Espinosa e a publicação do Tratado Teológico-Político

O confronto de algumas conceções do Tratado com aÉtica é assunto sugestivo e tentador. Pode inquirir-se, por exemplo, se a conceção de Deus e a teoria da fé que salva pela obediência aos mandamentos divinos, do Tratado, se harmonizam respetivamente com a conceção de Deus ou natureza naturante e a teoria do amor intelectual de Deus, da Ética; e pode ainda, levando o inquérito à consciência recôndita de Espinosa, indagar-se se ele foi sincero na expressão do credo religioso do Tratado e se o credo se aproxima mais do Cristianismo, se do Judaísmo ou do teísmo.

A meu ver, e com excelente companhia, o espinosismo é uma filosofia da salvação, e à luz deste juízo não se me deparam os abismos doutrinais, que alguns críticos encontram, nem descubro em Espinosa o génio diabólico que se ataviasse de serafim para ludibriar almas cândidas e espíritos de boa-fé. Não. Entre o Tratado e a Ética há sem dúvida diferenças, mas diferenças não são antagonismos, como a diversidade de pontos de vista não é a contradição.

Deixemos, porém, para outra oportunidade a prova do nosso juízo; sigamos por agora a jornada tormentosa do Tratado.

O Tratado foi escrito, dissemo-lo já, em tempos de instabilidade política e de dissídios religiosos. Descobria-se no horizonte a reação político-clerical do partido de Orange. Espinosa, amigo de Jan de Witt, republicano, apologista da liberdade de expressão de pensamento, adversário das pretensões políticas de predicantes, homem singular no proceder e no pensar, mais do que ninguém teve presente a advertência dos sucessos que não iludem.

Em 1665, ano em que se ocupava já na redação do Tratado, os burgueses de Voorburgo, membros da comunidade reformada, dirigiram ao burgomestre de Leide uma participação, na qual o denunciavam como «ateu e instrumento de ruína na República »; e em 1668, Adriaan Koerbagh, médico e escritor, do «círculo» de amigos do filósofo, compareceu perante o tribunal de Amesterdão, sob a acusação de ofender a teologia oficial.

Fora um processo suspeitoso e significativo. Do decurso do interrogatório, ressalta claramente a intenção de descobrir e provar a cumplicidade de Espinosa; Koerbagh, porém, afirma sem hesitação que, apesar das relações, não se ocupara com ele dá paternidade de Jesus, nem recorrera à sua ciência hebraica. Koerbagh havia livrado o amigo, mas não se livraria a si; o tribunal condenou-o a dez anos de prisão e a igual tempo de desterro das províncias de Holanda, Zelanda e Oeste Frísia. Morreu quinze meses depois na cadeia de Rasphuis.

Que mais era preciso para agoirar um destino tormentoso ao Tratado!

Espinosa escrevera-o no intento de fomentar a paz entre os teólogos e a concórdia entre os intérpretes da Escritura; e se àqueles dizia que as pretensões políticas deles eram infundadas e cada um podia interpretar livremente a Bíblia, aos críticos racionalistas e incrédulos mostrava-lhes a insensatez e cegueira das suas lucubrações. Obra de paz, seria acolhida ao som de guerra; políticos reacionários, teólogos, pastores e predicantes, por profundas que fossem as trincheiras doutrinais donde se guerreavam, todos se concertariam no combate ao adversário comum, que, compreendendo todas as divergências, não dava razão a nenhuma. A defesa da integridade pessoal — a condenação de Koerbagh não era aviso? — aconselhava prudência. Caute, era a divisa de Espinosa; e em obediência à divisa, na qual se soletra sem esforço o Bene vixit, qui Bene latuit de Descartes, publicou em 1670, anonimamente, o Tractatus theologico-politicus. No frontispício não exarou o seu nome, e consentiu, se é que não sugeriu, que a portada indicasse a oficina de Henrique Kunraht, de Hamburgo, como local de impressão, quando é certo que o Tractatus havia sido impresso na oficina de Cristóvão Conrado, em Amesterdão, junto do canal de Eglantier.

À dissimulação juntava-se a fraude; é isto compreensível e explicável?

O silêncio em tempos difíceis e incertos é, sem dúvida, cómodo; mas a comodidade é quase sempre, para os que prezam a altivez mental e a dignidade moral, indício de hipocrisia, quando não de cobardia. É uma forma de transigir e de abdicar, e se é certo haver nobres caracteres que o toleram em holocausto à realização de uma grande obra, a todos benemérita, ou à salvaguarda de ternos sentimentos, não menos certo é que o ânimo de alguns não o suportam sem se sentirem dilacerados na estrutura moral e nas aspirações cívicas.

Espinosa não nascera com alma de mártir. Ele tinha que dizer aos contemporâneos e aos vindouros; preocupava-o o destino da mensagem, e não a fama de a haver proferido. Se declarasse o nome, abriam-se-lhe as portas do cárcere, e à infâmia da pessoa sucederiam a reclusão e a ignorância do seu pensamento. Onde está o filósofo que não anteponha a discussão das ideias ao renome da pessoa, ao viver o perviver, e para resguardar o destino das suas meditações não recate o ser físico, se isso for propício?

Não; o anonimato do Tratado Teológico-Político não é prova de repulsiva cobardia; pelo que sabemos, ou antes ignoramos, da índole de Espinosa, pensamos antes que é testemunho da humanitas seu modestia, virtude que a Ética admiravelmente define.

Espinosa teve amigos, ou melhor afeiçoados; a nenhum franqueou a intimidade, e a todos acolheu como cidadãos da república dos espíritos. A sua correspondência epistolar é impessoal; a Oldenburgo, a Bleyenberg, aos companheiros Louis Meyer e Jarig Jelles, expõe apenas ideias e quando muito menciona uma ou outra deslocação ou quebranto de saúde. Não faz confidências, não transmite mágoas ou alegrias, não solicita conselhos nem consolações: é uma razão que se dirige exclusivamente à razão dos outros, assim no comércio epistolar, como no trato pessoal. Não conviveu com ninguém, a nenhum homem patenteou a sua alma; as grandes personalidades que o visitaram, De Witt, Huyghens, Hudde, Leibniz, não nos transmitiram a seu respeito a menção de uma confidência. Nem os contemporâneos nem os pósteros penetraram na intimidade deste solitário, que nas ocorrências da vida se encontrou apenas consigo próprio e com a ideia de um Deus, incapaz de distinguir os amigos dos inimigos, de ouvir implorações, dispensar lenitivos e vingar ultrajes.

Não; o anonimato de Espinosa não é o dos cobardes, mas anonimato é uma coisa e ardil fraudulento outra, e se aquele é louvável pela renúncia a honrarias e proveitos, este é censurável. Não justifico, pois, a fraude; compreendo-a apenas, por saber que, mediante o ardil, que aliás não inculpou ninguém como vítima inocente, o autor do Tratado se furtara à demanda dos tribunais holandeses, hesitantes perante aquela declaração do livro haver sido impresso em terra forasteira. Fraquejando a prova material, não podendo instruir-se o processo, a conspiração dos adversários e o clamor das vinganças não conseguiram estorvar o filósofo no caminho da meditação. Por isso, os rancores recaíram apenas sobre o livro, e que rancores?

Como todas as inovações, como todas as críticas independentes, sobretudo ético-religiosas, o Tratado escandalizou o maior número; para a grande maioria era um vómito do inferno, para raros, obra séria e meritória. Compreende-se.


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