3. Compleição do património português

O patriotismo, qualquer que seja o vigor e a amplitude do sentimento que o aquece, é essencialmente um nexo que liga a consciência do indivíduo à totalidade dos seus compatriotas e à história pretérita e principalmente futura do país.

A consciência de que o sentir e a ação individual coincidem inteiramente com o ditame da grei nacional é o ponto mais alto a que pode chegar o contentamento patriótico. Não é tanto a satisfação do dever cumprido, como sói dizer-se; é sobretudo a compenetração profunda de se sentir totalmente participante de uma vida que ultrapassa os indivíduos e se integra e solidariza com o ser profundo da própria Pátria: com o ser de ontem, com o ser de hoje e principalmente com o ser de amanhã, porque a Pátria vive mais do futuro que do passado e do presente, torno a dizer.

Como vêdes, a reflexão sobre a índole do patriotismo afeta o que há de mais escrupuloso e complexo na sensibilidade moral. Enquanto a indagação recai sobre o sentir concreto e historificado, a atitude é observadora, conduzindo a um saber descritivo, mas quando passa do ter sido para o que o patriotismo é em si mesmo e para o que pode ou deve ser, o indagador empenha a própria personalidade.

A indagação deixa de ser neutral. Quem a pratica, sem entoar hosanas, carpir lamúrias ou verter recriminações, é inexoravelmente levado a medir a responsabilidade do seu pensamento perante a própria consciência e perante a consciência alheia. O pensar de quem assim discorre pode nutrir-se do alento e do estímulo dos sentimentos a que me referi, mas o único caminho que pode conduzir à determinação do objeto ou do conceito fundamental do patriotismo é o da razão esclarecida e fundada. Por outras palavras: o da razão que problematiza. O que importa é o juízo e não a opinião, e menos ainda o murmúrio lírico do poeta ou a configuração plástica do artista. A expressão poética ou artística é sempre expressão pessoal e intransferível, por mais representativa que a imaginemos, de sorte que somente o pensamento que se sente responsável perante a verdade e se submete unicamente às determinações exatas do objeto, pode aspirar a uma conceptuação de Portugal, isto é, a responder à pergunta em que consiste e qual o sentido do nexo que liga a consciência dos portugueses à nação a que pertencem.

Comecemos por notar as características deste nexo, não abstratamente mas atentos à realidade que nos é própria.

A primeira que se nos oferece é a estabilidade e persistência.

Ë que a pátria entendida como entidade moral é una e idêntica, e até ocupa normalmente um espaço físico delimitado por fronteiras, isto é, pelo espaço físico de outras pátrias. Pode ser servida diversamente e até pode — ou antes deve, na maioria dos casos — desejar-se que empreenda novas tarefas e rumos ou se situe numa posição e num ideal tidos como fundamentais; no entanto, é o mesmo o objeto supremo a que se reportam estes pontos de vista, que inspiram e nutrem a diversidade das ações políticas, sempre partidárias por intrínseco ditame, e portanto limitadas. Por isso, se se pode mudar de política sem afetar a estrutura do sentimento patriótico, ninguém muda de pátria sem destruir o próprio conceito de pátria e sem lacerar e fender a própria consciência íntima, pelo rompimento de conexões que viveu e a que deu solidariedade.

A segunda característica do elo que nos liga à pátria é o desinteresse.

Na consciência isenta e sincera é a representação da pátria que origina e norteia a ação, e não às avessas. O pecado mortal do utilitarismo consiste precisamente em considerar a grei nacional como meio ao serviço do indivíduo, sem notar que o amor da pátria somente se alcança e goza quando a consciência se sente participe de um todo que ultrapassa e engloba os interesses individuais.

Daqui a terceira característica do nexo que estamos considerando: a feição englobante.

A sede efetiva e viva da pátria é a consciência dos seres que a compõem, mas isto não quer dizer que a pátria seja constituída pela consciência dos indivíduos. A pátria é uma realidade que nos é dada, e o grande problema educacional e moral consiste em que o que nos é dado como facto tradicional seja sentido corno emoção e pensado corno ideia e corno ideal. Para nós, portugueses, a freguesia e o município têm sido os elos sucessivamente mais gerais que conduzem à apreensão efetiva do nexo englobante que é a pátria — e faço ardentes votos por que o continuem a ser, qualquer que seja ou venha a ser a importância de outros elos inspirados mais ou menos na consciência de classe ou de profissão.

A consciência da conexão que liga os portugueses, diversificados em várias e até estou em dizer, em necessárias parcialidades e confissões, tem 'assegurado a Portugal a continuidade, poupando-o a essa sucessão de catástrofes e de ressurreições que é a história de numerosos países: tanto basta para que seja insensatez procurar-lhe outros fundamentos e características.

Sem deformar grandemente a realidade, pode pensar-se que o exercício da nossa vida coletiva tem sido tecido e destecido por duas famílias mal avindas, lutando uma com mentalidade de herdeiro, e portanto pela autoridade, e pugnando a outra com amor do risco e espírito de iniciativa, e portanto pela liberdade. Daí, dar-se o caso do nosso desenvolvimento se apresentar às vezes com ritmo oscilante e como história das ocasiões perdidas, mas seja qual for o número e a extensão destas oscilações e destas ocasiões, há um facto que as supera e de algum modo compensa: a constância entre nós da ideia de que não deve forçar-se o curso da história, precipitando o desenrolar dos acontecimentos. Sabemos, por um saber de experiência feito, no decurso de muitas gerações, que se as criações do pensamento são fulgurações na opacidade da ignorância ou da incompreensão, os ditames do patriotismo, mormente do que importa à nossa existência coletiva como nação, são, pelo contrário, constituídos e determinados pela continuidade do que é estrutural. Podem e devem variar as mensagens e tarefas das sucessivas gerações, sem as quais a vida coletiva estagna, mas o elo que liga as sucessivas gerações não deve variar e até tem de ser preservado da debilidade da anemia e da toxina de alguns venenos.

Onde encontrar, porém, o ideal que transforme o patriotismo localista e nostálgico num plexo que religue a gama variada da sentimentalidade patriótica e integre todos os portugueses num destino moral comum?

A resposta exige uma das mais árduas indagações que podem propor-se à consciência moral e reflexiva. Como tudo o que se funda na razão, ela tem de ser a um tempo consistente e coerente, e se a coerência, isto é, a conformidade lógica, se alcança com relativa facilidade, a consistência, isto é, a compatibilidade com todos os factos que importa considerar, é de extraordinária complexidade.

De modo geral, oferecem-se dois grandes caminhos; o que atenta predominantemente no que subjaz e nutriu a expansão portuguesa no mundo, e o que apela para a maneira de ser portuguesa em ordem à sua intervenção na atividade civilizadora.

Os descobrimentos e conquistas assinalam sem sombra de contestação a nossa posição na história universal, sendo maravilha e assombro que um pequeno povo, de exíguos recursos, tivesse como que duplicado a obra da criação, na frase expressiva de Humboldt. O facto, ou antes a continuidade dos factos, pois alguns se prolongam quase até aos nossos dias, inculca a fundamentação de uma conceção da pátria, que tenha por núcleo aglutinante a noção de imperium, ou mais propriamente a de exaltação heroica.


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