Espinosa e os Judeus de Amesterdão

A morte de Espinosa, em 21 de Fevereiro de 1677, não pôs termo à campanha contra o Tratado Teológico-Político. As paixões não afrouxaram, pelo contrário, recrudesceram com o aparecimento das Opera Posthuma. Ao Tratado viera somar-se a Ética, à repulsa do exegeta iconoclasta o furor contra o metafísico audaz e consequente; por isso os sínodos soltaram imediatamente o brado de alerta, os Estados de Holanda e Oeste-Frísia decretaram em 25 de Junho de 1678 a proibição da venda, reimpressão e tradução das Opera Posthuma, e a bibliografia antiespinosana cresceu e atingiu assombroso vulto. Deixemo-la em paz, no silêncio do esquecimento, veredicto às vezes injusto da posteridade, e prossigamos.

Assistimos até agora ao abalo que a divulgação do Tratado suscitou nas confissões cristãs e nas parçarias filosóficas e teológicas; é tempo de nos aproximarmos da judiaria do sórdido Vlootenburg (cidade das pulgas) de Amesterdão, onde Baruch de Espinosa nasceu, e da do bairro aburguesado do Burgwal, da mesma cidade, à beira da nova Sinagoga, no qual cresceu, se educou e de cujos laços de comunhão religiosa e de solidariedade na desdita e nas esperanças milenárias se desligou sacrilegamente.

Oh! A abjuração de Baruch, o desejado!

Nem o desgaste do tempo, nem o cansaço de sucessivas tribulações, nem a indulgência do judaísmo liberal, nem o orgulho de tão excelsa glória, embotaram na memória tenaz de Israel a pungente recordação; hoje, como há três séculos, há sempre uma voz que surge do imo das Sinagogas e das escolas talmúdicas para relembrar a audácia sacrílega do réprobo proditor.

É humano; portanto, compreensível.

Podiam, porventura, os correligionários suportar com indiferença que alguém do seu sangue, vítima como eles da expatriação, cuja mocidade inteligentíssima vaticinara à Sinagoga um novo pilar da fé, não contente em abjurar o Eterno afrontasse Israel com ideias sacrílegas, e se volvesse em destruidor da Lei, querendo convencer que na crença dos fiéis havia puerilidade, nos ritos, quimera, na teologia, estultícia e ambição? Oh! Não, compreendamos a repulsa amargurada dos judeus de Amesterdão.

Portugal e Espanha foram na meia-idade asilo da diáspora; porém, o absolutismo político e o furor fanático do asilo fizeram ergástulo, e depois de banirem Israel das garantias do Direito condenaram-no a viver na lei pela hipocrisia e pelo sacrilégio. Fugindo à monstruosa dissimulação e ao zelo implacável dos inquisidores, o judaísmo recuperara na terra hospitaleira de Holanda o mais ditoso dos bens, e respondia às torturas do Santo Ofício com a exaltação da Sinagoga.

O rigorismo ortodoxo foi então, talvez mais do que nunca depois de Tito, alívio moral e baluarte intransigente; viver na crença e transmiti-la foi para a alma amargurada do judeu errante o supremo consolo e a altiva réplica ao martírio de tantas vítimas, sacrificadas em oblata ao Eterno e à vitalidade imperecível do povo eleito.

Discutir a Lei, abandonar os ritos, dissentir dos rabinos, equivalia simultaneamente a ofender a tradição sagrada e a repudiar o sacrifício de vidas e provações, a que Israel resistira corajosamente; por isso, quando se erguia uma voz discordante no seio da comunidade, a cólera e o anátema abafavam-na energicamente, e ao som do shofar se anunciavam os pecados e a maldição do réprobo. Não é o amor da liberdade, mormente quando se recupera, estremecido e suspeitoso?

Se bem interpreto os factos, não penso que os judeus emigrados da Península houvessem dotado a comunidade de Amesterdão com uma espécie de Santo Ofício para defesa da Sinagoga. Não. O Judaísmo não teve na diáspora ambições de proselitismo; não forçou ninguém a acatar a Tora, nem imolou os que abjuraram. Do banimento e da excomunhão ao auto-de-fé a distância é enorme; é quase um abismo.

Religião fechada, senão peculiar a uma raça, essencialmente ritual, compreende-se que os levitas de Amesterdão zelassem vigilantemente a integridade das tradições contra os assaltos da ignorância e do personalismo crítico.

O Judaísmo não foi inquisitorial; foi fanático, e o fanatismo conduziu-o em certos momentos, como o que nos ocupa, a manifestações estreitas e detestáveis de intolerância, reveladoras do medo e da fraqueza, que não da força serena.

Todas as confissões religiosas, todas as associações humanas religadas sinceramente à volta de credos morais e aspirações políticas, excluíram, excluem e excluirão sempre os não-conformistas. Tolerá-los, seria o suicídio moral; mas a excomunhão só é tolerável quando se não tinge de ódio e de calúnia, e a comunidade de Amesterdão deixou-se cegar por tão abomináveis impulsos. Não é porventura estranho que os judeus de Amesterdão houvessem sofrido tantas provações para lograrem o direito de adorarem o seu Deus e não compreendessem que dentre eles alguém dissentisse da comunidade?

Uriel da Costa, Juan do Prado e Baruch de Espinosa são vítimas gloriosas do fanatismo farisaico; por ele, compreendemos a revolta intelectual e moral dos réprobos, os anátemas dos fariseus, certos insultos à moral e à razão, e a ilusão dos que pensam exterminar as lutas de ideias por decretos, sentenças e excomunhões.

Documentos recentes, e sensacionais pelos problemas inextricáveis que inculcam, fazem duvidar que o adolescente Baruch de Espinosa houvesse sido destinado ao rabinato; porém é indubitável, pela lição dos documentos e dos biógrafos, notadamente Lucas, que frequentou o Bet-Midrash Etz-Haim (Árvore da Vida), tão diferente do ensino das Yeschibot das judiarias alemãs e polacas.

Segundo a tradição dos mais antigos biógrafos, Espinosa fora o santo laico sobranceiro às humanas fraquezas, rico de ideias generosas e pobre de recursos materiais, a quem a vizinhança da miséria não aconselhara a revolta nem desviara das supremas meditações do amor intelectual de Deus. Era o modelo leigo do asceta desinteressado; e eis que os arquivos notariais de Amesterdão, com surpreendente novidade, nos vêm revelar o realista ganancioso, que pelo lucro dos negócios e pelo zelo implacável dos seus direitos de credor talvez houvesse ambicionado amealhar rapidamente um património, cujos rendimentos lhe garantissem para a vida inteira a independência material.

Filho e neto de comerciantes, ele continuou na mocidade, o que se ignorava, a tradição familiar. O avô, Abraão de Espinosa, e o pai, Micael de Espinosa, nascido talvez na Vidigueira, se não foram abastados, viveram pelo menos com decorosa mediania; morando em Amesterdão, tiveram negócios na Inglaterra, na França e noutros países, ocupando-se talvez no comércio dos produtos coloniais e no das pedras preciosas, e ambos fizeram parte da direção de sociedades israelitas de beneficência. Assim, o pai, em 24 de Julho de 1637, foi eleito presidente da Santa Companhia de Dotar Órfãs e Donzelas e, em 2 de Dezembro de 1650, administrador da misvah, banco de empréstimo aos negociantes judeus, no qual, quando morreu (28 de Março de 1654), deixou um crédito superior a sessenta mil florins.

Baruch de Espinosa, pelo menos até à excomunhão, manteve a tradição familiar e, como tudo leva a crer, dirigiu os negócios da firma paterna durante dois anos, desde a morte do pai, em Março de 1654, até à liquidação da herança, em Março de 1656. Assim é que, só ou associado a seu irmão Gabriel, os registos notariais no-lo apresentam assaz diligente e zeloso na cobrança de créditos e no cálculo dos negócios, que parece se alargaram até Portugal. Entre os devedores figurava Manuel Duarte, judeu português, de 23 anos, morador em Amesterdão, o qual, citado, compareceu na companhia do notário Benedito Baddel em casa de Bento de Espinosa, no dia 20 de Abril de 1654, para solicitar uma moratória. Encontraram apenas a criada; poucas horas depois, inteirado da visita, o diligente credor procurava o notário para lhe requerer a penhora dos bens do devedor e sua venda imediata. No dia 4 de Maio, Manuel Duarte protestou junto do notário Adriano Lock contra o arresto, e do curioso documento apura-se que o devedor endossara a Bento Espinosa uma letra de quinhentos florins sobre António Álvares, a três meses da data. António Álvares havia falido, e o devedor dera então uma ordem de duzentos florins sobre seu irmão Gabriel Alvares, prometendo pagar o restante; porém esta ordem também não tinha sido paga e por isso Espinosa pedia que o devedor lhe entregasse por conta algum dinheiro ou joias em penhor. Frustrados estes expedientes, Espinosa resolveu requerer três dias depois, no dia 7, ao mesmo notário, a prisão de António Álvares, o qual se desforçou violentamente, socando-o na cabeça e arrebatando-lhe o chapéu, que Gabriel Álvares pisou e atirou para a valeta. O desforço parece ter dado resultado, porque logo a seguir, no mesmo dia e perante o mesmo notário, se lavrou outro documento pelo qual Espinosa se humanizava, entrando em acordo com o devedor, que se comprometeu a indemnizá-lo pela falta de pagamento, pelas custas da prisão e ainda pelo valor do chapéu.


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