A influência dos descobrimentos e da civilização na morfologia da ciência portuguesa do século XVI

No lapso de tempo que vai dos escritos ético-literários da Ínclita Geração, medievais na forma e no assunto, à elaboração do De crepusculis e ao De arte atque ratione nauigandi de Pedro Nunes e aos Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da índia, de Garcia de Orta, a atividade científica portuguesa alcançou conhecimentos insuspeitados, obedeceu a novos ideais e assumiu inusitada atitude metodológica.

Tão extraordinária mutação de valores intelectuais e abrupta aquisição de factos inéditos não constitui património exclusivo da gente lusitana; toda a Europa culta, de Leonardo da Vinci a Galileu, assistiu, maravilhada, à surpreendente revelação de conhecimentos, de descobrimentos e de invenções que transformaram profundamente o saber e cuja subitaneidade suscita um dos mais subtis e complexos problemas da história e da sociologia da ciência.

Não é, pois, privativo de Portugal o extraordinário acontecimento, mas sendo geral revestiu, não obstante, entre nós características peculiares, de certo modo indígenas. Captá-las, demarcando-lhes as respetivas linhas estruturais, é o nosso desiderato; por isso, em vez de coligirmos quantitativa e extensivamente os resultados da observação no campo das diversas ciências, o que, aliás, pode ser levado a cabo frutuosamente por especialistas, procuraremos refletir sobre as origens, morfologia e feições que apresentam.

A atividade científica de todos os tempos e lugares, conforme às exigências do predicado, radicou sempre nos factos, umas vezes diretamente, na sua pureza imediata, tal como a Natureza os oferece, outras, mediatamente, na respetiva expressão livresca, isto é, coados através de uma mente que os observou, descreveu e transmite. Daí, a existência de duas vias capitais na marcha do pensamento científico: a que se dirige para a descoberta do inédito, aonde só conduzem o pressentimento inquieto e insistente, a imaginação audaz mas disciplinada ou o génio divinatório, e a que trilha o caminho do já sabido com o fim de contrastar as opiniões estabelecidas ou de simplificar e clarificar as demonstrações e explicações apresentadas.

Dos dois caminhos foi este último o que a mente lusitana primeiramente seguiu. Compreende-se.

A missão primordial da modernidade científica consistiu em expurgar o saber da crosta de erros e equivocadas interpretações que a Idade Média tolerara, regenerando-o nas fontes puras e sempre vivas da ciência helénica. Por isso, se designa comummente de Renascença o século XVI e a designação, embora orgulhosa e até pedante, é apropriada para sugerir a sensação que o homem de Quinhentos teve de renascer com alentos e modos de vida espiritual, que, de certo modo, se haviam interrompido ou atrofiado durante séculos. Pelo imperativo das circunstâncias, o saber encerrado nos livros da Antiguidade Clássica tornou-se, assim, o saber dominante e privilegiado, ditando, consequentemente, o rumo inicial do novo ideal científico.

Este ideal científico, que designaremos de restituição pelo sentido retrospetivo que o animava, teve como requisito prévio e indispensável o conhecimento das línguas sábias, que aliás se decorou também com os louros do saber autónomo; a função exemplificativa e moralizante que a Idade Média aplicara às sentenças e opiniões dos antigos, tão manifesta ainda no Leal Conselheiro e na Virtuosa Benfeitoria, nas divagações retóricas das Crónicas de Azurara, equivalendo no plano parenético ao comentário das explicações de Aristóteles nos planos científico e filosófico, esmoreceria perante o esforço laborioso e sagaz de restituir os escritos clássicos à prístina pureza. Considerado em si mesmo, este ideal, que encontrou em Martinho de Figueiredo lição proficiente, porventura ainda digna de ser ouvida pela erudição filológica, carecia de problematicidade profunda e de amplitude prospetiva; no entanto, não foi estéril. Pelo contrário.

Restringindo-nos apenas ao âmbito da nossa cultura, a sua desenvolução assinalou-se por estádios sucessivamente mais complexos, pois se de início deu ensejo ao aparecimento do mero saber das palavras, ainda timidamente desprendido da tradição gramatical do trivium como se verifica na Nova Gramatices Marie Matris Dei Virginis ars, (Lisboa, 1515), Estêvão Cavaleiro, mestre no Estudo de Lisboa que a escreveu ad expellendam a Lusitania pertinaoem barbariem, suscitou depois a ciência dos conceitos e juízos, de significação lógica e, sobretudo, dialética, tão transparente no De conclusionibus de António de Gouveia  e no ensino de Nicolau de Grouchy no Colégio das Artes de Coimbra, para culminar por fim na explicação e reconstituição do saber antigo, sobretudo com Pedro Nunes no tocante a Ptolomeu e a Arquimedes, e no estabelecimento crítico de textos, designadamente com Aquiles Estaço (1524-1581) em relação a Catulo, Tibulo, Suetónio e Cícero, e com Pedro da Fonseca, em relação à Metafísica de Aristóteles, cujos comentários tão valiosos são sob outros pontos de vista.

Apesar dos defeitos que lhe eram inerentes, esta conceção retrospetiva da ciência não foi inútil. A sua índole e estrutura impediram, sem dúvida, a desenvolução do progresso científico, mas se não o desenvolveu, preparou-o, dando atualidade à ciência antiga, despertando o espírito crítico, habituando a inteligência a estabelecer problemas concretos, precisos e limitados — condição prévia de avanços firmes, e, sobretudo, expurgando o saber medieval de erros e superstições. Da letra ao espírito nem sempre a distância foi grande na mente dos mais privilegiados, como Pedro Nunes, cujo génio soube simultaneamente assimilar criticamente o que os antigos excogitaram — veja-se a dedicatória do De crepusculis— e criar com originalidade ciência nova.               

Eliminar erros equivale frequentemente a rasgar o caminho da descoberta da verdade, e não era porventura missão instante da modernidade despojar o saber das crendices arábigas, tão vivazes ainda no princípio do século XVI, para o regenerar na clareza harmoniosa, embora nem sempre exata, das criações helénicas?

No que respeita, por exemplo, à astrologia, de tão fundas e tenazes raízes, atente-se no apelo de bom-senso lançado por Frei António de Beja no libelo ético-religioso, que não científico nem filosófico, do Contra os juyzos dos astrologos (Lisboa, 15'23), na troça salutar de Gil Vicente, cujas desenvoltas risadas ajudaram a desatar imaginários liames da credulidade na influição astral, na lufada de ar limpo que emanara dos escritos e do ensino de Henrique Cuelhar  e de Tomás Rodrigues da Veiga, desprendidos da tradição arábiga mas ligados a Hipócrates e Galeno, e compreender-se-á melhor a problematicidade que incitou Pedro Nunes assim como a conexão que no seu espírito se estabeleceu entre a erudição clássica, inseparável do Humanismo, e a exatidão inerente às explicações de feição matemática.

Esta corrente de restituição científica foi servida por diversas vias de acesso, ou mais exatamente pelo concurso de vários afluentes, brotando uns, os mais antigos, ida Itália, principalmente durante o reinado de D. João II, provindo outros, entrado já o século XVI, de Salamanca, de Alcalá de Henares e de Paris. E difícil discriminar com nitidez a força de cada um, dado que o espírito da época a todos insuflou o mesmo alento, mas temos por seguro que, sob o ponto de vista científico, nenhum atingiu o caudal da “parisiana ciência” em que fala Fr. António de Beja e, como sua derivação, do contributo dos portugueses que em Paris ensinaram ou formaram o seu espírito.

A Itália ensinou, sobretudo pelo exemplo insinuante do convívio, a polir o gosto e a prezar o latim como idioma da eloquência, mas foi nas escolas ide Paris que a inteligência se tornou ágil na controvérsia teológica, subtil na disputa dialética, crítica no forragear da erudição greco-latina e nos primeiros tentames da objetividade científica. A tendência epocal da cultura assim como a preparação científica e técnica das expedições descobridoras impeliam o espírito no sentido de uma problemática realista, de objeto preciso, limitado e concreto; no entanto, se é legítimo salientar o condicionalismo nacional das novas formas da atividade científica nem por isso deve subestimar-se o alento renovador que o nominalismo parisiense gerou na mente de alguns estudantes portugueses.

Quaisquer que hajam sido as circunstâncias históricas e as implicações doutrinais da via moderna no ensino da Lógica, ou melhor, no comentário e interpretação das Súmulas de Pedro Hispano, é fora de dúvida que o nominalismo parisiense representou no trânsito do século XV para a Renascença a reação do bom senso empírico contra os desmandos metafísicos do realismo escolástico. Dominou-o o intento de levar a simplicidade onde havia a complicação, e se o intento conduziu ao formalismo lógico e à sofistaria dialética nem por isso deixou de impregnar com densidade noética e prática a sentença de Occam: Pluralitas non est ponenda sine necessitate. O repúdio agnóstico das abstrações e das entidades metafísicas deu incentivo ao espírito de observação, ou mais precisamente, à apreensão do concreto na sua realidade e circunstâncias peculiares; por isso, o nominalismo foi uma escola de positividade e de formação crítica, aliás não isenta de propensões heterodoxas.

Dentre os colégios onde se ensinou segundo a via dos nominais têm para nós particular importância os de Cocqueret e de Montaigu.

No de Cocqueret foi mestre de Artes o lisbonense Álvaro Tomás, que por 1513 ensinava a Filosofia Natural, isto é, os livros aristotélicos de re physica, contando muito provavelmente entre os discípulos Francisco de Vitória, que mais tarde tão notavelmente haveria de dilatar a gloriosa tradição que Salamanca simboliza.

É uma das figuras mais lamentavelmente esquecidas da nossa história científica, apesar do renome do seu ensino, continuado, como tudo leva a crer, por Juan de Celaya, notadamente no que respeita à teoria do movimento (impetus), e, sobretudo, do mérito da obra publicada em Fevereiro de 1510— Liber de triplici motu, proportionibus annexis magistri Alvari Thome, Ulixbonensi, phitosophicas Suiseth calculationes ex parte declarans.

A referência às calculationes de Suiseth sugere imediatamente, pelo menos, a tendência nominalista de Álvaro Tomás, visto se entender então por calculado o método tendente a dar rigor à expressão do pensamento, não só pelas distinções minuciosas, como pelo emprego de termos precisos, notadamente matemáticos.

Não sabemos se Leibniz, que se interessou vivamente pelas ideias de Suisset na medida em que defendiam o abandono do método das disputas “pour adie des comptes et raisonnements» logrou conhecê-las mediante o Liber de triplici motu, mas se a atitude lógica, de certo modo precursora da logística, é de notar, sobressai mais relevantemente a originalidade da sua observação das propriedades do movimento uniformemente acelerado (motum uniformiter difformen et difformiter difformen) e a intuição da sua fecunda problemática científica.

Pela época e pelo assunto o De triplici motu assinala-se entre os primeiros trabalhos matemáticos dos colégios parisienses, suscitados pela publicação do texto e de quaestiones sobre o De Sphaera de João de Sacrobosco, designadamente de Lefèvre d'Étaples (Faber Stapulensis) (Textus de Sphaera cum commento, Paris, 1497) e de Pedro d'Ailly (Quaestiones sobre a Esfera de Sacrobosco, 1494, 1499), e em cujo caminho seguiram, como os factos inculcam, Pedro Ciruelo, Gaspar Lax, Martín Población e João Fernel, mestre no colégio de Sainte-Barbe, cujas conceções cosmográficas do Monalosphaerium (Paris, 1526), dedicado a Diogo de Gouveia, o Velho, e da Cosmotheoria (Paris, 1528), dedicado a D. João III, e médicas, expostas em diversos livros, suspeitamos dignas de exame no estudo histórico do desenvolvimento da ciência em Portugal.            

Não lográmos até agora precisar com exatidão a influência de Álvaro Tomás na mentalidade e na problemática científica do nosso século XVI; admitimo-la, não obstante, corno eminentemente provável no ensino de João Ribeiro, discípulo entusiasta de Juan de Celaya  e mestre de Súmulas na Universidade de Lisboa (1527-1530), e na formação de D. Francisco de Melo e de Pedro Margalho, cabe-lhe ainda o mérito de haver concorrido, embora mediatamente, para abrir o caminho que Pedro Nunes trilhou com passos seguros e originais, quanto mais não seja no claro intuito de explicar quantitativamente a Esfera Celeste e certas espécies de movimento.

Com efeito, D. Francisco de Melo (1490-1536), de quem Gil Vicente entre chistes foi dizendo a sério que possuía “ciência avondo” e frequentara no colégio de Montaigu as lições de Gaspar Lax, que aliás lhe fez o mais rasgado elogio, ocupa um lugar proeminente neste esforço de ressurreição do saber antigo com os comentários, ainda inéditos, ao De insidentibus in humidis de Arquimedes e à Perspetiva de Euclides; e Pedro Margalho redigiu como que a síntese do saber cosmográfico do primeiro quartel do século XVI.

O seu Physices compendium (Salamanca, 1520) é ainda um livro medieval, sem paralelo possível com o Tratado da Esfera (1537) de Pedro Nunes; não obstante, prende a atenção do estudioso pela variedade da informação cosmográfica e geográfica e pelo pecúlio de algumas novidades, bem merecendo e compensando as fadigas de uma monografia.

Vivendo sob o império do livro e sob a fascinação do prestígio da autoridade, faltou a estes indivíduos o sentimento da independência mental e a simpatia pelo que na Natureza há de atrativo e próximo do homem. Dir-se-ia que em vez de ciência fizeram erudição e que o ideal científico aristotélico, no qual formaram o espírito e nele permaneceram, assim como a conceção hierárquica e transcendente da realidade lhes tolheu a viragem intelectual, genitora da ciência moderna, e de imensas consequências, que consistiu em substituir a tradicional pergunta do porquê e para quê das coisas e dos eventos pela da aparentemente simples, mas nova e difícil pelo abandono de velhos hábitos mentais, do respetivo como; no entanto, sem as suas obras e influência pessoal não teria sido possível o desenvolvimento ulterior do espírito científico, porque se é certo que ao ressuscitarem o saber antigo continuavam a encadear os tempos modernos às ideias gerais do passado, também não é menos certo que preparavam a modernidade conferindo importância ao exame singular dos factos, requisito prévio da atividade científica criadora.

Pelo que vimos dizendo, há como que dois estádios na marcha do espírito científico do nosso século XVI, um de restituição, outro de inovação: se aquele trilhou 'o caminho do saber antigo, este procurou o saber inédito, isto é, trocou a erudição pela ciência e concedeu primazia à ars inueniendi sobre a ars demonstrandi.

Quais as raízes, formas e caracteres deste novo espírito científico?

A resposta conduz-nos ao objetivo capital das nossas reflexões, ou seja, a influência dos descobrimentos e da colonização na estrutura e na morfologia do saber.

Num passo muito divulgado do Tratado... em defensam da carta de marear, inserto no Tratado da Esfera, escreveu Pedro Nunes que os “descobrimentos de costas: ylhas e terras firmes: nam se fezeram indo a acertar: mas partiam os nossos mareantes muy ensinados e prouidos de estormentos e regras de astrologia e geometria: que sam as causas de que os Cosmografos ham dandar apercebidos”. Como é manifesto, tão autorizada asserção — hoje amplamente comprovada após os estudos de Joaquim Bensaúde e de Luciano Pereira da Silva —, inculca logicamente o estudo das condições científicas e sociológicas que tornaram possíveis os descobrimentos, sugerindo ainda, à maneira de complemento, a reflexão sobre a influência que, por seu turno, os mesmos descobrimentos exerceram no conteúdo e nas formas do saber.

Com efeito, técnica e ciência, isto é, ação e pensamento, mantiveram sempre tão íntima relação que mesmo na nossa era de profunda (e quase bárbara) especialização, em que comummente se atribui à ciência plena autonomia, seria impossível, na maioria dos casos, explicar, e por vezes compreender, o desenvolvimento científico sem o socorro das exigências da ação, assim como o aperfeiçoamento e alargamento do domínio da técnica sem o desenvolvimento do puro conhecimento científico. Intimamente correlacionadas, a técnica e a ciência procedem da necessidade vital de resistir e de persistir no seio da Natureza indiferente, quando não hostil, sendo no esforço de adaptação ao meio, ora defensivo, ora ofensivo, que uma e outra radicam, sob o idêntico pressuposto da constância dos eventos naturais.

Nesta ordem de ideias, o tema da reflexão desdobra-se em dois problemas: o das condições técnicas e respetivo “pré-saber” dos descobrimentos, e o do saber suscitado pela nova realidade que eles revelaram. Só nos ocuparemos do segundo, e não totalmente, mas apenas sob o ponto de vista da atitude mental com que foi considerado o copioso reportório de factos e de valores, de eventos, seres, bens e males, que os descobrimentos patentearam.

Como é óbvio, a mente lusitana foi colocada ex abrupto em face de uma nova realidade física e vital, cuja imediata tomada de contato logo dissipou, como disse Pedro Nunes no mesmo Tratado, «muitas ignorâncias”, designadamente os seguintes tópicos da cosmografia ptolomaica e medieval que o mesmo sábio precisou com a clareza que lhe é habitual: “ser a terra mor que o mar: e auer hi Antipodas: que ate os Santos duvidaram: e que nam ha regiam: que nem per quente nem per fria se deyxe de abitar. E que em hum mesmo clima e igual distancia da equinocial: ha homés brancos e pretos e de muy diferentes calidades”.

Perante a nova, terminante e atraente realidade, cuja evidência pôs fim a velhas divergências de intérpretes da Escritura e de Aristóteles, a inteligência foi naturalmente solicitada para a reflexão autónoma, isto é, sem o apoio preguiçoso da autoridade dos livros e dos magistérios, e para a construção de um novo sistema de verdades, ou melhor de coordenadas, mais ou menos harmónico com a técnica que possibilitara os descobrimentos, com a consistência das inéditas observações e com a coerência das novas demonstrações.

A surpresa e a estupefação foram naturalmente a primeira manifestação psicológica do contato com as novas circunstâncias; a breve trecho, porém, sobretudo por imposição das necessidades vitais e das conveniências políticas, ao vaguear incerto do imprevisto sucedeu a recolha empírica de conhecimentos mediante a observação e a experiência vivida, a qual, como disse Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de situ orbis, «he madre das cousas” e ensinou “radicalmente a verdade” e “o contrario do que (a mayor parte do que) os antigos escritores disseram”.

Daqui, o alvorecer ido sentimento de confiança na razão, com a consequente convicção dela poder edificar uma ciência mais ou menos desprendida dos livros tradicionalmente acatados e dos vínculos da autoridade: é o que revelam as seguintes frases de Pedro Nunes e de Garcia de Orta, quando, respetivamente, aquele alude ao “craro entendimento e ymaginação que pode facilmente inventar muitas cousas que os antigos ignorarão”, e este observa a Ruano, no Colo quio do benjuy, que lhe não ponha “medo com Dyoscorides nem Galeno, porque não ey de dizer senão a verdade, e o que sey”.

Garcia de Orta, antigo e vencido opositor à cadeira de Súmulas da Universidade de Lisboa, onde aliás interinamente regeu nas terças finais do ano letivo de 1531-32 Filosofia Moral, isto é, a Ética de Aristóteles, não disse com individuação o que entendia por saber, isto é, “o que sey”, nem tão-pouco como havia alcançado saber algo, isto é, o método. Desprende-se, no entanto, dos Colóquios uma atitude de relativa independência mental, na qual o doutor livresco da tradição medieval e o da renascente erudição humanista cedem, de certo modo, o passo ao observador que se norteia e deixa guiar pelo lume do senso--comum na marcha sempre incerta e arriscada da ars inueniendi.

Como é óbvio, para que o espírito, lavado e isento, pudesse entregar-se à investigação concreta dos factos era necessário ainda que se despojasse de certas ideias gerais consagradas e dominasse sem reservas aquelas tendências deformadoras a que Bacon chamou com propriedade ídolos ou feitiços do erro. Até onde chegou o rasgo libertador?

Árduo problema, assim no conjunto como na espécie, designadamente, e à maneira de exemplo, o saber se atingiu o próprio cerne da noção aristotélica da matéria como pura possibilidade, para passar a considerá-la como expressão concreta dos corpos; sem embargo, porém, das hesitações e dúvidas, afigura-se-nos que o exercício da ars inueniendi implicou, pelo menos, a modificação do sistema categorial do pensar, atribuindo prevalência à quantidade sobre a qualidade e aos juízos de relação sobre os inerentes OU puramente ontológicos (do ser e substância).

Se bem interpretamos os factos, tais alterações da atividade mental trouxeram consigo novos comportamentos psicológicos e lógicos, designadamente a preferência da consideração particularista sobre o discurso genérico e o primado da vontade, o qual se afirmou na consciência épica, sem paralelo com outro povo contemporâneo e de que são exemplos culminantes as Décadas de João de Barros e Os Lusíadas, cujo herói é, essencialmente, o querer resoluto e indomável. Foi o espetáculo maravilhoso dos 'descobrimentos que fortaleceu o comportamento voluntarista, aliás ancestral na conformação íntima da nossa gente, e deu alento fugaz ao sentido individualizante e empirista “novas ylhas, novas terras, novos mares, novos povos: e que mays he: novo ceo: e novas estrellas”, cujas revelações surpreendentes e incitantes exortaram a inteligência lusitana às “mais altas e mais discretas conjeyturas: que as de nenhüa outra gente do mundo”.

As altas e discretas conjeturas de que fala Pedro Nunes não foram muito longe nem muito fundo na investigação científica e na especulação filosófica, mas com terem esmorecido rapidamente nem por isso deixaram de proclamar a crise do saber tradicional, ou antes o dinamismo do sentimento do não-saber acompanhado do anelo de um novo saber coerente com a imagem da Natureza recém-descoberta e com as necessidades vitais e políticas da colonização.

Uma vez mais se comprova a velha e sempre viva afirmação de Aristóteles de ser a “admiração” o alento incitante do saber, por ser nela que cumpre radicar o estremecimento intelectual que guiou a mente lusitana no sentido de novos caminhos explicativos e sistematizadores dos conhecimentos e dados da realidade. Se não erramos na interpretação dos factos, três formas de saber emergiram com vária intensidade e diversa configuração:

a) Saber de compreensão e de explicação, sobretudo da nova imagem da Natureza;

b) Saber técnico e de domínio da Natureza;

c) Saber de valores e de ação ético-social.

Vejamos concisamente o lineamento morfológico de cada um destes saberes.

A ruína da cosmografia tradicional, da qual João de Barros debuxou expressivo quadro na Ropica Pnefma, impunha naturalmente as retificações e convidava ao mesmo tempo a nova interpretação explicativa da Natureza, mas as duas sugestões, com serem germanas, não tiveram desenvolvimento paralelo, visto aquela ter legado realmente às ciências geográficas e cartográficas dados e observações valiosíssimas e esta não haver suscitado teorias gerais de alcance vasto e profundo. Não há ciência sem amor, e tanto quanto é possível penetrar na intimidade da emoção científica dos nossos sábios quinhentistas somos levados a crer que eles não amaram nem sentiram a Natureza como todo, só pousando os olhos com inquieta curiosidade e afeto compreensivo no mar largo, no céu estrelado e, em grau menor, nas plantas e nos animais. Dir-se-ia que a luz e o movimento os não emocionara nem lhes abalara a explicação que as Escolas tradicionalmente repetiam: se é certo que António Luís, no De occultis proprietatibus e nos cinco livros Problematum (Lisboa, 1540) prefigurou a Natureza como teatro de forças vitais, não menos certo é que a sua prefiguração se baseia em analogias ilusórias e responde, quando responde, a conjeturais observações possíveis.

O seu “caso”, solitário e puramente pessoal, parece até testemunhar debilidade filosófica na especulação sobre a Natureza assim como ausência do verdadeiro espírito positivo na observação dos fenómenos naturais; por isso, é naquelas emoções que cumpre filiar a incitação científica e a originalidade criadora dos nossos sábios.

Com efeito, a emoção do mar largo associada à do céu estrelado deu-nos, graças sobretudo ao génio de Pedro Nunes, a passagem de certas práticas empíricas da arte ide navegar ao estado de ciência, com significação nova e alcance universal, e a teórica de alguns fenómenos astronómicos, notadamente dos crepúsculos; e a emoção admirativa e defensiva das plantas e dos animais, na mente observadora de Garcia de Orta e de outros minores, conduziu a descobertas nos domínios da História Natural, designadamente na Botânica e na Zoologia.

Abandonar um ponto de vista tradicional no exame e na consideração dos factos é sempre um rasgo difícil e não raro causa motora do progresso científico. Pode duvidar-se se esta glória cabe plenamente a Pedro Nunes e a Garcia de Orta, por estarem, cronologicamente, no alvorecer da ciência moderna e continuarem vinculados, na teoria da ciência, ao ideal científico aristotélico; seja qual for, porém, a decisão da dúvida, temos por incontestáveis e modelares as suas atitudes científicas, isentas de afetação e orientadas para o exame analítico dos objetos do conhecimento, sem o qual não é possível a explicação exata. Sob este ponto de vista são até mestres atuais de metodologia e de objetividade científica: se Pedro Nunes ambicionou explicar matematicamente alguns conceitos e relações e se Garcia de Orta procurou descrever o comportamento próprio de alguns seres da História Natural, o raciocínio rigoroso de um e a observação precisa de outro tiveram por denominador comum a submissão da razão ao nível real dos factos e da respetiva conexão lógica.

A despeito destes rasgos, a obra dos nossos sábios quinhentistas está impregnada de sentido utilitário; nascida na maioria dos casos das necessidades práticas dos descobrimentos e da colonização, jamais enjeitou a origem, porque à mais cabal e perfeita satisfação delas se dirigiu predominantemente.

Não foi, pois, puramente especulativa e teoricamente desinteressada a nossa ciência de Quinhentos; a sua feição prática e técnica, notabilíssima em D. João de Castro, é mesmo a mais bem estudada e conhecida, graças ao Conde de Ficalho, Luciano Pereira da Silva, Gomes Teixeira, Carlos França, para só citar os que a morte levou, e cujos livros são marcos da nossa historiografia científica, aliás continuada por briosa falange de investigadores em plena atividade.

A descoberta e o domínio das terras e das sociedades que os nossos navegadores trouxeram para a civilização não podiam levar-se a cabo exclusivamente com os conhecimentos e técnicas das ciências da quantidade e da observação naturalista; reclamavam, pelo menos com igual, senão superior exigência, o apreço esclarecido dos valores que fortalecem o ânimo, guiam a conduta, e conferem sentido ultra-vital à existência. Daí, outra manifestação inconfundível da inquirição intelectual.

A meditação do numinoso e do santo, que infunde a Teologia, a fundamentação e ordenação prática do justo, que é o objetivo do Direito, a apreensão do bem e do virtuoso, que informa a Ética, suscitaram, mormente depois de Trento, as mais profundas e sistemáticas preocupações da mente portuguesa. A conceção teocêntrica do Mundo e da vida, cuja feição medieval ainda se mantém vigorosamente nalguns autos de Gil Vicente, sobretudo nos do tempo da Rainha Velha, D. Leonor, recobrou novo alento e diretriz firme na defesa da dogmática católica contra a Reforma e o antropocentrismo do Humanismo neopagão, tornando-se atual e militante.

No plano da ação, esta foi a época do entusiasmo missionário, e no da especulação, a dos esforços para recuperar a harmonia doutrinal da Natureza e da Graça, orientando a problemática para a reflexão sobre o ser, os estados e o destino da natureza humana, e guiando a conduta para a aliança do viver e do perviver, da fé e do império, no anelo de se unirem espiritualmente, pelos laços da comunhão religiosa e da subordinação jurídica, os homens e os povos. Daí a prostração da ciência do ser perante a especulação do valer, e, consequentemente, a floração pujante da literatura valorativa, e em certo grau existencialista, a qual constitui um dos tesouros da nossa cultura, aliás reconhecido pelo génio de Leibniz, que teve em elevada conta a obra teológica de Diogo Paiva de Andrade.

Cada uma destas direções reclamava naturalmente o primado para os respetivos objetos da reflexão, e dessa disputa nos legou Fr. Heitor Pinto simbólico testemunho, ao opor face a face, em diálogo opinioso, na Imagem da Vida Cristã, o legista e o matemático:

“Dizei-me, se não fossem as leis por que os nossos se regem no mar e na terra, como poderiam eles sustentar a índia, nem ainda achá-la e conquistá-la?

“Mas se não fosse a Matemática, disse o matemático, como poderiam eles levar lá essas leis?... Como se puderam atravessar as duvidosas ondas das imensas águas e fazer-se estrada real e diretíssima por elas sem conhecimento do norte, e das estrelas, e dos círculos celestes? A agulha e carta de marear que cousa é senão mera matemática? Essas regiões tão separadas e tão estranhas como fora possível descobrirem-se e conquistarem-se, se os nossos não foram instrutos nos conhecimentos dos movimentos dos céus, nos graus da altura, no mapa, no astrolábio, no quadrante, na propriedade e variedade dos ventos, nos eclipses, na arte de navegação, na cosmografia e sítio do Mundo, na quantidade da terra, na natureza dos elementos e, finalmente, no conhecimento da esfera, o que tudo consiste na Matemática?”

A disputa da primazia entre o ser e o valer, a especulação e a ação, perdurou na consciência intelectual portuguesa; mas seja qual for o juízo que a crítica formule acerca dela, dos seus benefícios e dos seus constrangimentos, basta a mera referência para testemunhar a variedade da morfologia científica e da problemática suscitadas pelos descobrimentos e conquistas, com as quais se defrontou corajosamente a inteligência dos portugueses, dignos do século em que tiveram a dita de viver e de, em grande parte, esculpir para a História e para a Civilização.            


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