Capítulo I - Fontes do pensamento de Leão Hebreu

14. O pensamento de Leão Hebreu não tem a espontaneidade nem a originalidade de alguns pensadores, cujas conceções do Mundo ou da vida, na origem, conteúdo ou finalidade, surgem, ao menos aparentemente, como puras criações da reflexão pessoal. Enleava-o ainda, pela época e formação, a influência tradicional dos filósofos árabes e judaicos, cujo método e atitude filosófica não era o da interior meditação pessoal, mas o comentário, o desenvolvimento dum ponto de partida que o texto fornecia. Aceitando-se a filosofia como um sistema ordenado, completo, quando não revelado, o único processus lógico do espírito consistia em a adquirir ou facilitar a sua aquisição. Compreende-se assim que embora o comentário fosse maior ou menor, ultrapassasse o texto, devindo texto por seu turno (Averroes, Maimónides, etc.), se aperceba sempre a dependência dum pensamento subordinado, que não criador ou transmutador de novos conceitos. Na doutrina de Leão Hebreu é ainda bem manifesta esta atitude, embora se surpreenda já, numa incipiente frescura, a aurora do pensamento moderno.

Nada o prova tão bem como a religiosidade e as fontes do seu pensamento. Dum vivo sentimento religioso, que transparece em cada página dos Diálogos, nem por isso o conteúdo da fé de per si só lhe satisfazia as exigências racionais do espírito. Crente, não o era como a quase totalidade dos correligionários cujo fanatismo aborrecia a especulação, e amante da verdade, embora contida no judaísmo, não protestava, como Yehudá Ha-Levi (século XII), no Cuzari, contra os direitos da razão, nem condenava, como seu pai, por herética, a investigação científica. Daí a sua obra ter ficado, como a dos maiores filósofos hebraicos, alheia à estreita cultura israelita: Ibn-Gebirol tanto podia ser cristão, como árabe ou judeu, Maimónides teve sempre detratores, e Spinoza só foi verdadeiramente original depois de excomungado pela sinagoga.

Aceitou, é certo, a teologia hebraica, mas não estritamente. A Bíblia continha a suprema verdade, e, como para os judeus alexandrinos, era a fonte de toda a especulação filosófica, onde Platão e Aristóteles beberam, encontrando-se a razão profunda da divergência das suas conceções no vário conhecimento daquele sagrado manancial. Sincrético, pois, tinha que ser o seu método; e na verdade foi-o, já por necessidade lógica do seu conceito de filosofia (18), já como exigência cultural da época.

Scito textu, sciuntur omnia dissera Roger Bacon da didática medieval, e com maioria de razão se devesse dizer talvez desta primeira fase do renascimento filosófico, em que culmina a direção platonizante de Marsílio Ficino e Pico de Mirandola. Sábio então, era-o quem sabia muitas coisas, o erudito que por vastas leituras arquivara fórmulas difíceis de reter, quando não alguns segredos encerrados nos arcanos de misteriosos tesouros do Oriente, e que, num sincretismo não raro infantil, fundia e integrava esta amálgama nos supremos conceitos da verdade revelada. João Pico é o tipo representativo desta formação e as suas teses de omni re scibili a consequência lógica. Conhecimentos extensos eram assim uma imposição do método e um pressuposto -da verdade da síntese.         

15. Leão Hebreu se não acusa nos Diálogos o enciclopedismo de João Pico, conhecia, porém, alguns filósofos helénicos, árabes e judaicos. Daqueles, cita expressamente Platão (e os académicos, no sentido vago de platónicos), Aristóteles (e os peripatéticos), Pitágoras, Empédocles, Anaxágoras, os Epicuristas, Estoicos, Plotino, Ptolomeu, e entre os comentadores do Estagirita, Temístio, afora os poetas, Homero e Pronápides, e o trágico Eurípedes. Puramente incidental é a referência a Ovídio, Cícero (Túlio) e Séneca; mas não assim aos árabes Alfarabi, Avicena, Algazel e Averroes. Pela sua educação rabínica deviam ser-lhe familiares os filósofos hebraicos; todavia, não contando os cabalistas, cita apenas Maimónides (Rabi Moisés, Moisés do Egipto) e dl nostro Albenzubron» [sic] — parecendo assim como São Tomás e Santo Alberto Magno a ignorar o seu verdadeiro nome, Ibn-Gebirol, embora o soubesse hebreu, o que já era alguma coisa, quando toda a escolástica, de Guilherme de Auvergne a Duns Escoto, e o renascimento o reputaram árabe.

Dos filósofos medievais (cristãos) e contemporâneos, platónicos ou averroístas, não cita ninguém; mas se de aqueles o conhecimento não seria grande, embora pareça censurar-lhes o abuso de «método aristotélico», outro tanto se não pode dizer destes. Veremos, em breve, pela análise interna dos Diálogos, como a sua doutrina depende por mais dum conceito de alguns platónicos florentinos; por agora basta notar que se não os depreciou, também não lhe mereceram o mínimo elogio.

Erudito, poucas obras cita; e quem atender apenas a citações diretas (feitas sempre na máxima generalidade), não contando a Sagrada Escritura, organiza esta pequenina bibliografia: de Platão, o Banquete e o Timeu; de Aristóteles, a Política, a Ética e a Metafísica; de Ptolomeu, o Centilóquio; dos poetas, Homero e Pronápides, a Ilíada e Protocosmos — verdadeiras obras filosóficas pelo sentido simbólico dos mitos —, e, finalmente, dos hebreus, o Moreh [sic] Nebuchim, de Maimónides, e o De fonte vitae [sic] de Ibn-Gebirol.

Mais pequena esta lista que a dos autores, sem dúvida alguma a sua biblioteca era maior. Em regra, o nome supre a citação da obra, e conquanto não conhecesse toda a bibliografia dos autores citados, é indiscutível que duma ou outra obra não citada apropriou algumas ideias.

16. O que aproveitou destas leituras, e em que estimação teve estes filósofos? Para ordenar a resposta, por demais delicada, analisaremos sucessivamente as relações de Leão Hebreu com a filosofia pré-socrática, platónica-aristotélica, pós-aristotélica, medieval e do renascimento.

a) Da especulação pré-socrática cita apenas Pitágoras, Empédocles e Anaxágoras, cujo conhecimento era indireto, bebido, muito provavelmente, em Aristóteles e no Guia de Maimónides. Do chefe da Escola Itálica recordava a pretendida criação do termo filósofo — adequado, explicava, porque quanto mais se conhece a sabedoria, tanto mais se ama —, a atribuição ao céu, como animal perfeito que é, dum lado direito e esquerdo, e a doutrina da transmigração das almas, que, tendo incontestavelmente para os primeiros pitagóricos uma significação ética, Leão Hebreu aproveita para explicar o obscurecimento e irracionalidade do espírito quando se «enloda» nas coisas materiais e corpóreas.

Se esta última interpretação é já abusiva, muito mais o é ainda a que submete a teoria da harmonia das esferas à tão cara doutrina do amor recíproco dos corpos celestiais, porque, aduz, há quem chame à «amizade harmoniosa [dos elementos] música e concordância». Esta identificação sugere logo Empédocles, e na verdade, no período seguinte, invoca justamente a teoria dos quatro elementos e das forças motoras — amor e ódio — como causas do processus da geração e dissolução das coisas. Finalmente atribui a Anaxágoras, a teoria, «conforme à Sagrada Escritura», da criação simultânea, por intermédio do «entendimento pai e matéria mãe», do mundo celestial e elemental.

Na especulação deste período contava Homero, Pronápides e Hesíodo —, que não cita, mas cuja Teogonia comenta; e não faça reparo este facto, porque, para os judeus alexandrinos e místicos, Homero era o caudal onde mergulharam todos os sistemas helénicos ulteriores ". Não o seguiremos, porém, nestes comentários, prolixos até à saciedade, e onde não raro se integram interpretações astrológicas, pelo restrito interesse, bastando-nos fixar, o que faremos adiante, o seu valor universal.

b) Dos socráticos cita apenas, como vimos, Platão e Aristóteles sem dúvida os filósofos que, com Maimónides, melhor conhecia. Entusiasta da obra do fundador da Academia, cujo nome ilustra frequentemente as páginas dos Diálogos, o próprio Leão Hebreu confessa-se platónico; mas a razão íntima desta adesão não se filia no exame acurado do platonismo, mas no sincrético conceito das suas origens hebraicas: Platão é teólogo mosaico, discípulo dos velhos sábios hebreus, e todo o platonismo um hebraísmo revestido de filosofia.

Afirmando esta doutrina, — cujas origens remontam aos judeus alexandrinistas, Aristóbulo e Filo, para quem todos os sistemas filosóficos gregos se inspiram nos livros sagrados dos hebreus, e que com fortuna vária foi aceite pelos primeiros padres da Igreja, desenvolvida pelos neoplatónicos Jamblico e Proclo, e comentada pelos filósofos e místicos judeus — Leão Hebreu não era original; mas revivendo-a, de certo modo lhe imprimiu uma feição pessoal, levando mais longe que ninguém a concordância de Platão com a Bíblia.

Revelando o crente, esta identificação igualmente manifesta que Platão era verdadeiro na medida em que concordasse com a Bíblia, — o que praticamente obstou a que erigisse, como alguns platónicos, o platonismo em seita. Daí o admirar também Aristóteles, embora lhe censure o atrevimento (19) e, sobretudo, um deficiente conhecimento da antiga sabedoria hebraica (21), que o impediu de vislumbrar para além do que o seu engenho, algo acanhado, criava. Expor, agora, as abundantes referências às doutrinas platónicas e aristotélicas seria uma repetição, porquanto o leitor as encontra, esparsas, mas em lugar próprio, no decurso deste trabalho; todavia, na sequência lógica da matéria exposta, vem a propósito analisar a solução do debatidíssimo problema, que durante séculos se impôs à especulação de cristãos, árabes e judeus: a conciliação de Aristóteles com Platão.

A existência das ideias é uma necessidade lógica, pois o Mundo não é obra do acaso, como o revela a ordem e finalidade do conjunto e do detalhe; sendo assim, não se impõe que «todas as notícias de coisas tão sabiamente produzidas preexistam com toda a perfeição na menti desse operador do Mundo?» Neste sentido de «pré-notícias divinas das coisas produzidas» Aristóteles não nega as ideias. Não escreveu, porventura, que «preexiste na mente divina o nimos do universo, que é a sua ordem sábia, e da qual derivam a perfeição e ordenação do Mundo e de todas as suas partes —, assim como preexiste na mente do general a ordem de todo o seu exército»?

A divergência entre o discípulo e o mestre reside apenas na extensão do conceito. Em Platão, a ideia, imaterial, é a verdadeira realidade e as coisas corpóreas uma sombra do mundo inteligível. Por isso o fundador da Academia, desprezando a beleza corpórea em si mesma, atribuía-lhe apenas o valor de revelar as ideias e guiar o espírito no seu conhecimento. Aristóteles, porém, cujo conceito não é tão lato, compreende nas ideias só «as causas produtivas e ordenadoras» das coisas. Para o Estagirita, as ideias universais, não são, como para o Mestre, a causa das espécies reais, mas apenas «conceitos intelectuais da nossa alma racional tirados da substância e essência que há em cada um dos indivíduos reais, e por isto lhes chama segundas substâncias»; nem tão pouco verdadeiras substâncias, porque na definição de qualquer essência, feita sempre pelo género e diferença, entra a matéria (género) e a forma específica (diferença); portanto, nas ideias, desprovidas de matéria, não há substância, e por isso não são mais que «o divino princípio do qual dependem todas as essências e substâncias». É esta a diferença máxima, da qual se originam outras não só no próprio conceito de ideia, como «teologais e naturais». Será irredutível a divergência? De forma alguma, porque afinal resulta mais «dos vocábulos que da significação»; por isso Leão Hebreu, na doutrina é discípulo de ambos, embora na técnica siga o Peripato, porque, «lima melhor a língua e mais divisa e subtilmente costuma apropriar os vocábulos às coisas». Não curando de justificar esta conciliação, o que revela bem como o sincretismo lhe obscurecia a visão crítica, entreteve contudo a sua interlocutora sobre as razões da diversa atitude destes dois magnos pensadores gregos.

Platão, notando que os primeiros filósofos atentavam só nas substâncias materiais, pensando que fora dos corpos nada havia, pretendeu curá-los, «como verdadeiro médico que era», ensinando-lhes que os corpos em si mesmos nenhuma essência, substância ou beleza possuem, sendo apenas uma sompra da ideal essência incorpórea, existente na mente do sumo artífice do Mundo. Difundida esta doutrina, não havia filósofo contemporâneo de Aristóteles que a não partilhasse; por isto, o Estagirita, «vendo que se tornavam negligentes no conhecimento das coisas corpóreas, nos seus atos, movimentos e alterações naturais, e nas causas da sua geração e corrupção», — negligência que haveria de importar um deficiente conhecimento abstrato dos princípios espirituais, pois o conhecimento dos efeitos induz o das causas (30) —, julgou oportuno o momento de corrigir este excesso em que degenerara o propósito de Platão, solicitando os espíritos para o estudo da natureza. Deste modo, Platão e Aristóteles foram médicos intelectuais: aquele curando pelo excesso, este pela conservação. Não desenvolve Juda Abravanel nesta conciliação nem o brilho nem a erudição de Fox Morcillo nos cinco livros De naturae philosophia seu de Platonis et Aristotelis consensione (1554) e nos comentários In Platonis Timaeum, e se alguma coisa surpreende é a ingénua confiança com que a afirma, como se fosse uma verdade imperiosa, lógica ou histórica.

Como nota final deve frisar-se que procurou harmonizar o Liceu e a Academia justamente onde a harmonia era menos possível: na teoria das ideias e, como veremos, no problema da criação (23, d) e teoria da visão (29, a).            

c) Do período pós-aristotélico, além de Ovídio, cujas Metamorfoses não cita, mas que evidentemente conhecia, como o prova a referência que lhe faz, Ptolomeu (Cláudio), de cujo apócrifo Centilóquio extraiu a astrológica origem do hermafrodita —, pela conjunção de Vénus com Mercúrio e vice-versa —, e do comentador semiperipatético Temístico, cuja conceção do sol, lua e estrelas como formas e não corpos informados invoca para confirmar, dentre outros argumentos, que toda a beleza do mundo inferior procede de formas, cita mais, genericamente, os epicuristas, estoicos, Plotino, Cícero e Séneca.

Daqueles recorda as conhecidíssimas teses, que não aceita, da mortalidade da alma e do deleite como fim supremo da felicidade humana, e dos estoicos, vistos através de Séneca, o princípio ético do abandono da riqueza para a integral vida contemplativa —, explicando, de par, que se não fizeram, como os peripatéticos, a análise de algumas virtudes domésticas e urbanas, que exigem bens materiais; foi porque aquele alto fim os dominava.

De Plotino, que ele conheceria pela tradução latina de M. Ficino (1494), pois não foi traduzido em árabe e hebreu, apropriou a teoria do éter — espírito subtilíssimo que sustenta todos os corpos sem lhes acrescentar, porém, a própria corporalidade» —, e denegou-lhe a interpretação cosmogónica do Timeu no sentido da criação ab eterno, quando «outros claros platónicos» afirmam o começo temporal do Mundo como o verdadeiro pensamento da Academia.

Por fim, para explicar a reciprocidade do amor entre amigos e da amizade honesta, refere incidentalmente o conceito ciceroniano da existência da amizade entre virtuosos e por causas virtuosas e de Séneca unicamente diz, ao explicar o mito de Pan, que às Parcas chamava Fadas.

d) Se deste período o conhecimento não era grande, pelo contrário tudo concorre para fazer supor que a filosofia medieval lhe seria familiar, dada a formação intelectual do seu espírito. Todavia, atendendo apenas às citações diretas, esse conhecimento não ultrapassa o do período anterior. Da escolástica cristã não cita ninguém, embora, como já notámos, pareça censurar-lhes o abuso do método aristotélico; mas a verdade é que, de per si, esta crítica é insuficientíssima para significar uma alusão, pois compreende também árabes e judeus. O mesmo se não pode dizer da especulação destes últimos. Dos islamitas cita, apenas nominalmente, sem referência a textos, Alfarabi, Avicena, Algazel e Averroes.

Seria direto o conhecimento? Não pode responder-se duma forma categórica para os três primeiros; porque, se por um lado existiam versões hebraicas do Comentário ao De Caelo de Alfarabi, do Nadját (Suficiência) de Avicena (e demais foi publicada uma tradução latina das suas obras em 1495, em Veneza), e do Téhâfut al-falâsifah (Destruição dos filósofos) de Algazel— os livros que teria em vista ao expor as teorias do primeiro motor, das inteligências separadas (celestiais) e da processão do amor no universo, cujos argumentos não desenvolve «para não ser prolixo em coisa desnecessária ao propósito» —, por outro não deve esquecer-se que em Averroes, cujas obras seguramente lhe não eram estranhas, como já reconheceu Renan, seguindo Munk, encontrava, na Destructio Destructionum Algazelis (havia tradução hebraica) e no Sermo de substantia orbis, uma exposição e refutação daqueles filósofos, a quem Leão Hebreu, sem se saber porquê, chama «a primeira academia dos árabes».

Equivalendo-se os argumentos, parece-nos mais prudente a dúvida; mas numa ou outra solução o facto é que não lhes atraiçoou o pensamento. No que não pode hesitar-se é no conhecimento de Averroes: a forma como o expõe bastaria para o provar. Mas a esta razão, outra acresce: o cordovês, apesar de grande peripatético, nem sempre interpretou corretamente o pensamento do Estagirita, ou porque não alcançou todas as obras «de Metafísica e Teologia», ou porque não lhe seguiu as opiniões.

Da especulação judaica refere apenas os cabalistas [sic], Ibn-Gebirol e Maimónides. Aos primeiros não ligava grande crédito. De antiquíssima origem nos hebreus —, entre quem circulou secretamente até fins do século XV, época em que a curiosidade erudita (João Pico, Reuchlin, não contando o medievo iniciador R. Lúlio) a divulgou —, mas de redação medieval bem acentuada, como prova Karppe, a cabala, ou «tradição oral» e que em hebreu significa «receção», pretende uma fundamentação racional e histórica, isto é, de «disciplina autêntica» ou «divina».

Conhecia-a Leão Hebreu, atribuindo-lhe até uma evolução nem sempre concordante com o relato mais vulgar. De Adão, por «divina disciplina», veio ao sábio Enoc, deste a Noé, que a transmitiu ao mais sábio dos seus filhos, Sem, e ao descendente deste, Heber, mestres de Abraão, do qual, por intermédio de Isac, Jacob e Levi, chegou aos sábios hebreus chamados cabalistas, confirmando-a oralmente o Supremo a Moisés e significando-a na «Sagrada Escritura em diversos lugares com próprias e verosímeis significações». Não aceita o nosso filósofo esta tradição, porque a sua evidência nos sagrados textos «não é clara, mas figurativa», e, nota interessante num judeu, referindo estes «atrevimentos», confessa fazê-lo simplesmente como «relator»; mas apesar desta crítica é muito provável, senão certo, que a cabala tivesse ocupado um momento da sua formação e por mais dum conceito influenciasse a marcha do seu pensamento.

Do celebrado rabino malaguenho Ibn-Gebirol, cujo Fons vitae apenas divulgado suscitou tão grande e justificado interesse, invoca incidentalmente a teoria «das almas intelectuais, anjos e entendimentos puros» (substâncias simples) serem compostas de forma e matéria — «corpórea do caos mãe comum», acrescenta —; donde concluía que, segundo esta opinião, quando o universo se dissolver, forma e matéria volverão à fonte primária donde nasceram: esta, ao caos, aquela, ao sumo criador.

Conheceria diretamente Gebirol? É difícil responder com segurança, porque seu pai, ao comentar o livro primeiro dos Reis, cita justamente esta teoria gebiroliana. Bonilla y San Martin, na monumental Historia de la Filosofia Española, ainda em via de publicação, aventa que «probablemente, sin embargo, ni Isaak Abravanel ni su hijo conocieron directamente la Fuente de la Vida, sino que hablaron de ella por las noticias de los escolasticos». Parece-nos ser esta a melhor solução, atento o esquecimento em que o nome e obra filosófica do celebrado rabino caíram entre os seus correligionários; todavia ressalvaremos que se Isac bebera nos escolásticos, o filho, a nosso ver, não acusa nos Diálogos a mínima referência, que denuncie o conhecimento de G. Auvergne, Alberto Magno, São Tomás ou Duns Escoto — os escolásticos que mais citam Gebirol. Devia-a portanto à obra paterna.

Finalmente de Maimónides, citado apenas duas vezes, expõe a teoria dos motores celestiais (inteligências separadas), confessando não a seguir. Quem visse apenas estas parcas citações concluiria que Leão Hebreu pouco deve ao pensamento do célebre rabino; mas a verdade é que numa análise atenta surgem com relevo a dependência de vários conceitos e até autênticas transcrições.

E compreende-se também, que o contrário é que suscitaria reparos.  

Os capítulos do Guia de Perplexos, como entre os cristãos as qaestiones da tomista Summa Theologica ou das Sentenças de Pedro Lombardo, constituíram em algumas sinagogas, designadamente, ao que parece, em Portugal, os quadros em que se moldou a formação filosófica rabínica, e as doutrinas, a fonte inspiradora de todos os espíritos mais ou menos livres, salvo raríssimas exceções, que surgiram no judaísmo. Leão Hebreu não poderia desconhecê-lo. Seu pai, ainda em Portugal, por certo que o guiou nessa leitura, esclarecendo-a; e mais tarde, já na Itália, ser-lhe-iam familiares os comentários que ele escreveu ao Moreh, reputados com os de Ibn Tibon os melhores. E não só estes comentários, mas também o Miphehaloth Elohim (As obras de Deus) porque, como veremos, defendendo Juda Abravanel veementemente a criação bíblica, embora siga por vezes pari-passu o Moreh, sem nunca o citar, não deveria desconhecer esta obra paterna, análoga às escolásticas De opere sex dierum, onde encontrava uma crítica à doutrina aristotélica da eternidade do Mundo.  

e) Com tudo isto, não cita Leão Hebreu o pai, nem tão-pouco, como já notámos, qualquer filósofo seu contemporâneo, embora alguma coisa deva, àquele, como a estes —, mas não correligionários.              

A expulsão de Espanha e Portugal, destruindo os centros judaicos de cultura, e a geral decadência da escolástica, acarretaram a ruína dos estudos filosóficos, cuja reconstituição era impossível pela opressão em que viviam nos estreitos limites do ghetto. Demais, neste momento histórico, em que a perseguição os espreitava por toda a parte e a dor e o luto eram a recompensa da fidelidade à religião dos seus maiores, o espírito aborrecia a frieza da especulação, quando não a culpava, satisfazendo-se apenas com as fantasmagorias da cabala e o confortante sentimento messianista. Por isso, Juda Abravanel é na comunidade israelita uma exceção e os seus Diálogos uma obra tão pouco hebraica, que os correligionários mal a aperceberam, apesar do judaísmo transparecer com evidência. 

É que a par desta crença tradicional e das fontes hebraicas já apontadas, sente-se nas páginas dos Diálogos um espírito que se liberta do rígido e seco escolasticismo semita, pela ação sugestiva e fecunda do Renascimento italiano. Sem indicações externas de qualquer natureza é difícil determinar esta influência, e só pela análise interna daquela obra se pode surpreender.

Três motivos dominam nos Diálogos: a prolixa interpretação astrológica, um platonismo, quase de discípulo, e o amor, fulcro de todo o livro, erigido em princípio universal.

A astrologia, cultivada durante a Idade Média em mirrados compêndios, tinha, precisamente na época em que Leão Hebreu chegou à Itália, senão dos mais acurados expositores e defensores, pelo menos o melhor poeta: João Pontano (1426-1503).

Traduzindo o pseudo-ptolomaico Centilóquio (1475?), defendendo-a da crítica de João Pico (Disp. adv. astrologos) no De rebus caelestibus (1494), expondo-a nos Meteoros, ilustrando-a em harmoniosos hexâmetros na Urania (1487-1491) e no De hortis Hesperidum sive de cultu citriorum (1501), Pontano não foi alheio ao pensamento de Leão Hebreu. Nos Diálogos, como na Urania, ocupa-se o nosso filósofo dos planetas e sua influência no carácter humano, personaliza os corpos celestes e descreve e comenta astrologicamente as fábulas mitológicas; mas, além desta concordância, há outra razão, mais concludente talvez. É. que Pontano fora o secretário do Estado napolitano, nos reinados de Fernando, Afonso II e Ferrandino, de Agosto de 1486 até à invasão francesa de Carlos VIII (Fevereiro de 1495), e, como vimos, Isac Abravanel, emigrando de Espanha, estabeleceu-se com a família em Nápoles, onde em breve alcançou uma valiosa ascendência, servindo com leal dedicação Fernando I e sobretudo o filho Afonso II (cf. p. 165, nota 35).

Nestas condições, se seu pai frequentava a corte, que obstava a que Juda Abravanel conhecesse pessoalmente Pontano? Não encontramos, é certo, um testemunho positivo; mas também não há nada que contrarie esta conclusão.

O platonismo tão vivo de algumas passagens dos Diálogos não poderia ter derivado da formação rabínica. Seca, combativa, exegética, pejando o cérebro de cotejos e interpretações, ou, pelo contrário, arrastando o espírito para o misticismo e desvairamento da cabala, não podia esta formação, como a privança de correligionários ou a assimilação da literatura judaica, convertê-lo num platónico, e muito menos ainda interessá-lo, como um culto florentino contemporâneo do Magnífico, nos subtis e delicados problemas do amor, no belo sentido em que o pensou e viveu o Renascimento italiano.

Se não fora a tradução de Plotino, Jamblico, etc., e, sobretudo da obra platónica que Marsílio Ficino (1433-1499) empreendeu para os seus «irmãos em Platão» (publicada em 1483) e que Florença, deslumbrada, acolheu com um fervor que «o divino» não inspirou na Atenas de Sócrates ou de Proclo, não poderia Leão Hebreu atingir a mística religiosidade, que vê e sente Deus em tudo, num ingénuo e irrefletido imanentismo. A biblioteca platónica medieval, sabem-no todos, era pequenina: o Timeu, com o comentário de Calcídio, o Fédon e o apócrifo Axioco; e se não fosse a obra da Academia Platónica, entusiasta e erudita, não é provável que Leão Hebreu pudesse sentir a beleza do Banquete e comentar, numa atitude semijudaica, semiplatónica, os discursos de Fedro, de Aristófanes e de Sócrates.

Não teve, como os florentinos de quatrocentos, a paixão helénica dum Lourenço de Médicis a estimular-lhe o fervor platónico; mas com ser isolado, o espírito que o anima naqueles comentários não dista muito do religioso paganismo dos académicos que o Magnífico acolheu à Vila Careggi nessa tarde de Novembro em que, sob o olhar amigo dum busto grego de Platão, revivendo o Symposium, fizeram essa incomparável apologia do amor que os tempos guardarão como o mais vivo depoimento espiritual duma época. O amor, dissemo-lo já, é na economia dos Diálogos o supremo conceito, em torno do qual enxameiam todas as ideias. Não podia herdar esta conceção do severo Maimónides ou do escolástico Averroes, e só o Renascimento italiano tinha a virtude de lha sugerir.

 Com os sonetos de Petrarca, os belos versos dantescos do Purgatório, e as célebres canções de Guido Cavalcanti e Guittone d'Arezzo, o amor tivera, na cultíssima Itália, as primeiras e, talvez, as mais belas formas literárias; mas impondo-o à especulação, alargando-o, visionando através dele todo o universo real e ideal, surgiu aquele banquete de Careggi, «Ingenii pabulum, amoris et magnificentiae argumentum, esca benivolentiae, amicitiae condimentum» — momento imperecível na história do platonismo pela erótica socrática e académica dos convivas. Com o In convivium Platonis de amore commentarium de Ficino e dos seus «complatonici», o amor, conservando o aspeto religioso, caritativo, dos tratados de Santo Agostinho, São Bernardo e São Tomás, ganhou em universalidade e da influência deste conceito, e, em geral, das obras e traduções ficinianas, reza todo o cinquecento, prolífero até à saciedade, em poesias, diálogos, tratados e novelas amorosas e de cortigiania.

Nesta corrente se integram, pela forma e essência, os Diálogos, cuja influência, por sua vez, na evolução e difusão do género nunca será de mais salientar. Não contando os trecentistas, porque nenhum passo os sugere, cremos que é nos quatrocentistas M. Ficino e Francesco Catani da Diacceto, mais próximos no tempo e nas ideias, que deve filiar-se a génese dos Diálogos. Ficino, revelando-lhe Platão e Plotino, iniciou-o, e com o Commentarium ao Banquete preparou-lhe o terreno para a conceção filográfica do universo, e o Panegirico dello amore do académico florentino Catani ofereceu-lhe uma sugestiva exposição, no espírito do platonismo, da origem, natureza e efeitos do amor.

Bastam-nos estes factos para provar o italianismo de Leão Hebreu e que, a despeito do silêncio, alguma coisa deveu aos contemporâneos.

Parece-nos ter tratado este assunto dentro de justificados limites; levá-lo mais longe não seria, como escreveu Renan, justamente em matéria idêntica, «vouloir retrouver la trace du ruisseau quand'il s'est perdu dans la prairie»?.


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