Joaquim de Carvalho, historiador das instituições e pensador das ideias políticas, por José V. de Pina Martins

Como quer que seja, o infante D. Henrique melhorou materialmente as instalações e ampliou o quadro das matérias de ensino para as sete artes liberais (Trivium e Quadrivium), Medicina, Teologia, Direito Canónico, Leis ou Direito Civil e Filosofia Natural e Moral. Joaquim de Carvalho sublinha que o Infante realizou «uma verdadeira reforma universitária porque, conservando as cátedras existentes, completou o ensino das artes liberais e criou o da Filosofia Natural e Moral, ou, por outras palavras, da filosofia de Aristóteles». A reforma proposta por D. Pedro teria sido uma verdadeira revolução, enquanto D. Henrique preferiu conservar o status quo e melhorá-lo. Além disso, promulgou «os primeiros estatutos universitários de que há memória» '°, jurados na Sé Catedral de Lisboa em 16 de Julho de 1431. Nesse regulamento estão previstas todas as condições exigidas para a concessão dos graus académicos (de bacharel, de licenciado e de doutor) e o próprio cerimonial. Joaquim de Carvalho esclarece todos estes aspetos da orgânica universitária, fundando-se em sólida documentação.

Mas a autonomia universitária tendia, agora, a diminuir. Limitados os seus recursos, tinha necessariamente de apelar para o poder real, e este iria pouco a pouco cerceá-lo e anulá-lo. O declínio começa já, segundo Joaquim de Carvalho, no reinado de D. Afonso V, um dos reis mais cultos de Portugal. O rei-cavaleiro «respeitou a tradição secular» dos dois reitores eleitos anualmente, mas, pelo alvará de 21 de Julho de 1471, «determinou uma nova forma de eleição». Desde então, «como herdeira e continuadora dos foros tradicionais de autonomia pedagógica», a Universidade «tornou-se uma sombra do que fora».  

Sabemos realmente muito pouco acerca «da atividade científica e dos métodos de ensino da Universidade de Lisboa durante o século XV». D. João II apoiou-a ainda menos do que o pai. Inicia-se durante o seu reinado a ida para Florença de algumas personalidades ilustres, entre as quais Henrique Caiado, Martinho de Figueiredo e Aires Barbosa que foram, na nova Atenas, discípulos do grande Angelo Poliziano, esse mesmo que, por volta de 1489, escreve ao monarca português propondo-se como eventual cantor, em grego ou em latim, das gestas marítimas dos Portugueses através das costas ocidentais da África.     

Sublinha Joaquim de Carvalho que foi a partir de D. Manuel I que se iniciou a mudança de rumo por parte dos estudantes portugueses, da Itália para a França. O seu apoio à Universidade teve um preço: reformou a instituição universitária sem antes a escutar. De facto só o rei, o protetor da instituição e os escolares podiam mover a elaboração de novos estatutos. Joaquim de Carvalho informa-nos minuciosamente acerca do novo plano de estudos manuelinos, estabelecendo as diferentes cátedras para as Faculdades de Teologia, Cânones, Leis, Medicina e Artes, com a indicação das próprias tarifas de docência. Há evidentemente um progresso em relação ao regulamento de 1431. Joaquim de Carvalho pormenoriza o elenco dos textos comentados entre os quais se distinguem a Metafísica e a Ética a Nicómaco de Aristóteles.

No estudo do Mestre de Coimbra descrevem-se minuciosamente as cerimónias da investidura, as condições para a obtenção dos graus, as exigências de frequência e de exames e a novidade, em relação à tradição antiga, que representava a eleição do reitor: de facto já não saía do corpo estudantil mas, segundo os novos estatutos, «só podia recair em fidalgo ou homem constituído em dignidade».

O leitor que estiver interessado em conhecer a fundo a administração universitária do período manuelino poderá tomar conhecimento — com proveito e grande prazer — do quadro magistralmente debuxado por Joaquim de Carvalho. Falecido D. Manuel I em 1521, D. João III «conservou o regimento da Universidade de Lisboa, mas indiretamente preparou uma das mais profundas reformas da cultura nacional, patrocinando a formação intelectual da juventude em universidades do estrangeiro». É o movimento que vai culminar com a transferência da Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537 e com o início da atividade do Colégio das Artes em 1548, sob a égide do principal, vindo de Bordéus, com uma plêiade de humanistas que em breve se viram a braços com a repressão inquisitorial, depois da morte, ocorrida prematuramente, de André de Gouveia. É a primavera efémera do erasmismo coimbrão.

D. João III não teve de estabelecer novos estatutos ou um novo regimento. De facto, limitou-se, como sustenta Joaquim de Carvalho, a aplicar os estatutos manuelinos, com intervenções pontuais de ordem pragmática. Antes de D. João III, a Universidade era uma escola de cultura universal; a nova Universidade é «profissional e científica, orientada para a especialização e a investigação». Daí que o rei tenha compreendido que se impunha estabelecer, no Colégio das Artes, um ensino preparatório mais adequado. Não se pode porventura sustentar que o Colégio das Artes seja a réplica portuguesa do Collège de France, pois este, logo de início, como Collège des Lecteurs Royaux, recorre ao concurso de grandes estudiosos e investigadores, o primeiro dos quais é aquele que está na sua origem, o sábio helenista Guillaume Budé.               

O estudo de Joaquim de Carvalho termina com uma síntese das ciências representadas nas espécies da Livraria Real que é iniciada por D. João I e tornada pública por D. Afonso V, o rei que para ela adquiriu códices, tratou da sua instalação, estipendiou copistas e artistas e confiou a sua guarda a Gomes Eanes de Zurara. D. Manuel I aumentou-a muitíssimo, como demonstrou Sousa Viterbo. Entre os livros de D. Catarina, mulher de D. João III, encontravam-se obras de Erasmo, através de edições de textos do grande humanista aparecidas em Espanha, sobretudo em Sevilha e Alcalá.

Joaquim de Carvalho prova mais uma vez, neste seu trabalho, ser um grande historiador das nossas instituições de cultura. Informação bibliográfica vastíssima, exposição sóbria e fluente, clareza modelar, juízos sempre avalizados por uma documentação seriamente criticada.    

2. Será possível que o notável historiador das instituições renascentistas de cultura seja também um bom historiador do constitucionalismo? Não poderá acontecer que aquele mesmo estudioso que, como cidadão, se proclama com orgulho democrata-liberal, se deixe contaminar pelo pendor entusiástico da sua profissão de fé e, na história narrada ou debuxada, faça correr, à objetividade do juízo histórico, riscos de adoção tendenciosa de meias verdades que coloquem em causa a Verdade? Pôr assim o problema pode desde já considerar-se ofensivo para com a extraordinária independência moral e a isenção ideológica do investigador. Quanto às questões de competência, julgue-o o leitor, percorrendo, com ânimo equânime e com serenidade crítica, o segundo capítulo deste livro.

O estudo de Joaquim de Carvalho sobre a corrente regeneradora é integrado por um quádruplo painel histórico: em primeiro lugar, o período de transição e o triunfo da corrente regeneradora desde o acordo de Alcobaça e a expulsão de Beresford até à primeira lei eleitoral e à Martinhada; em segundo lugar, a irradiação do movimento revolucionário compreendendo a adesão das Ilhas e das Colónias, a atitude de Palmela perante a revolução, as revoluções do Brasil e D. João VI e, enfim, a reação dos nossos agentes diplomáticos perante a Santa Aliança; em terceiro, a obra legislativa das Cortes incluindo a formação das Cortes e a definição do seu verdadeiro espírito, a discussão das bases constitucionais, a atitude do Patriarca de Lisboa e o seu exílio, o regresso do Rei, a constituição e as leis votadas pelas Cortes Gerais; finalmente, em quarto, um debuxo do que Joaquim de Carvalho chama a Contrarrevolução, com a análise das suas causas, da Vilafrancada e das promessas de outorgar uma carta constitucional. É um fresco colorido e riquíssimo de eventos novos, com uma densa concentração de acontecimentos num leque temporal relativamente curto, não exorbitando além de Julho de 1823. O historiador não esconde aqui e além a sua simpatia, irradiante de generosidade, pelos altos ideais que os arautos do novo curso da história política em Portugal se propõem implantar nas instituições do Estado. Mas a sua inteligência crítica, sempre vigilante, não oculta também a ingenuidade de uns e o maquiavelismo de outros, as hesitações do Rei e as ambiguidades de alguns dos seus conselheiros, o pragmatismo de uns tantos e o maximalismo dos que, à extrema-direita ou à extrema-esquerda, combatendo-se aparentemente, acabam por servir não raro os desvios do poder para as veleidades tirânicas ou para as confusões atrabiliárias da anarquia. Veja-se, por exemplo, o equilíbrio de judicação intelectual com que o historiador analisa a sugestão da Academia das Ciências, depois da expulsão de Beresford, no sentido de conciliar «a legalidade tradicional com as aspirações dos inovadores» • Uma tal sugestão formulada por uma «corporação então respeitada como nenhuma outra, pelo prestígio dos seus membros, pela admirável ascendência intelectual que granjeara, pela seriedade dos seus trabalhos»  não pôde ser acolhida favoravelmente pelos políticos, não obstante a sua lucidez e a sua moderação, embora, na formação das Cortes pelas Três Ordens, que a Academia preconizava, o terceiro estado viesse a alcançar, pelo número de votos, uma indiscutível preponderância • É neste contexto que surgem personalidades tão altas como Fernandes Tomás e Borges Carneiro que Joaquim de Carvalho tão bem conhecia, principalmente o primeiro, seu conterrâneo, cuja obra e pensamento chegou a estudar.


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