Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Frei Tomé de Jesus

Espontaneamente ou movidos por um habilidoso, solicitaram da universidade a criação de um partido suficientemente remunerado para o livre-docente permanecer em Salamanca, ensinando a sacra--página, as língua sábias e artes liberais, nas quais se mostrava diserto, e cautelosamente se levou ao conhecimento desta deliberação o rei e os membros do conselho real. A petição dos estudantes foi apresentada em 17 de Maio de 1568 ao claustro universitário, cujos votos se dividiram, e embora oito membros, entre eles o reitor, a aprovassem, a maioria decidiu, senão repudiá-la, pelo menos diferi-la. Três dias depois reunia-se de novo o claustro, e nele o mestre Gaspar Torres deu por escrito o seu voto, no qual declarava “que lo que hace el P. Pinto es mas predicar que no interpretar Escritura... Para que esta Universidad insigne se conserve en la limpieza de errores como hasta aqui, conviene que se evite la ocasion de dó tanto daño ha venido en otras universidades que sin teologia escolástica, solo con lenguas se han metido muchos á explicar a Escritura y pretendido que todos la pueden oir é tratar, de dó vino el principal daño de Alemania, é assi es necessario primero conste de la suficiencia que tiene el P. Maestro en Theologia Escholástica presidiendo en atos é sustentandolos, de lo cual nadie ha visto muestra ninguna en esta Universidad”. Com este voto descobriam-se as lutas entre partidários da Vulgata e do texto hebreu, mas o que surpreende é que Frei Luís de León o aprovasse, por singular incoerência, pois, consciente ou inconscientemente, Gaspar Torres condenava o método hebraizante e a frescura de inspiração bíblica pela filologia, que, tanto ele como Frei Heitor Pinto, moderadamente praticavam. Dir-se-ia morta a pretensão dos estudantes; inesperadamente, porém, foi lido no claustro pleno de 13 de Julho uma provisão régia, na qual se ordenava “se diese a Fray Hector Pinto la catedra de teologia, que habia obetenido por votos de estudiantes, con la condicion de que diese muestras en lo escolástico como lo habia dado en escritura y cual se habia oferecido á dar”. A universidade teve então uma atitude de independência e discutindo-se se devia ou não cumprir a vontade real, a maioria votou pela desobediência, destacando-se Frei Luís de León, com um voto escrito hostilíssimo para Frei Heitor Pinto. Com este voto, que interpretava a opinião geral do claustro, ficou absolutamente prejudicado o pedido dos estudantes. Entretanto, aproximava-se o fim do quadriénio de Grajal, o mestre interino, impondo-se novo concurso. Heitor Pinto, sentindo que a integridade da sua fama sofreria com ter aceite a proposta de um partido, furtando-se às provas do concurso, apesar da evidente animadversão da universidade, opôs-se com Grajal à substituição do segundo quadriénio. Faltam-nos documentos ilustrativos das fases desta oposição; mas pelo processo inquisitorial contra Frei Luís de León, prova-se com toda a evidência que o autor de Los nombres de Christo patrocinou Grajal, combatendo ostensivamente Frei Heitor Pinto e os jerónimos do Convento de la Victoria, de Salamanca.

Frontispício da 2.a edição da Imagem da vida christã, Coimbra, 1565

Heitor Pinto fora excluído, e como resposta aos detratores salmantinos, que o não reputavam suficiente escolástico, vai para Siguenza, em cuja universidade se doutorou pouco depois (4 de Outubro de 1568). Era uma satisfação moral; mas a verdadeira reparação só Portugal lha deu, criando na Universidade de Coimbra uma catedrilha de Escritura, e cometendo-lhe, por distinção, como hoje se diria, a respetiva regência (Maio de 1576).

Por pouco tempo exerceu o magistério, durante o qual leu o profeta Zacarias e os Salmos, porque, patriota ardente e fidelíssimo partidário do Prior do Crato, Filipe II desterrou-o logo, no ano lúgubre de 1580, para Castela. Atribui-se-lhe (Barbosa Machado) então a frase — “El-Rei Filipe bem me poderá meter em Castela, mas Castela em mim é impossível” — de autenticidade não documentada, e cuja substância, mais que o lendário “Deciamos ayer” de Frei Luís de León, exprime a realidade incontestável de um patriotismo constante e intemerato. Aubrey Bell (Luís de León. A Study of the Spanish Renaissance, Oxford, 1925) parece notar uma contradição entre o espírito que a proferiu e a ambição de ocupar uma cátedra em Salamanca; porém, bastará recordar a dedicatória a D. Sebastião dos Comentários a Ezequiel, impressos precisamente em Salamanca em 1568, toda ela um louvor exaltado de Portugal, para sentirmos que a ambição do magistério em terra estranha não sufocou os sentimentos do patriota: “Viue tu felix (rex), viue, ut patria vivat”.

Este dissídio entre Frei Luís de León e Frei Heitor Pinto orientou num sentido diverso das suas aspirações a vida do jerónimo português, e, no entanto, é intelectualmente inexplicável. Ambos escriturários ilustres, ambos sofrendo as mesmas inquietações interiores, expostas quase num plano espiritual idêntico, um nos diálogos De los nombres de Cristo, outro nos diálogos Da imagem da vida christã. Um e outro tiveram o mesmo ardor da cultura livre, e a mesma energia de resistência ao ambiente intelectual. Ambos habitaram no mesmo edifício escolástico, e a atitude de mística doutrinal é nos dois, por assim dizer, correta, raisonnable. O mesmo método de interpretação das Escrituras, o mesmo culto pelo hebreu, o mesmo horror ao comentário enfático os aproxima, e de tal forma, que não pode explicar-se a combatividade de Luís de León por motivos de indignação intelectual e, muito menos ainda, por divergências teológicas.

Frontispício da 3.a edição da Imagem da vida christã, impressa em Braga, por António de Mariz, em 1567

No verso do frontispício

Este incidente, o magistério em Coimbra, o ter sido um dos cinquenta excluídos da amnistia de 1581 e o seu desterro para Castela, onde faleceu em 1584 (?), ao que se diz, envenenado por ordem de Filipe II, são porventura os poucos momentos conhecidos, e alguns precariamente, da sua biografia. Sabemos, por vagas referências autobiográficas, que esteve em Roma, em Marselha, Saboia, Monserrate, Madrid, que redigiu um diário e era “curioso de antigualhas”; porém, em rigor, da sua biografia quase tudo se ignora.

Literariamente, a obra máxima de Frei Heitor Pinto é a Imagem da vida christam, ordenada per dialogos como membros de sua composiçam, traduzida em francês, castelhano e italiano. Esta obra desenvolve-se num conjunto de onze diálogos, repartidos em duas partes, compreendendo a primeira (1.a edição, 1563), os diálogos sobre a verdadeira filosofia, a religião, a justiça, a tribulação, a vida solitária e a lembrança da morte; e a segunda (1.a edição, 1572), os diálogos da tranquilidade da vida, da discreta ignorância, da verdadeira amizade, das causas, e dos verdadeiros e falsos bens. A 2.ª edição da primeira parte (1565) aditou aos seis diálogos uma interpretação das Armas de Coimbra, e a 3.a edição (1567), o Sumario d'hum sermão... em dia da Ascensão. No prólogo da primeira parte, dirigido ao duque de Bragança, D. Teodósio, a quem a obra é dedicada, Heitor Pinto diz que o que escreve “nesta obra, vay corroborado com authoridades das divinas letras, e de muy approvados e excellentes authores. Porque assi como quem quer prantar hum novo jardim, busca garfos e enxertos de bõas arvores, assi eu busquei authoridades de graves e famosos authores, pera prantar neste livro diviso em dialogos a maneira dos de Platam”.


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