Espinosa e a Holanda

Stoupe era de Chiavena, então do cantão suíço dos Grisões. O seu carácter tem sido variamente apreciado; antigo pastor da Igreja valona de Londres, não falta quem o julgue «a man of intrigue... more a frantic deist, than either protestant or christian » (bispo Burnet) e mesmo, « libertin inavoué » (G. Cohen).

Fosse qual fosse o seu sentir profundo, foi como Calvinista que Stoupe descreveu as correntes religiosas da Holanda no livrinho La Religion des Hollandois representée en plusieurs lettres écrites par un officier de l'Armée du Roy à un Pasteur et Professeur en Theologie de Berna (Paris, 1673).

A invasão do exército de Condé provocara a indignação dos reformados, e conta Stoupe haver recebido carta de um teólogo de Berna, na qual censurava os correligionários que serviam Luís XIV na guerra contra os holandeses. Militando no exército invasor, contribuíam para «destruir esta santa República, que sempre fora asilo aos da Religião, e para a qual todos os Protestantes têm tão estreitas obrigações». Stoupe não se deu por ofendido. Para justificar o seu alistamento e o dos correligionários assegurava ao seu censor que não fora o mandamento religioso o móbil da oposição holandesa contra Filipe II, mas o amor da independência e da liberdade do país, e por «puro interesse do Estado» haviam estabelecido como religião oficial a Igreja reformada. Todas as religiões, dizia-lhe, têm neste país «inteira liberdade de celebrar os seus mistérios e servir Deus como lhes agrada», e a tal ponto que a unidade religiosa é aparente, e se podia perguntar onde existia a religião dos holandeses. Como era ilusória a unidade ortodoxa, que o teólogo de Berna imaginava!

Toda a gente, letrados, burgueses e mesteirais, no íntimo sempre burgueses, discutia questões teológicas; cada qual tinha opinião acerca da predestinação e da graça, ou interpretava a seu modo as Escrituras e a Revelação. Escolher religião era um problema, e que problema!

«Vous sçaurez donc qu'outre les Reformez, il y a des Catholiques romains, des Lutheriens, des Brounistes, des Independans, des Arminiens, des Anabaptistes, des Sociniens, des Ariens, des Enthousiastes, des Quacquiers ou des Trembleurs, des Borrelistes, des Armeniens, des Moscovites, des Libertins, et d'autres enfin que nous pouvons appeler des chercheurs, parque qu'ils cherchent une Religion et qu'ils n'en professent aucune de celles qui sont établies. Je ne voos parle point des Juifs, des Turcs et,des Persans. Je ne parleray pas non plus des Arminiens et des Moscovites, qui professent les uns et les autres la Religion des Grecs. »

Todas as religiões inspiradas no ensino de Jesus tinham o seu altar, e os próprios libertinos o seu non credo.

Mediante este relato corroborado e desenvolvido por investigações posteriores, podemos orientar-nos na babilónia de crenças, cismas e heresias. Havia Protestantes e Católicos, estes em minoria. Os Protestantes repartiam-se pela Igreja reformada, religião oficial nas províncias de Holanda e Zelanda, Igreja valona, de língua francesa, e como aquela Calvinista, e Luteranos. Calvinistas e Luteranos constituíam o que, por comodidade de expressão, podemos chamar as Igrejas bases; porém cada uma comportava Igrejas ou correntes cismáticas. Dos Calvinistas saíram os Remonstrantes, grupo tolerante, ao qual pertencera Hugo Grócio e com Jan de Witt tinha o favor do poder, os quais por seu turno conheciam a cisão dos Colegiantes, gente piedosa, de culto doméstico, a quem as discussões aborreciam e bienalmente se congregavam em retiros de piedade na encantadora aldeia de Rijnsburgo, a dois passos de Leide. Foi entre os Colegiantes que Espinosa encontrou amparo, ao abandonar a Sinagoga.

Os Luteranos subdividiam-se em «liberais» e «restabelecidos» e os Católicos, por seu turno, em molinistas e jansenistas, estes à beira do cisma, que em 1701 firmaram, ao separarem de Roma o bispado de Utrecht.

Para além destas Igrejas havia ainda outras, notadamente dos Menonitas, também chamados Anabaptistas, por haverem repudiado o profeta S. João, e borboritae ou stercorarii, por acolherem pessoas impuras, os quais tiveram também o seu cisma com os mamilares, «parte qu'un jeune homme avoit pris la liberté de manier la gorge d'une filie qui luy estoit accordée et qu'il devoit épouser dans peu de jours. Il y en a eu qui soutenoient qu´il falloit l'excommunier, et les autres ayant condamné cette rigueur, il arriva de là un schisme entre eux. Ceux qui ne voulurent pas qu'on excommuniast le jeune homme furent appelez Mamillarii ».

Independentes das Igrejas, formando em todo o caso uma espécie de seita, viviam os libertinos ou incrédulos. Stoupe não esqueceu de apontar o non credo deles ao teólogo de Berna, e para que o elenco das religiões dos holandeses fosse completo referia-lhe ainda a existência «d’un homme illustre et sçavant qui à ce que l'on m'a asseuré, a un grand nombre de sectateurs, qui sont entierement attachez à ses sentiments. C'est un homme qui est né Juif, qui s'appele Spinoza, qui n'a point abjuré la Religion chrétienne; aussi il est trés-méchant Juif et n'est pas meilleur Chrestien».

Stoupe refere ao seu correspondente as opiniões que Espinosa ousara propor no Tratado Teológico-Político. Vê-las-emos adiante; baste-nos por agora o panorama das correntes religiosas, que se divisa do seu livro.

Além da variedade dos credos, havia diversidade de critérios interpretativos da Bíblia. Voet, opositor intransigente do cartesianismo, ensinava em Utrecht a interpretação ortodoxa e formalista; pelo contrário Jan Coccejus, em Leide, uma interpretação alegórica e aventurosa. Ambos tinham discípulos, isto é, continuadores mais ou menos místicos ou racionalistas Voet, o filho, o neto, Regner de Mansvelt e Jacob van Lodensteyn, pastor patriota; Coccejus, F. Burmann, J. de Labadie, Louis Meyer, o amigo de Espinosa, autor da Philosophia Sacrae Scripturae interpres, exercitatio paradoxa (1663), Lambert van Velthuysen, autor do De usu rationis in interpretatione Sacrae Scripturae (1668) e Louis de Wolzogue, que neste mesmo ano publicara o De S. Scripturarum interpretatione.

De modo geral, a diversidade das interpretações procedia do respeito ou do abandono, maiores ou menores, da tradição; da conceção alegórica ou realista das Escrituras; da colaboração solicitada à filosofia, principalmente cartesiana, e do método e âmbito conferidos à razão crítica.

Às divergências confessionais, teológicas e escriturárias, como seu corolário, veio acrescentar-se terceiro desacordo, de substância política. Devia o Estado ser espectador, mais ou menos neutral, do conflito de credos e opiniões, ou, pelo contrário, a dava do pretor socorrer o múnus do pastor?

A Igreja calvinista aspirava à unidade confessional e ao mando político. Alguns amantes da tolerância vaticinavam-lhe o triunfo, que parecia avizinhar-se e alcançou em 1672, após o assassinato de Jan de Witt e a substituição da República pelo Stathouder ou lugar-tenente da realeza; receosos, temiam que sobre a terra livre das Províncias Unidas tombasse a opacidade compacta, rancorosa e implacável, do génio obstinado de Calvino.

A índole independente dos indivíduos, assim como os costumes e o liberalismo de Jan de Witt não se ofendiam com a variedade de cultos; ofendiam-se, sim, com a ausência de credo, a libertinagem intelectual e o Socinianismo, que a muitos se afigurava racionalismo ateísta. Não eram a variedade de credos e o ardor das controvérsias teológicas —Geen Ketter sonder Letter, cada cabeça, cada sentença — prova exuberante do florescimento da religiosidade?


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