--lhe uma profunda significação moral. A agilidade intelectual que patenteia é grande, e não menor a erudição das Escrituras e teólogos cristãos, árabes e judeus, citando expressamente, dentre estes Maimónides. A própria forma literária, de ossatura dialógica, merece um momento de atenção. O autor imagina umas cortes celestiais, na presença do celestial imperador, isto é Jesus Cristo, da igreja triunfante e de toda «a cavalaria dos céus». A igreja militante, rainha das partes do Oriente, aproxima-se, acompanhada de grande multidão de pessoas, das quais a maioria «eram os que vinham arredados dela», isto é, judeus, mouros, gregos e gentios; e osculada pelo celestial imperador começa a exposição da teologia católica, e discussão e crítica das crenças destas variadas gentes e religiões.          

Esta ficção recorda a lenda dos Santos Barlaam e Josafat, o Cúzari, de Jehuda Halevi, o Libre del Gentil e los tres savis, de Raimundo Lullo, e o Libro de los Estados, de D. Juan Manuel, e embora não possamos determinar qual destes livros a sugeriu, sem dúvida se deve integrar no género literário que eles exprimem. 

Ë ainda neste século XV que a comunidade israelita de Lisboa assume uma significação cultural apreciável, embora nunca atingisse o brilho de certas comunidades de Espanha. Isaac Abarbanel, o pai de Leão Hebreu, é a personalidade de maior relevo. Os seus numerosos escritos exegéticos traduzem acima de tudo a formação rabínica e uma atitude de comentador, cujo guia é Maimónides, embora não desconheça São Tomás de Aquino e Séneca. Na ordem propriamente filosófica é tradicionalista, divergindo da conceção do judaísmo segundo Maimónides e criticando o racionalismo de Levi ben Gerson, em especial a negação da criação ex-nihilo e a tese averroísta da imortalidade como mera união com o intelecto ativo uno.               

Todas estas atitudes teológicas supõem uma interferência filosófica, pelo menos no sentido propedêutico que a Idade Média atribuía à filosofia. A filosofia não foi para todos os verdadeiros pensadores medievais a ancilla theologiae; mas na cultura portuguesa só na aurora da Renascença se discrimina a separação nítida e progressiva dos dois conceitos. Antes do século XIII são tenuíssimos os vestígios da cultura filosófica em Portugal; mas depois deste século, com a criação da Universidade de Lisboa-Coimbra, com o desenvolvimento das escolas monacais e sobretudo com a larga emigração de estudantes para as Universidades de além-fronteiras, observamos um progresso apreciável. A atividade destas escolas exercer-se-ia obscuramente na repetição incansável dos mesmos textos, e do quadro dos seus estudos só a dialética, ou como hoje diríamos a lógica, estimularia a cultura filosófica.

Não foi, assim, por mera casualidade, que o mais afamado dialético medieval, Pedro Hispano, o pontífice João XXI, viu a luz em Portugal, talvez em Lisboa. As suas Summulce Logicales tiveram uma extraordinária fortuna escolar, constituindo o texto do ensino da lógica em todos os países desde o século XIV até princípios do século XVI, a tal ponto que quando os humanistas, especialmente Luís Vives, combatiam as argúcias escolásticas e a bárbara terminologia lógica, tinham em mira este livro e os seus comentários. Eu não quero examinar agora o problema que a erudição do século passado formulou e variamente resolveu acerca das relações deste livro com as Súmulas (Sinopse) do bizantino Miguel Pselo, ainda que esteja convencido que se não pode negar a autoria de Pedro Hispano; 


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