Joaquim de Carvalho, historiador das instituições e pensador das ideias políticas, por José V. de Pina Martins

O plano que, logo de início, estabelecemos para A Obra Completa de Joaquim de Carvalho previa para o volume VI alguns escritos consagrados à história das Instituições e ao pensamento político. Já, em tornos precedentes, incluímos trabalhos do Mestre que bem podem ser tidos corno de história das Instituições, especialmente o que apareceu no volume IV acerca da organização do ensino superior no século XVI, dizendo respeito às Universidades de Coimbra e de Évora. Por se tratar, porém, de uma investigação mais geral, e que não envolve a evolução da Universidade medieval para a moderna, pareceu-nos que seria razoável situá-la no domínio da história da Cultura, visto que Joaquim de Carvalho havia elaborado um outro trabalho, profundo e pormenorizado, acerca da organização do ensino em Portugal desde a época de D. João I até à de D. João III, abraçando, portanto, um mais vasto leque histórico-institucional do século XIV ao século XVI, não incluindo a Universidade eborense. É este estudo monográfico que ocupa as primeiras cinquenta e três páginas do presente volume.

Este volume VI da Obra Completa de Joaquim de Carvalho é integrado por cinco grandes capítulos, dos quais os três primeiros focam respetivamente a história das instituições culturais (séculos XIV-XVI) e a história das instituições do nosso constitucionalismo (o 2.° e o 3.°), um deles mais voltado para a evolução institucional do Estado (o que analisa longamente A corrente regeneradora) e o outro procurando explicar a génese e o desenvolvimento da ideologia republicana através do próprio funcionamento da máquina constitucional de 1820 a 1880.

Embora todos estes estudos estejam bem marcados por um pensamento político, verdade é que não o exprimem diretamente numa enunciação ex profeso. Esse pensamento vamos descobri-lo, explícito sem ambiguidades, na série de artigos insertos no Diário Liberal e que preenchem as trinta e nove pá mas densas do quarto capítulo, em que Joaquim de Carvalho disserta luminosamente e com equilíbrio modelar sobre Liberalismo e Democracia, o conceito de Estado total e mesmo, tanto numa perspetiva de aberta política da cultura como à luz do seu ideário democrático-liberal, sobre a Universidade de que foi professor insigne e cujas qualidades e defeitos conhecia  melhor do que ninguém.

O Capítulo quinto — o mais vasto pelo número das páginas — é todo ele preenchido por um Esboço de uma História da Educação. Intitulámo-lo «Esboço», mas trata-se de um «Esboço» per modo di dire : são duzentas e vinte e sei páginas cheias, admiravelmente escritas porque cristalinamente pensadas, e recheadas não só de uma riquíssima erudição mas de ideias modernas e com uma informação bibliográfica opulenta e atualizadíssima. É, julgam s, o canto de cisne do grande educador intelectual. Porque, de facto, ficou incompleto, ainda pensámos inseri-lo no derradeiro volume Fragmenta ac minora, mas estaria lá deslocado porque, com efeito, embora Joaquim Carvalho o não tenha concluído, pôde levá-lo ininterruptamente até ao Ratio Studiorum e, portanto, até à Contra-Reforma. Ninguém, em Portugal, ode ria, como ele, traçar as grandes linhas da história do Ensino em Portugal e na Europa durante a época das Luzes, de Verney e Ribeiro Sanches a é Cenáculo, com o estudo das reformas pombalinas inspiradas pelos primeiros e nas quais colaborou o ilustre autor dos Cuidados Literários. Mas não quis o destino que ele tivesse vivido mais dois ou três anos para poder oferecer-nos aquela que seria, se tal tivesse acontecido, a mais completa e profunda História da Educação no nosso país.

1. Os pensadores e os historiadores do pensamento não estão geralmente preparados para estudar a história das instituições e a história social. Embora não haja pensamento que não seja encarnado ou histórico, a verdade é que a especulação teorética anda não raro divorciada das categorias metodológicas indispensáveis para erguer a história concreta — e por isso mesmo científica — dos grandes aparelhos criados pelo Estado, ao serviço de uma sociedade organizada. Toda a história tem de ser feita à base de uma vasta documentação rigorosamente criticada. Suscita a maior admiração verificar como Joaquim de Carvalho, habituado a mover-se intelectualmente no domínio das ideias, consegue oferecer-nos, através de um estilo ao mesmo tempo entusiástico e medido, a reconstituição das grandes épocas através das suas instituições culturais e políticas, isto é do Estado, que é o poder organizado ao serviço da comunidade nacional. O vasto e meticuloso debuxo do funcionamento das instituições de cultura nos séculos XIV-XVI aí está a demonstrar que o mestre o era não apenas na área do pensamento problemático mas ainda no domínio da evolução diferenciada e não raro surpreendente da Universidade portuguesa, no trânsito da última Idade Média para os primórdios da modernidade.

D. Fernando, ao trasladar a instituição universitária de Coimbra para Lisboa em 1377-1378, não só tinha a intenção de a estabelecer duradouramente na capital como ainda, segundo Joaquim de Carvalho, se propunha operar uma verdadeira reforma, inaugurando assim «a era das reformas universitárias, cujo desenvolvimento e execução coube à dinastia de Avis, e desde logo ao seu fundador». Em 3 de Outubro de 1384 o Mestre de Avis, «ainda Regedor e Defensor do reino», confirma «os privilégios, constituições e ordenações da Universidade», confirma igualmente «a declaração de que esta permaneceria perpetuamente em Lisboa, a concessão aos doutores, licenciados e bacharéis em direito civil e canónico de poderem advogar sem licença régia, e, finalmente, a proibição, anteriormente estabelecida pela Universidade, de os bacharéis e estudantes ensinarem particularmente fora das aulas do Estudo, sob pena de multas e outras sanções». É o reconhecimento de uma autonomia universitária larga e franca, implicando privilégios que se situam até no próprio foro académico, «cível e criminal».

D. João I está, pois, na origem de um crescimento qualitativo da Universidade. Aumenta também a tabula legentium in utroque iure e institui-se pela primeira vez no magistério universitário uma cátedra de Teologia, cuja docência pertencera até então, como privilégio, aos dominicanos e franciscanos, nos seus respetivos conventos. Se o nome ilustre de João das Regras aparece entre os lentes e mesmo como diretor do Estudo, cabe ao infante D. Henrique «a glória de prosseguir e dilatar a reorganização da Universidade». Joaquim de Carvalho evidencia, com sólida documentação, em que consistiu a sua ação como «governador ou protetor da Universidade». Mas não esconde também, por outro lado, que ele não seguiu os conselhos tão eloquentemente dados pelo infante D. Pedro na conhecida carta de Bruges, dirigida a D. Duarte, e escrita entre 1424-1428, com um projeto de reforma universitária que, se fosse levada a bom termo, afastaria a organização universitária dos modelos salmantino e bolonhês, para a aproximar, segundo Joaquim de Carvalho, do modelo oxoniense. O estabelecimento de Colégios imitando os de Paris e de Oxford só em parte veio a ser tentado por Diogo Afonso Mangancha, mas foi, de facto, uma iniciativa sem futuro. Só mais tarde, depois da transferência da instituição para Coimbra em 1537, é que se fundariam diversos colégios universitários na cidade do Mondego, mas, segundo Joaquim de Carvalho, tratou-se mais de «aposentadorias» do que de grupos científicos comunitariamente ordenados.


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