Espinosa e a Holanda

O domínio político de uma Igreja ocasionaria, naturalmente, a legalidade da respetiva ortodoxia, ou, por outras palavras, o funeral da liberdade dos cultos. Por isso, do desacordo dos credos, que aspiravam à vida livre, e a possível emergência de uma ortodoxia político--religiosa, surgiu o problema crepitante das relações do temporal com o            espiritual. Os amigos de Jan de Witt, entre os quais Espinosa, sentiam que o perigo soprava do lado do partido orangista, e para o afastar recorreram às únicas armas que os amantes do poder civil sem intromissões castrenses ou clericais podem decorosamente empunhar: o convencimento e a força da razão sensata e equânime.

Pedro e João de la Court, escrevem, com a colaboração de Witt, o Intereest van Holland; Van Velthuysen, o Munus pastorale; Louis Meyer, o Philosophiae Sacrae Scripturae interpres, que já referimos como obra teológica, Lucius Antistius Constans, pseudónimo sob o qual já se quis ler o nome de Espinosa, o De jure ecclesiasticorum —, todos, afinal, com palavras diversas e argumentos peculiares, concordes na supremacia do poder civil.

Se nos detivemos um tanto a ouvir as prédicas de diversos púlpitos, as controvérsias teológicas de diferentes cátedras e as desavenças da política religiosa da Holanda durante os anos de 1660-1670, foi para colher a prova de que o Tratado Teológico-Político é, em parte, fruto do meio onde Espinosa viveu.

Espinosa é o modelo acabado do pensamento solitário; mas pensamento solitário não é solidão intelectual, antes reflexão autónoma, sem apoio de autoridades extrínsecas, do que separa e une, exalta e deprime, inquieta e arrebata a consciência e a razão humanas. A sua mente de filósofo e a sua consciência de religioso, entendida à sua maneira, levaram-no a investigar se a cogitatio, em face de tantos não-conformistas, podia lançar a ponte de conciliação, isto é, estabelecer o acordo das inteligências para além das controvérsias teológicas, a harmonia dos corações puros sobre a sublimidade do princípio religioso, e       a excelência da liberdade de pensamento sem ultraje da paz civil e mando do Estado.

A estes objetos, se não quisermos enfeixá-los num só, a prova da compatibilidade do pensamento livre com a piedade e a paz pública, responde o Tratado Teológico-Político, e não é de si claro que eles só podiam brotar em terreno lavrado pelas controvérsias teológicas e pelas dissensões políticas, onde os habitantes fossem nobremente zelosos das suas crenças e convicções?

Por isso, se me afigura vã a conjetura, por vezes manifestada, da emigração israelita para Amesterdão, a Jerusalém do século XVII, haver arrebatado um dos maiores génios metafísicos de que pode orgulhar-se a nossa espécie à pátria de origem da sua família. Espinosa foi criado por pai e madrasta nascidos em Portugal e educado entre pessoas, muitas das quais recordariam com saudade o antigo viver; no entanto, não se descobrem vestígios de lusitanidade, sequer ao menos da balda sentimentalista, na desenvolução do seu pensamento. Se houvesse nascido e vivido em Portugal, teria florescido o seu génio como floresceu na Holanda?

As condições da criação intelectual são imprevisíveis e caprichosas; furtar-se-ão sempre ao vaticínio seguro, mas não hesito em pensar que Espinosa não granjearia então na terra portuguesa a admiração que a Humanidade lhe tributa. O pensamento criador vive do ar puro da altitude, e no Portugal do seu tempo, assim a gente de nação como a de sangue limpo pelos quatro costados, todos respiravam o bafio da clausura. Na calmaria soturna, morriam à nascença os impulsos intelectuais que não tivessem o selo do conformismo.

Os marranos viviam dispersos pelo reino, e na obscura lida em que se consumiam, na hipocrisia em que vegetavam, nos precates com que perseveravam na recôndita crença, eram acaso possíveis a predicação de um Menassés ben Israel e as dissidências de Uriel da Costa e de Juan de Prado? Consentia a polícia das ideias que nas escolas, ou em círculos livres de autodidatas, se lessem, discutissem, meditassem os escritos de Giordano Bruno, de Galileu, de Descartes, de Hobbes? Sequer ao menos, podiam estes livros atravessar a fronteira?

A adolescência de Espinosa não se compreende sem as solicitações intelectuais de uma comunidade israelita livre no exercício do culto e trabalhada por controvérsias de hermenêutica; a sua maturidade, sem o estímulo da modernidade científica e filosófica —, e uma e outra não podiam desenvolver-se e manifestar-se em Portugal como se desenvolveram e manifestaram na Holanda.        

Aos treze anos, segundo afirmação recente, Espinosa vendia amêndoas pelas ruas de Amesterdão. Há talvez romance nesta afirmação; mas temos por seguro que na Vidigueira, terra natal do pai, segundo a melhor crítica, ele teria sido sempre um pobre bufarinheiro, a quem o respeito pela inteligência, o mecenato discreto ou vaidoso, as amizades influentes, jamais libertariam da faina humilde de percorrer feiras e montes. 

Concluamos, pois. O Tratado Teológico-Político é, sob certo aspeto, criação do pensamento solitário, mas as raízes da sua inspiração mergulham na terra livre da Holanda.            


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