Joaquim de Carvalho, historiador das instituições e pensador das ideias políticas, por José V. de Pina Martins

Seria inoportuno acompanhar o historiador na composição viva e dinâmica do seu apaixonante debuxo histórico. Desejamos apenas sublinhar a mestria com que a sua inteligência política julga todos os excessos, nascidos não raro «da união passageira de duas forças antagónicas: o liberalismo exaltado e o conservantismo militarista». A sua lucidez não hesita pôr em causa a própria incoerência do Estado liberal ao castigar duramente o macróbio D. Vasco José Lobo «por se recusar a jurar as Bases»: «Sem respeito pelas garantias individuais, entusiasticamente votadas, o octogenário bispo foi transportado a Lisboa e encerrado na Torre de Belém, donde logrou sair, em 28 de Julho, após reiterados pedidos, para o convento de São Vicente de Fora». Joaquim de Carvalho, procurando compreender estes excessos, considera-os como estando na génese do mais excessivo antiliberalismo: «Os factos que acabamos de apontar explicam em parte as origens do descontentamento e como a contrarrevolução se ia alimentando no seio da própria revolução».

Um juízo analogamente equilibrado e sereno é formulado acerca da ação do Soberano Congresso cujos erros contribuíram grandemente para o malogro do programa liberal: «A insensata e por vezes agressiva atitude do Soberano Congresso apressou a desunião», e tudo se conjurou, deste modo, para tornar possível a Vilafrancada e, por consequência, a Contrarrevolução.

Ao enunciar as medidas mais importantes estabelecidas após o golpe de Estado, escreve Joaquim de Carvalho: «Esta sumária indicação mostra claramente quanto a nova ordem política era hostil ao regime liberal; no entanto cumpre não esquecer que em Vila Franca D. João VI prometera a outorga de uma Carta Constitucional e o ministério, notadamente Palmela, advogava a necessidade deste diploma».

3. O ensaio sobre a Formação da Ideologia Republicana (1820-1880) é integrado por três amplos capítulos: o primeiro acerca de «A soberania nacional» (pp. 155-178); o segundo sobre «As liberdades públicas e as garantias individuais» (pp. 179-200); e o terceiro focando as «Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo» (pp. 201-253). Trata-se de um discurso de pesquisa historiográfica em que o autor consegue explicar racionalmente, sempre fundado nos eventos históricos do constitucionalismo, a lenta evolução que vai do conceito de «súbdito» para o de «cidadão». Joaquim de Carvalho não aceita nunca a absurda irracionalidade de ir procurar as origens da ideologia republicana nem na crise de 1383-1385 nem no consulado pombalino, todo ele inspirado no «despotismo esclarecido». O seu raciocínio, sempre modelarmente lógico e claro, não remonta, para uma explicação histórica coerente e fundada, além de 1820. Quando muito, compreende que a expulsão dos exércitos franceses invasores pode constituir um ponto de partida, mas o patriotismo português sente que os nossos aliados ingleses se convertem, também por seu lado, em dominadores prepotentes.   

A revolução de 1820 fora alimentada por juristas. Tanto a ideia de soberania nacional como a submissão de todos os cidadãos à lei procedem do repúdio perante o poder tirânico. As forças vivas tradicionalmente instaladas no poder não se adaptam facilmente à dinâmica da renovação. Não        se assiste ao absurdo espetáculo de ver um alto prelado como o bispo de Elvas afirmar que a escravatura não ofende o Direito natural e a Humanidade?. Para Joaquim de Carvalho, «a construção política de 1822 foi estruturalmente republicana», tendo apenas conservado, da Monarquia, «a coroa» como símbolo. A Carta Constitucional de 1826, restabelecida em 1834, «não consignando o novo dogma» era um regresso. Em 1837, Passos Manuel procura «segurar a monarquia constitucional» cercando o trono de instituições republicanas.

«Em face do liberalismo imobilizado da Carta, a emigração das consciências liberais para o campo das reivindicações republicanas — escreve Joaquim de Carvalho 32 - era um ato lógico. A negação da liberdade de cultos, concorrendo com as causas apontadas, estimulou passionalmente esta emigração, sobretudo durante a segunda metade do século». Uma conceção temporalista da Igreja Católica, como organização estabelecida com o reconhecimento do catolicismo como religião do Estado, sendo tão prejudicial para o Estado como para a Igreja, acaba por ser um elemento motor da degradação do poder monárquico. E uma tal degradação equivale à radicalização, nas consciências cívicas, do ideal republicano. «O republicanismo português — sustenta o Mestre de Coimbra - procede, portanto, da fonte viva do liberalismo».

«A revolução republicana nos espíritos», como se exprime Joaquim de Carvalho, dataria da revolução de 1848: maneira hábil de considerar utópica a opinião de Teófilo Braga sobre a hipótese de os chefes setembristas haverem «ludibriado a resistência da Nação à rainha». Mas que é, afinal, «a revolução republicana nos espíritos» para o republicano histórico Joaquim de Carvalho? A predicação romântica e um tudo-nada utópica de Henriques Nogueira poderia documentar aspetos ideais desse «espiritual republicanismo»: «Regime racional, humanitário, regulando os destinos humanos pela força do direito, da justiça e da sabedoria, a República era o verbo novo que traria a cada povo a libertação das opressões seculares e a paz entre todos os povos. Uma república descentralizada porque voltada para uma conceção municipalista que, nos seus acentos vagamente socializantes de federalismo, assumia no idealismo do apóstolo laico, algo de religioso que recorda a parenética política de Mazzini.

Mas o credo entusiasmantemente republicano e federal-socialista de Henriques Nogueira vai encontrar, em Antero de Quental, o fermento transformador de uma intensa e profunda «inquietude revolucionária». São meia dúzia de belas páginas em que o aristocrata tornado proletário, poeta convertido em apóstolo, é mais uma vez estudado, com solidariedade e entusiasmo, pelo autor da Evolução espiritual de Antero. Para este, o socialismo não é apenas, como o era para Oliveira Martins, uma solução nacional, mas um verdadeiro programa ideal, em que entravam valores espirituais adstritos à própria natureza do homem. Sabemos que Oliveira Martins, cujo pensamento, segundo o Mestre de Coimbra, «distava do marxismo e do coletivismo», conheceu a edição francesa do Capital de Karl Marx.

Se o socialismo não secundou, entre nós, a predicação de um ideal republicano, este foi pouco a pouco radicando nos espíritos uma racionalidade que ultrapassava o romantismo dos seus arroubos oratórios dos anos 40. O Programa do Partido Republicano Unitário representa, em 1880, segundo Joaquim de Carvalho, o termo de um «processo de elaboração da ideologia republicana»  que iria em breve ter, nas celebrações nacionais do centenário de Camões nesse mesmo ano, a ocasião fraterna e entusiasmante de uma reconciliação republicana. É um ponto de chegada que se converte politicamente num ponto de partida, que teria o desfecho histórico da sua evolução trinta anos depois, no dia 5 de Outubro de 1910.

4. No seu breve artigo intitulado «Liberalismo e Democracia ou glosa de um juízo de Herculano», Joaquim de Carvalho analisa, com lucidez e clarividência exemplares, os conceitos de Democracia e de Liberalismo, sustentando que um e o outro, sendo diversos, respondem a dois diversos quesitos: «donde procede o poder de mandar? Quais são os limites do poder de mandar?». Pensando o democrata que o poder reside «originariamente» no povo, a democracia representa, em última análise, o regime político em que os legítimos mandatários do povo detêm esse poder. Mas até onde deve mandar quem assume o poder? Se esses limites se identificam com os direitos do cidadão — de todos os cidadãos —, só pelo liberalismo, através de uma conceção liberal do poder, no respeito dos seus limites, é possível exercê-lo respeitando os direitos individuais, os direitos humanos, como hoje se diz. Joaquim de Carvalho apercebe-se, no final do seu artigo, de que o «laissez faire, laissez passer» pode, como atitude neutral do Estado, significar «a liberdade de morrer de fome», expressão que o Mestre de Coimbra atribui a Oliveira Martins. Mas, como bom filósofo, dá resposta adequada à expressão de um tal receio: «Se assim é, que se não tome a parte pelo todo, se não confunda o revestimento com a essência, e se não façam calar aquelas vozes que querem que a economia da prosperidade do século XIX se não volva no nosso século em economia de miséria». Os leitores superficiais podem ter interpretado estas palavras como hamléticas, mas a verdade é que Joaquim de Carvalho quis apenas, com elas, exprimir o seu desejo de que a democracia exercendo liberalmente o seu poder legitimamente recebido do povo, soubesse velar tão zelantemente pelo bem comum que não fosse possível a neutralidade de se permitir o esmagamento do mais fraco pelo mais forte.


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