Homenagem a investigadores e professores

“A nossa geração, ou melhor, à nossa camada, compete a realização do trabalho iniciado. Antes de construir teorias é necessário alicerçá-las com factos. Antes de expor ideias gerais, fatalmente inconsistentes por infundamentadas, e que, como tais, só aproveitam à literatura do dia-a-dia, temos de organizar o relato minucioso e fiel dos documentos.

“E sobre eles, fazendo tábua rasa do passado, construir seguramente o monumento destinado a glorificar a memória das gerações de artistas que enriqueceram com suas obras o capital tradicional da nossa terra.

“É este o método que entendo seguir nos estudos de história artística, em cuja elaboração os documentos têm de ser a pedra angular.

“Evidentemente que o documento só, não basta. Mas a informação escrita, autêntica, contemporânea da obra ou do monumento, é o elemento inicial, basilar, de qualquer tentativa. À volta da peça documentada na origem, na autoria e no tempo, se agrupam depois as oficinas e as escolas.

“O inventariar monumentos, o arquivar, pela fotografia e pelo desenho, aspetos e plantas, o recolher abundantes espécies nos museus, o reunir, num só local, bastas reproduções, o beneficiar as pinturas antigas, tudo visa e serve ao mesmo escopo. Porém, só o documento esclarece, valoriza e anima todo esse feixe de forças.”

Esta atitude implica, evidentemente, limitações e estreitezas, mas o que ela perde em atrativo teórico e em exercício da razão explicativa ganha-o em robustez sadia, porque sempre a teoria há de ir buscar alento aos factos seguramente estabelecidos, e o progresso científico dependerá da exata resolução de problemas concretos e, por assim dizer, parcelares.

Assim, hoje como amanhã, será porventura possível pensar-se a sério sobre as artes em Portugal, especialmente no século XVI, sem prévio conhecimento dos dados e dos juízos de Vergílio Correia, probamente estabelecidos uns e severamente relacionados outros?

Na arqueologia, o seu reconhecido prestígio proporcionou-lhe duas explorações de notável ressonância: uma, na pré-história, em 1925, no passado pré-romano mais recente, a da necrópole de Alcácer do Sal, “o mais importante documento, até hoje descoberto em Portugal, do nosso contato, da nossa relacionação com o Mediterrâneo” (Uma Conferência sobre a Necrópole de Alcácer do Sal, 1935), a outra, já nos tempos históricos, a partir de 1930, no oppidum de Conimbriga, a exumação e restituição de uma cidade romana sem par entre nós. A morte prematura não lhe permitiu levar a cabo estas explorações e, sobretudo, que a pena esperta do escritor e do sábio redigisse os livros que uma e outra lhe acordavam na mente; com ficarem interrompidas, nem por isso deixam de atestar perduravelmente a glória científica de Vergílio Correia como investigador no terreno.

Foi principalmente pela pena que Vergílio Correia serviu a universidade, o país e a ciência. Das duas atitudes capitais da vida docente, raramente conciliáveis na mesma mente, a do mestre que tudo subordina à perfeição da lição oral, por forma que ela constitua um todo vivo, no qual o aluno apreenda, a um tempo, os factos relevantes, a sua coordenação lógica e respetivas implicações ou consequências, e a do investigador, umas vezes cuidadoso da exatidão exaustiva e minuciosa, outras, da síntese, e quase sempre trocando o aluno atento pelo leitor anónimo e abstratamente imaginado — foi esta última que se impôs ao espírito de Vergílio Correia.

Compreende-se: a formação de autodidata, o embaraço da linguagem, que só se soltava sem estorvo na familiaridade da conversação, o pendor literário, a convivência com arqueólogos e etnógrafos estrangeiros, o próprio cariz agressivamente polémico que a história da arte e a arqueologia têm imprimido à maior parte dos que a cultivam entre nós, concorreram para que, na sua estimativa, a obra escrita prevalecesse sobre a lição oral; por isso, Vergílio Correia não deixou um discípulo, talvez a obra mais sedutora, mais bela e mais difícil, e logrou, em compensação, o cortejo de admiradores, que sobre a sua obra se inclinam como estudiosos e cujas frequentes citações nas principais línguas da nossa Europa lhe conferem aquela espécie de imortalidade, refletida e baça, que consiste em aparecer nas páginas dos livros.

A sua memória vive saudosamente no coração dos que o amaram e estimaram, como inolvidável companheiro desta jornada em que anelamos servir algo que alente e transcenda os deveres quotidianos. Com eles se apagará, porventura, o derradeiro eflúvio da sua vida afetiva; por isso o preito duradouro que pode render-se à sua obra, para que se não extinga a lição silenciosa e incitante que ela encerra, consiste em coordená-la sob os temas que lhe deram impulso.

Assim o entendeu a universidade que Vergílio Correia serviu e honrou. Tão nobre propósito, que a Exma. Senhora D. Alice Toucedo Figueiredo Correia aprovou e os colegas e os amigos recolheram com gratidão, inicia-se com o presente volume, cujo prosseguimento não esmorecerá.


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