Espinosa e a publicação do Tratado Teológico-Político

Justificando a liberdade de interpretação crítica da Bíblia, não atentava Espinosa contra o carácter sagrado da Escritura, que muitos acreditavam haver sido escrita Spirito Sancto dictante? Se ele discriminava na Bíblia o valor histórico do valor moral, o local do universal, não destruía a unidade do que, crentes e teólogos, consideravam um bloco? Se, atrevimento supremo, sustentava que a fé que salva não reside no culto e na ideia de Deus, a qual cada um pode livremente conceber com atributos negativos ou positivos, e celebrar a seu gosto, mas na obediência aos mandamentos divinos, não maculava a essência das Igrejas? Insistindo na acidentalidade do culto e das cerimónias religiosas, não minava a autoridade do sacerdócio?

O Tratado tocava em coisas para alguns vantajosas, para muitos sacrossantas, para todos respeitáveis. O seu autor escrevera-o com mão delicada e ânimo puro, mas entregara-se a pensamentos que a credulidade dos religionários e o saber dos teólogos, a fé dos humildes e o orgulho dos zelotes, consideravam atentado sacrílego. Se assim não fosse, seria incrível maravilha; por isso se ergueram contra as pretensas pravidades do nefando livro, crentes, teólogos e magistrados, e se sucederam rápida e energicamente as proibições e refutações.

O ardil surtira efeito; foi na Alemanha onde primeiro surgiu a oposição, e poucas semanas depois, mais intensa e extensamente, na Holanda.

Na Alemanha, em 8 de Maio de 1670, Jacob Thomasius, de Leipzig, mestre de Leibniz, que em 31 de Janeiro de 1672 lhe revela o nome do autor do Tratado, o qual havia sabido por carta de Graevius (Auctor ejus dicitur esse Judaeus, nomine Spinosa) de 12 de Abril de 1671, abriu o caminho das refutações; depois, nas Universidades de Tubingue, Iena, Marburgo, Altdorf, Frankfurt do Oder, Kiel, Herborn, Rostok e Greifswald elas tornaram-se habituais, deturpando-se e confundindo-se quase sempre as ideias de Espinosa com as de Jacob Boehme, Hobbes, Cherbury, quando não cabalistas, deístas e ateus.

Na Holanda, as perseguições somaram-se às refutações.

O primeiro rebate soou em 30 de Junho de 1670; provinha do conselho da Igreja de Amesterdão. A oposição, porém, degenerou em sanha depois de 1672, quando a revolução levou ao poder o partido de Orange e deflagrou contra os republicanos, partidários e amigos de Witt, toda a casta de perseguições. A partir de então o poder secular alia-se ao poder eclesiástico; os acordos dos vários sínodos de diversas cidades das Províncias e os éditos dos tribunais são numerosos, contando-se até à morte de Espinosa, em 21 de Fevereiro de 1677, trinta e quatro resoluções, diversas na forma e concordantes na substância.

Estas resoluções tinham, sobretudo, em vista «arrêter et extirper cette rongeante gangrène», para empregar as expressões do Sínodo das Igrejas valonas, de Abril de 1676, que escorria do Tratado Teológico--Político, do Leviathan, de Hobbes, da Bibliotheca Fratrum Polonorum e do Philosophia S. Scripturae interpres, de Louis Meyer. Mas, cingindo-nos apenas ao Tratado, seria possível separar a doutrina do seu autor, a infeção do foco infecioso?

A atribuição pública da autoria do Tratado a Espinosa, surgiu, pela primeira vez, em 1672, em dois panfletos contra Jan de Witt. Neles se denunciava Espinosa e ao mesmo tempo se acusava o Grande Pensionário de haver consentido na impressão do Tratado. A acusação era política; os tribunais não a ouviram, porque se ela andava de boca em boca — Auctor ejus dicitur esse Judaeus, nomine Spinosa, informava Graevius, de Utrecht, em 12 de Abril de 1671, a Leibniz —, também corria o boato de que Espinosa repudiava a atribuição, como refere Brun, em 1675 — l'on m'assure qu'il ne le veut pas reconnoître pour son fruit. Por isso, só o Tratado foi perseguido; mas quando começou a espalhar-se o rumor de Espinosa preparar para o prelo outro livro, o seu nome é logo denunciado pelo conselho da Igreja da Haia, em 21 de Junho de 1675.

A nova pestilência era a Ética.

O rumor explica a publicação póstuma do genial livro, e ao mesmo tempo é claro testemunho da curiosidade geral pelas meditações do solitário, cuja vida recatada despertava a avidez da bisbilhotice.

A solidão impenetrável de Espinosa é uma causa, e não secundária, da fama que conquistou em vida. Com efeito, onde estaria o contemporâneo, mesmo seu inimigo, que não sentisse pasmo pelo homem que respondia aos reveses e perseguições com mansidão de maneiras e serenidade de juízos, continuando imperturbavelmente a marcha das suas reflexões?

Vemos indivíduos de várias classes sociais, um comerciante de Amesterdão, um magistrado de Dordrecht, por exemplo, dirigirem-se a Espinosa ou a amigos seus com o desejo de conhecerem as ideias do filósofo, que se diziam novas e surpreendentes. «Preocupavam-se com as investigações de Espinosa sobre o infinito, dizia em 1896 T. de Wyzewa numa comparação sugestiva, como eu imagino que os industriais americanos se devem preocupar com as últimas invenções de Edison. Este pobre judeu teria alcançado finalmente a verdade? Saber-se-ia, enfim, o que devia acreditar-se acerca de Deus, da distinção das substâncias, da alma e da sua imortalidade?».

Como é compreensível o brado de alerta da comunidade reformada da Haia! Ele foi ouvido, mas não teve seguimento. Faltava a prova material, e as Igrejas valonas, que no sínodo de Campen, de Setembro de 1675, por instrução da Igreja de Utrecht, resolvem conferir com os deputados dos sínodos flamengos da Holanda do Norte e do Sul acerca dos meios que impeçam «le nommé Spinosa de continuer à semer son impiété et son athéisme dans ces provinces», são as mesmas Igrejas que no sínodo da Haia de 9 de Setembro de 1676 cometem a todas as Igrejas da «Companhia » o encargo de se informarem « soigneusement et de chercher en toute exactitude les lumières et les preuves nécessaires pour découvrir, s'il est l'autheur du livre impie, intitulé tractatus theologico-politicus, et s'il débite les matières, qui y sont contenues, et qui depuis quelque temps a veu le jour ».

Espinosa conseguira resguardar-se do vendaval; as imprecações dos Padres e as sentenças dos magistrados recaíram apenas sobre o livro, cuja circulação foi proibida nas Províncias Unidas da Holanda em 1673.

Livro proibido, livro apetecido, e uma vez mais o ardil ludibriou a decisão dos Estados.

Com o título de Tractatus Theologico-Politicus a obra só podia circular clandestinamente. Era perigoso; por isso alguém, cujo nome se ignora, recorreu ao logro de alterar o título, conservando íntegro o texto, e lançou no mercado simultaneamente três livros, com os seguintes títulos:

1 — Danielis Heinsii P. P. operum historicorum Collectio prima. Editio secunda, priori editione multo emendatior. Leide, 1673, in-8.°

2 — Fr. Henriques de Villacorta, M. Doct. a cubiculo Philippi IV, Caroli II archiatri, Opera Chirurgica omnia. Sub auspiciis potent. Hispan. regis. Amesterdão, 1673, in-8.°

3 —Franc. de la Boe Silvii totius medicinae idea nova. Editio secunda. Amesterdão, 1673, in 8.°.

O texto dos três livros era idêntico ao do Tractatus, se é que, ao que parece, eles não eram constituídos pelas próprias folhas da falsa edição de Hamburgo, retirada forçadamente da venda; só os títulos variavam.

A sagacidade travessa do ardil! Dissimulava-se o que oficialmente se decretava como veneno sob o rótulo de medicina curativa, e invocava-se o Rei Católico, símbolo da ortodoxia vigilante e inexorável, para que o volume pudesse circular em Espanha, e, por contágio, em Portugal!


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