3. Compleição do património português

Bastaria isto para gerar o convencimento de que, nós portugueses, haurimos o patriotismo com o leite materno e com a fala que nos é própria, de vocabulário abundante e fino, mas incomparavelmente mais apto a exprimir o que o coração sente e os olhos veem do que o que a razão excogita e subtilmente distingue.

Para o nosso povo, a compenetração com a natureza é espontânea e íntima. Viver é conviver e não pugnar com o mundo. Daí, o predomínio das razões do coração sobre as razões da razão e a tendência a humanizar o mundo físico, não o sentindo somente como produto, potencial ou teatro de forças cegamente mecânicas. Os versos famosos do genial Teixeira de Pascoais,

Cada folha que tombava Era uma alma que subia,         

brotam espontaneamente da intuição de que o ser da matéria não é diverso do ser do espírito, e consequentemente, de que o mundo é uma sinfonia de factos de consciência. Por isso, estes versos do mais vibrátil poeta-metafísico da linguagem portuguesa, cuja seiva espiritual aliás Antero ambicionou conceptuar em visão do mundo, encerram uma expressiva significação coletiva, pondo bem à vista quanto em nossa alma predomina o espírito de doçura e de comunicação afetiva sobre o espírito de mensura e de utilização prática.

Daqui, ainda, a terceira componente da nossa compleição e que entra também na constituição do nosso sentimento patriótico: a saudade.

Não há tema mais cativante e sugestivo do que falar da saudade a portugueses em terras do Brasil, onde aliás a sentimentalidade saudosa parece ter adquirido cambiantes peculiares. É que a inefável palavra tem o condão misterioso de fazer emergir do âmago da nossa personalidade uma constelação de recordações, agradáveis ou penosas, mediante as quais o presente nos aparece como que desprovido de valor próprio. A saudade manifesta-se sempre pelo contraste do presente que se vive com o passado que se viveu e exprime-se pela presença espiritual da ausência que se perdeu ou de que a consciência se sente distante, acompanhada do desejo, ativo ou contemplativo, de a tornar a reviver.

Esta me parece ser a estrutura da consciência saudosa, e sendo assim, é manifesto que a saudade é um acontecimento psíquico suscetível de se dar em qualquer ente humano. Pode a consciência de uns ser mais sensível que a de outros à inadaptação das circunstâncias ou ao contraste das situações vividas, à privação de bens ausentes e ao desejo de os reviver; não obstante, é da própria natureza da vida emocional e da temporalidade inerente à nossa vida espiritual o sentimento da conformidade ou desconformidade das situações sucessivamente vividas e, consequentemente, a possibilidade do contraste da vivência de uma situação atual com a recordação da vivência ou das vivências de situações transatas.

Daqui, a ilação de que a saudade não é privilégio de portugueses, de brasileiros e de galegos. É, repito, um acontecimento psíquico suscetível de se dar na consciência de quem quer, mas se isto é exato sob o ponto de vista da psicologia em abstrato não é menos exato, sob o ponto de vista concreto, que a saudade significa para portugueses, brasileiros e galegos uma maneira que lhes é própria de responderem às solicitações do mundo que os rodeia ou iàs situações em que se encontram, e na qual se compenetram em complexa combinação o passadismo e o idealismo, a vida vivida e a vida a viver.

A história e a observação dão-se as mãos para justificarem este asserto.

A primeira coisa digna de nota assinala-se com o facto do aparecimento da palavra saudade se ter verificado no noroeste da Península, em terras de Entre-Douro-e-Minho e da Galiza, e não noutro território peninsular ou de fala românica. A geografia inculca, consequentemente, além do problema filológico, aliás já esclarecido por filólogos portugueses e brasileiros, o problema sociológico e o psicológico.

Sociologicamente, seduz a explicação que radica a saudade na celtização dos povos do noroeste peninsular e nos factores históricos que concorreram para que Entre-Douro-e-Minho, mais do que em qualquer outra região do território português, se tivesse operado a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional. Se assim é, a origem e o regionalismo da palavra levam ao convencimento de que o idiomatismo do fonema exprime não só uma conformação psíquica peculiar a luso-galaicos, mas ainda a tendência a conferir à existência um sentido personalista.

Com efeito, a saudade não se confunde com a soledade nem com a nostalgia. Na soledade, a consciência encontra-se somente consigo mesma, nua, desamparada, sem conexões que a prendam ao passado e ao futuro. Marca gelidamente o caminho da amargura, quando não do desespero; na saudade, pelo contrário, a consciência radica no tempo outrora vivido e abre quase sempre uma janela para o consolo da esperança.

Na nostalgia dá-se como que a especificação da saudade. Ambas partem do isolamento psíquico, mas a evasão na saudade apresenta-se multiforme ao passo que na nostalgia se reporta direta e imediatamente ao ambiente onde se constituiu ou desenvolveu a individualidade psíquica. Reveste, por isso, duas formas: a nostalgia da terra natal e a nostalgia do lar familiar, mas tanto uma como outra geram o mesmo tormento do exílio, ou seja a inadaptação no meio das facilidades e a insatisfação diante da fartura, quando não é a desilusão, que impele “o filho pródigo” a retornar à mansão paterna, a morriña, que consome a ternura do galego distanciado do eido natal, a dór e a urât do romeno oprimido pela melancolia da solidão, ou ainda o banzo, que aniquila no negro desterrado as próprias necessidades vitais.

O vácuo da nostalgia é fundamentalmente inerente à constituição e à atividade psíquicas, pelo que tem nome em todas as línguas e correlativa expressão em quase todas, senão todas, as literaturas. A saudade, porém, não é propriamente um estado psíquico de desarticulação da realidade, mas o impulso e a satisfação em interpretar a existência com sentido personalista. É-se sempre saudoso de algo, isto é, na saudade dá-se sempre a consciência de algo ausente e cuja presença se apetece com “desejo melancólico”, como disse Almeida Garrett, ou seja, a um tempo, o ensimesmar-se e o exsimesmar-se, para tudo dizer em duas palavras concisas e densas.

O que venho dizendo sumária e rapidamente teve em vista o estabelecimento da seguinte conclusão, de importante consequência: o patriotismo vivido pela grande maioria dos portugueses tem como componentes primaciais elementos afetivos, de escasso e ténue conteúdo intelectual.

Daqui, a vitalidade das exigências e dos apelos do amor pátrio e ao mesmo tempo a sua insuficiência. É que o patriotismo implica necessariamente uma relação entre a consciência individual e a existência de algo, ideal ou real, que ultrapassa o indivíduo. Não é agora oportuno indagar se isto que ultrapassa o indivíduo lhe é imanente ou transcendente à consciência. Basta de momento acentuar que sem o calor e a vibração do sentimento o patriotismo esmorece e definha, mas esta condição vital não significa que a essência do patriotismo resida no sentimento individual, mesmo que se lhe confira o fluir imanente. Pelo contrário.


?>
Vamos corrigir esse problema