Cartas a João de Barros

Vim aqui passar estes dias e aproveito as primeiras horas das férias que me concedi, distraindo-me do que há muito me ocupa para reler e, agradecer a sua «semblanza» de Eugénio de Castro. Logo que a recebi — há talvez um mês — li-a imediatamente, mas não tive disposição para lhe escrever; tão absorvido ando no I.° vol. da História da Filosofia em Portugal, dedicado às origens da nossa mentalidade e da nossa cultura, que me senti incapaz de lhe escrever a carta que o seu livrinho merece. Desculpe, pois, a demora. Literariamente, é primoroso, mas o que mais me cativou foi a clareza e exatidão dos juízos. Lidei muito com Eugénio de Castro, desde 1917 em cujo verão fiz na sua companhia, durante um mês, uma larga viagem por Espanha (Andaluzia). Dessa viagem saiu a Mantilha de Medronhos , e porque sei — e num caso assisti — como deflagrava no seu espírito o «furor» poético, permito-me a liberdade de fazer algumas observações.

1.0) É exato e é justo o que diz da inalterável admiração e respeito de Eugénio por João de Deus. Nunca escondeu, nem dissimulou a gratidão pelo carinho com que João de Deus o patrocinou no começo, nem tão-pouco claudicou na constância da admiração pelo poeta. Como ele, também desenhava figurinhas e cabeças de recorte parecido.

2.°) Também é exata a admiração pelo Castilho da Lírica de Anacreonte — pelo prosador do prefácio e também pelo versificador dos pequenos poemas. Tinha sempre este livro à sua beira e não raro lia a amigos, após o almoço ou jantar, na boa disposição das bebidas de qualidade, um ou outro poema. Comigo isso aconteceu duas vezes.

3.°) Ponho algumas dúvidas acerca da extensão da sua atitude de protesto (p. 12). Esteticamente, teve-a sem dúvida, na intenção, na forma, e na ação, e disso tinha orgulho; eticamente, porém, o seu simbolismo, enquanto exprimia uma conceção pessimista da vida, foi postiço, não correspondendo às suas ideias nem ao seu fundo temperamental, que de 1916 em diante (ano em que comecei a conhecê-lo e a travá-lo) sempre me pareceu «horaciano», nos gostos e nas ambições. Neste ponto não deponho, verdadeiramente, e o meu Amigo tem mais autoridade que eu para apreciar e julgar esta quadra.

4.°) Exatíssimo o que diz acerca do «seu amor da Beleza redentora e consoladora». É lapidar e bela esta maneira de dizer e, repito, exata . Eugénio de Castro foi um esteta; não foi uma alma sensível. Dos vários eflúvios das coisas e das relações das coisas que o verdadeiro Poeta surpreende com a sensação de «criar», Eugénio de Castro só notou, ou antes apercebeu, as que podiam traduzir-se plasticamente. A sua constituição poética era de tipo sensorial — imagens tácteis, visuais, (não auditivas, nunca ou quase nunca), e, em grau menor, as de movimento. É por isto que o seu espírito e a sua arte foram levados, pela imposição da sua natureza psicológica, a traduzir poeticamente a sensibilidade dos estatuários e a dos pintores de linhas harmoniosas e de tons claros, sem grandes contrastes. Sabia que Eugénio de Castro era um admirável crítico de pintura? Foi ele quem me deu as primeiras luzes no museu do Prado, e sempre que havia exposições em Coimbra desejava ouvi-lo, na certeza de que sabia, como ninguém, indicar o belo e o feio, e mostrar um pormenor admirável num conjunto detestável.

5.°) Esta constituição poderia conduzir ao classicismo; mas foi só ela que o conduziu à 2.a fase?

Não sei responder, e não obstante verificou-se — ou antes consolidou-se — nos anos em que lidei com ele e, às vezes, se descobria em fugazes confidências. Ao meu espírito acodem varias explicações, todas plausíveis, mas sinto inclinação irresistível para admitir a influência de H. de Régnier, que ele admirava e estimava. O «romanismo» deste poeta impressionou-o, sem dúvida: foi a faísca que fez incendiar na sua sensibilidade o fundo temperamental, os gostos de moderação e de estabilidade, o culto da forma clara, lapidar, serena, e os temas agradáveis pela voluptuosidade dos contornos, ou pelos contrastes comedidos. Por isto, não penso como o meu Amigo que Eugénio tenha sido um lírico. Sei como «nasceram» algumas poesias, e o conhecimento das raízes e processos da sua inspiração levam-me ao convencimento de que a «alma» foi alheia, e só a inteligência, a visualidade, e, acima de tudo, o sentido da Beleza harmoniosa e clara captavam a inspiração, (colhida às vezes em pequenas coisas e noutras em contrastes impressionantes, como o da situação do cemitério de Buarcos, que é independente, totalmente, do poemeto de Valery).

Na obra de Eugénio de Castro há coisas fáceis e coisas que sempre ficarão veladas; nestas destaco o que houve de convencional e que, por genial esforço de vontade e de perseverança, se tornou habitual e quase natural. Como a sua caligrafia, houve também no seu ser a inserção de uma personalidade criada voluntariamente sobre o indivíduo que sua mãe gerara, e isto teve consequências na sua obra de Poeta e no seu comportamento social. Até onde chegou, porém, o «bovarismo»? Só quem o conheceu na juventude e na plena maturidade poderá dizer coisas sérias, mas houve alguém que o conhecesse? Duvido porque Eugénio soube dissimular, dominar-se e não se comprometer. A esfera do público e do particular nunca se tocaram; por isso a sua obra juntará à admiração a curiosidade problemática e que, talvez, se não esclarecerá nunca. Admirei-o muito, como poeta e estimei-o como homem, porque era primorosamente educado e tolerante. Incapaz de um sacrifício, por ligeiro que fosse, perdoava-se-lhe o egotismo e o egoísmo de comodista pelo muito que valia e pela certeza de que não faria mal. Foi na vida e nas relações a encarnação de Pilatos num corpo amante dos prazeres sensíveis.        

Agora reparo que levei a conversa muito longe e que devia voltar ao princípio para lhe agradecer com mais concisão e densidade. Desculpe. Mande sempre o seu muito grato amigo e admirador,   

Joaquim de Carvalho

Figueira, 5/I/948

Meu muito prezado Amigo:      

Que o novo ano lhe seja agradável! Vim aqui passar uns dias, trazendo comigo alguns livros para companhia. Afinal, trabalhei mais do que li, pois dei a demão final a umas páginas sobre o Fédon, de Platão, que aí lhe irão ter por estes dias; mas também li, e à cabeça das leituras está a sua coletânea sobre o Povo.., na lit.         

Há neste seu livro duas coisas: o prefácio, e a antologia. Só aquele me ocupou agora. Li-o com gosto, pela prosa, pela vibração emotiva, pela sinceridade. Orientou-o a ideia, segundo me quis parecer, de acentuar a maneira como os escritores acolheram o Povo. Atitude recetiva e de sensibilidade, e a esta luz o seu prefácio é excelente, tocando em todos os que realmente são cumeeiras. Mas isto é uma coisa e outra o conceito de Povo e o que nele, aos seus caracteres, mais importa. A esta outra luz, e perante a sensibilidade moderna, a que nos é cara, o Povo só começa realmente a ser húmus e vigor, com os românticos, Garrett à frente, e depois com Teófilo. Claro que antes houve conceitos de Povo — mas eram outros conceitos. Quer isto dizer que o tema é complexo, e que a antologia variará consoante a noção de Povo que estiver subjacente à seleção. Isto obrigava a ver com minúcia a sua antologia, mas não tive tempo agora. Ficará para outra caturreira.


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