Espinosa e a Holanda

O ano de 1670 é data capital na história da apologética cristã e na da exegese bíblica; foi no curso dos seus dias que viram a luz da impressão, talvez com escasso intervalo de semanas, os Pensées de M. Pascal sur la religion et sur quelques autres sujets, e oTractatus theologico-politicus, continens dissertationes aliquot, quibus ostenditur libertatem philosophandi non tantum salva pietate et reipublicae pace posse concedi, sed eamdem nisi cum pace reipublicae ipsaque pietate tolli non posse, de Bento Espinosa.

Entre o solitário de Port-Royal e o judeu de Voorburgo, solitário também a seu modo, entre os Pensamentos, publicados postumamente, e o Tratado Teológico-Político, publicado anónima e dissimuladamente, há um abismo —, separa-os a diversidade da experiência vital, a formação religiosa, o método e estilo mental, o contraste da inquietude e da razão serena.

Pascal quer converter, isto é, provar pela razão e pelo sentimento, primeiro, «a miséria do homem sem Deus», depois, «a felicidade do homem com Deus»; Espinosa quer explicar, isto é, esclarecer o sentimento religioso, mostrando que ele «não carece dos vãos atavios da superstição». Aquele, legou-nos fragmentos, mais valiosos, por vezes, que tratados, concisos uns, eloquentes outros, e sempre profundos; este, escreveu um livro frio, onde as razões da razão, que não do coração, se encadeiam objetivamente, e o espírito de geometria não transige com o espírito de finura. Para um, o «Deus de Jesus Cristo» é o «Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e dos sábios»; para outro, o governo de Deus é «a ordem fixa e imutável da Natureza» (Trat. Th., cap. III) e Cristo, o «sumo filósofo».

A despeito da distância imensa que os separa, Pascal e Espinosa são filhos do mesmo século e obedecem ao idêntico anelo da religião «em espírito e em verdade»; aproxima-os o sentimento de que a religião é vida e não categoria ou demanda intelectual. Por isso, a mente de um e de outro cingiu o mesmo problema metafísico; ambos cogitaram a síntese da vida teorética com a vida religiosa, do conhecimento que explica com o conhecimento que salva, da evidência clara e distinta com a beatitude. Este problema, que os gregos do século incomparável, os nossos mestres sempre atuais e luminosos, deixaram na penumbra, emergira com impetuosidade perante a inteligência do século XVII, o século do Génio. Constituída a ciência mecânico-racional da Natureza, com Galileu, fundamentada, por Descartes, a nova teoria da ciência, radicalmente diversa da síntese aristotélica e da metódica vigentes na Idade Média, qual era o lugar do homem num universo regido por leis necessárias, qual o destino da consciência humana? Era possível nova conciliação entre o saber e o esperar, o ser e o valer, a razão e a crença? Não seria a fé inane, e a religião superstição?

Pascal e Espinosa, como ninguém mais, sofreram a inquietude do terrível problema, que a todos os demais deixa na sombra. As suas respostas foram diversas, como diversos eram os seus génios; porém, aparenta-os o mesmo ímpeto metafísico e a mesma finalidade ética, porque se Pascal pensou nos estragos morais dos céticos e dos libertinos da sociedade francesa, Espinosa meditou a experiência dramática do seu abandono da Sinagoga e o espetáculo das lutas confessionais da Holanda.

Os Países Baixos foram no século XVII refúgio da liberdade de consciência e da tolerância religiosa. De uma e de outra, é Espinosa eloquente testemunho Compreende-se, porventura, o seu «caso» noutro país da Europa do tempo, a despeito dos vitupérios contra o pensador Maledictus e dos aleives e perseguições que, caute, a sua divisa, o conduziram a refluir sobre si próprio e a procurar na solidão asilo e fortaleza?

Creio que não; e este foi o sentir do filósofo, quando empreendeu a redação do Tratado Teológico-Político, em cujo prefácio exalta a «rara fortuna» que coube aos holandeses, de viverem «numa República, onde cada qual usufrui inteira liberdade de julgar e honrar Deus segundo a sua compleição, e onde todos consideram a liberdade o mais ditoso dos bens». Por isso, acreditava «não ter empreendido tarefa de ingratidão ou desenfado, ao mostrar não só que a liberdade pode ser concedida sem perigo para a piedade e para a paz do Estado, mas também que ela não poderia ser suprimida sem se destruir a paz do Estado e a piedade».

Há quem pense que estas palavras dissimulam a ironia. Não as julgo assim; penso antes que Espinosa tinha presente o ensinamento constante, de todas as épocas e lugares, acerca da fragilidade da política liberal. Ele sabia que a Liberdade se conquista paulatinamente, que a vigência dela é débil e precária, e, uma vez perdida, a sua reconquista é lenta e dificultosa. Se este é o lastimoso destino da Liberdade, se no isolamento de Rijnsburgo e de Voorburgo ouvia o regougar liberticida das inventivas políticas dos inimigos de Jan de Witt, Grande Pensionário da Holanda, e das prédicas religiosas de Calvinistas, reclamando a aliança do pretor e do pastor, de Moisés e de Aarão, na empresa de unificação ortodoxa e de extermínio dos não-conformistas, há acaso ironia em lembrar aos holandeses a dita que gozavam, os perigos que a liberdade de todos e de cada um poderia correr, e em os fortalecer, pela razão equânime, na posse e defesa de tão precioso bem?

O Tratado Teológico-Político nasceu do pensamento elevado de inculcar a paz civil entre os filhos desavindos de Cristo e os fiéis à Tora, e ao mesmo tempo descobrir a religião em espírito e verdade fora e acima dos ritos e dogmas religiosos. O seu ideal é a fundação da cidade dos espíritos. Por isso, é simultaneamente obra política e religiosa, e se pela última feição aspira à universalidade e à intemporalidade, por aquela não se desprende totalmente da inflexão sociológica e das inquietudes morais que agitavam a sociedade holandesa.

A Holanda é o país da energia, onde o homem não é filho da terra, mas criador dela. Na luta incessante e intrépida com o mar, na defesa heroica da autonomia política e das franquias cidadãs, no amanho cuidadoso do solo e na faina rude dos portos, na dura escola da natureza agreste e da concorrência comercial, no ideal do bem-estar conquistado à custa de sacrifícios e esforços, o homem dos Países Baixos aprendeu a prezar, corno nenhum outro europeu, a independência material e a seriedade moral. Ao contrário de nós outros, ocidentais, indolentes beneficiários de regiões pródigas e suaves e submissos, de século em século, à vil tradição imperial romana, na qual o favor substitui o direito, a licença a liberdade, e a paz civil se logra quase sempre à custa de humilhações, o holandês não tem a mentalidade do herdeiro; cada um tem de ser o artífice da sua vida e do seu destino. Em almas tão avigoradas pela energia e pela luta, pelo orgulho da independência e pelo amor da vida doméstica e do senhorio da casa confortável, gezellig, é de surpreender que a religião se volvesse também em assunto pessoal e o reino dos céus, como o gozo das riquezas da terra, se lograsse pelo esforço de cada um? Por isso, a Holanda do século XVII foi, como nenhuma outra região, o solo fértil da inquietude religiosa e das dissidências e controvérsias teológicas.

Quando o exército de Luís XIV, ostentosa majestade que na nossa Europa repetiu «os ultrajes das dinastias sassânidas ou mongólicas» (Renan), invadiu os Países Baixos, em 1672, entre a oficialidade ia o coronel suíço Jean-Baptiste Stoupe (1624-1692).


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