3. Sobre a ideia de estado total

Os signatários da representação acentuaram, quase exclusivamente, os efeitos da terrível peçonha no magistério, a qual entorpece e dificulta a produção científica; mas a meu ver os efeitos são mais extensos, porque ela contamina com o seu bafio maligno o estudante e a Nação.

Escolar, estudante e estudioso são três palavras diversas, cuja diversidade não impede que toda a gente lhes reconheça o parentesco de membros de uma única família. Ser escolar é adquirir o direito de frequentar as aulas; ser estudante é, pelo menos, cumprir suficientemente os deveres da escolaridade, mas o ideal é que os escolares e os estudantes sejam estudiosos; o ser estudante na juventude não tem a significação farisaica do jovem limitar as suas vigílias, as suas curiosidades e a sua formação interior — a qual, claro, não é o mesmo que formatura —, aos estudos oficiais da Universidade.

Todo o jovem que transita durante cinco anos por uma Faculdade e viveu à margem dos problemas eternos, dos anelos do seu tempo e não ouviu a tenuíssima voz das gerações, que nos estão dizendo ser a ciência difícil e um esforço infatigável e sem descanso, frustrou a sua vida para sempre.

Pode ser um técnico útil, mas é uma alma perdida e a arrepiante verdade é que a organização vigente é uma máquina infernal de perda de almas. Costuma dizer-se que a juventude é a idade heroica, mas é, pelo menos, a única idade da vida que tem o direito absoluto ao desperdício do tempo em holocausto às nobres paixões. A ciência oficial não é toda a ciência e menos ainda toda a cultura, e o grande pecado da organização em vigor é roubar o tempo e supor que propicia ao estudante o viático intelectual para toda a vida pós-escolar.

O curso que se frequenta é o núcleo inicial, o ponto de partida, e jamais o termo da jornada científica. A organização esqueceu esta norma elementar, e por isso o estudante, colhido pelas malhas estreitas da rede de estudos e deveres oficiais, está hoje colocado perante um horrível dilema: ou cumprir todos os deveres oficiais, sacrificando-lhes o seu estudo e a sua formação interior, ou voltar as costas aos estudos oficiais para se tornar estudante e estudioso daquelas coisas que a Universidade não pode ensinar e enchem a outra metade da nossa vida.

Os despojos da mortífera peçonha estão aí, bem visíveis: a crescente diminuição de vocações científicas, a quebra de continuidade no ensino dos grandes mestres finados, a carência apavorante de jornais e revistas de juventude escolar, e em sua substituição subprodutos reles de boémia pseudo espirituosa. Podemos nós, os que nos preocupamos com a saúde moral e política da nossa pátria ser indiferentes ao brado de alerta contra a mortífera peçonha? Este é o facto nu e cru, e é sobre o facto, em si, descarnado e sem tintas de retórica, que deve incidir a atenção pública. Quem há aí que não sofra com magoada indignação o justificado retraimento dos nossos editores e o crescente desinteresse por tudo — tudo — que afirme qualquer faceta do Espírito?

Dir-se-ia que vivemos submergidos por uma vaga de estupidificação coletiva, mas o nosso dever elementar, espere-nos ou não o sucesso, mesmo sem esperança de êxito é remar contra a vaga.

Além do brado de alerta, a representação dos universitários de Coimbra veio dizer-nos o que eles entendem ser a missão da Universidade nos nossos tempos. O brado ouvi-o e aplaudo-o; a opinião não me convenceu. E não me convenceu, porque a Universidade portuguesa tem acima de tudo de formar bons profissionais — bons médicos, bons juízes e advogados, bons pedagogos e bons farmacêuticos, etc., e em grau incomparavelmente menor, e com estilo diverso, bons investigadores, bons biólogos, bons físicos, bons helenistas, etc. Os que se destinam à ciência pura têm que ser cultivados como as orquídeas raras, e vamos porventura cultivar na mesma estufa a orquídea e o castanheiro?


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Vamos corrigir esse problema