3. Compleição do património português

Com a mão na consciência, tão sinceramente como se jogasse o próprio destino, a reflexão em terra brasileira, robustecendo, aliás, antigos pensamentos, levou-me à convicção de que esta conceção não pode nem deve ser o nosso ideal do Portugal de amanhã, que é sempre o ideal que mais importa. Não pode, porque o Mundo já está descoberto e o que aconteceu nos séculos XV e XVI é irrepetível sob todos e quaisquer pontos de vista; e não deve, porque este ideal fomenta um complexo ambicioso e como que de superioridade, cujas crises e vicissitudes geram inexoravelmente, por contraste, o sentimento da decadência, quando não o da inutilidade de qualquer esforço coletivo. Repare-se um instante na nossa variada literatura sobre a decadência de Portugal, e logo se notará que esta literatura teve por nervo um ideal demasiado alto e exageradamente ampliado. Sei que o abandono deste ideal pode suscitar a opinião desalentadora dos portugueses de hoje se não reputarem à altura dos seus antepassados, em cuja ação a morte não teve poder. Sei isto e sei outras coisas mais ou menos relacionáveis; volto, no entanto, a insistir na realidade óbvia e insofismável de que o Mundo já está descoberto.

As nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar sucessivamente da massa dias suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente. Estacionar, é cometer o pecado da incompreensão e a cobardia de enfrentar as realidades que o acontecer faz emergir da temporalidade histórica.

A esta luz, o que hoje importa não é um ideal de exaltação e de poderio, mas um ideal de elevação humana, mediante o qual os portugueses afirmem a sua maneira de ser na parcela do mundo que lhes compete integrar e salvaguardar na civilização que representam, suscitando necessidades, incutindo a perseverança no trabalho e rasgando a inteligência e a consciência para os mais altos e dignos valores humanos.

Historicamente, este ideal é a projeção, senão o remate, da gesta que nos deu fisionima inconfundível na história do mundo; e eticamente, ele estabelece um conjunto de conexões suscetíveis de congregar todos os portugueses, vivam onde viverem e seja qual for a sua confissão religiosa ou parcialidade política, numa afetividade comum, fazendo-lhes sentir a pátria como ação criadora e corno destino coletivo.

Somente este ideal, a meu ver, dá expansão ao sentido personalista da nossa compleição, que se admira o herói, também se rende ao homem bom e justo. E não só dá expansão à nossa compleição, senão que lhe fixa meridiano próprio e a preserva eficazmente dos dois flagelos obscurantistas do nosso tempo: o que simplifica a vida, mecanizando-a e privando-a do sentido qualitativo da existência, e o que ofusca o claro sol que tem iluminado os livres horizontes do espírito com as nuvens álgidas da estepe ou com a bruma opaca dos fanatismos meridionais.

São estes juízos e anelos a oferenda que vos trago no dia grande que hoje vivemos. Pensei-a com ânimo isento e sincero, que é a única forma digna de se servir a pátria; e fortaleceu-a a lição admirável da atividade dos portugueses no Brasil. A obra humanitária das suas Beneficências, como primeira afirmação da existência de qualquer núcleo de portugueses e de porta franca a quem quer que dos seus serviços necessite, incitou-me a pensar que o que a nossa gente, humilde e obstinada no trabalho e sabedora do que custa e vale a vida, levou a cabo no plano da caridade, é suscetível de transpor outros planos em que a dignidade da pessoa humana, que é a palavra mais bela e nobre de todos os vocabulários e linguagens, constitui a meta suprema.

Brotando da fonte viva do nosso patriotismo e radicando no cerne da nossa compleição, que tem a família por centro de interesses, a tenacidade do trabalho como primeira condição da honradez e a vida dúplice como a maior objeção moral, o ideal da dignificação personalista, partindo da elevação das condições de vida e desenvoluindo-se na capacitação dos dotes e recursos, é, a um tempo, na conjuntura que nos é dado viver, a melhor maneira da geração atual afirmar a nossa maneira de ser e de servir os valores constitutivos e permanentes da Pátria portuguesa.


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