2. As liberdades públicas e as garantias individuais

Em face do liberalismo imobilizado da Carta, a emigração das consciências liberais para o campo das reivindicações republicanas era um ato lógico. A negação da liberdade de cultos, concorrendo com as causas apontadas, estimulou passionalmente esta emigração, sobretudo durante a segunda metade do século. Em matéria religiosa, o regime de religião única e privilegiada, sancionado pela Carta, era uma contradição viva com os princípios liberais. Sem dúvida, nesta matéria, a Carta representava um progresso sobre a Constituição de 1822; porém, juridicamente notava-se-lhe uma oposição, se não contradição, entre o artigo 6.° («A religião católica, apostólica e romana continuará a ser a religião do Reino. Todas as outras religiões serão toleradas aos estrangeiros com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo») e o artigo 145.° § 4.° («Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública»). Comentando estas disposições, em 1878, Lopes Praça escrevia que «Se quisermos dar ao § 4º uma interpretação liberal, seremos forçados a concluir com Silvestre Pinheiro Ferreira que ele está em contradição com o artigo 6.° da Carta. Por isso é combatido pelo nosso douto publicista, que tira também argumento contra ele das limitações impostas aos estrangeiros, da situação em que ficam todos à falta de juiz e meios competentes para julgar, com legítimo critério, as transgressões do artigo. A doutrina da Carta é uma contraditória negação da liberdade dos cultos. Aos portugueses parece que não são permitidas as outras religiões, no que ficariam em pior condição que os estrangeiros. O § 4.° diz que ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, o que não se verifica. Ninguém pode ser conselheiro de Estado sem jurar manter a religião católica, apostólica e romana (Carta Const., artigo 109.°). Todos os dias vemos exigir-se como condição preliminar para o provimento de lugares a certidão de comportamento religioso. A manutenção e sustentação do clero católico faz-se por via de côngruas, de que não são isentos os não católicos portugueses; não temos sequer registo civil, e, numa palavra, é incontestável que se, por perseguição, nos termos do § 4.° se entende o cárcere, a tortura e a inquisição, então é verdadeiro o § 4.0, mas, se devemos entender qualquer perseguição, porque a lei não distingue, nesse caso é indubitável que não se pratica, sendo sempre certo que a Carta não reconhece a liberdade de cultos. Defender a liberdade de cultos, no século em que vivemos, afigura-se-nos pleonasmo desnecessário. Depois dos célebres discursos de Montalembert, das obras de Jules Simon, das Cartas a um Bispo de Emílio Castelar, e de tantos nomes ilustres que se distinguiram nos arraiais do Catolicismo, da Filosofia e da Reforma, toda a discussão nos pareceria inatendível. Da liberdade de consciência diremos apenas que ela escapa ao poder social, que não pode devassar o interior de nossas almas; nem as nossas convicções íntimas podem estar à mercê da nossa vontade ou caprichos, mas sim das luzes adquiridas. Só a liberdade de ensino poderá atuar vantajosamente sobre as nossas convicções. Quanto aos cultos, a sua relação com o Estado tem dado origem a sérios embaraços e variados conflitos. A história e a ciência confutam de um modo incontrastável a cesaropapia em que o Estado domina a Igreja; a teocracia em que a Igreja domina o Estado. Hoje tem ainda alguns defensores o regime das concordatas; pronunciando-se os espíritos mais liberais e desapaixonados pelo regime da liberdade de cultos.»

O sábio professor era de opinião que numa Constituição futura se sancionasse a doutrina de que «ninguém pode ser perseguido, nem direta, nem indiretamente, por motivos de religião. Às leis secundárias ficaria o dirimir as outras questões». Lopes Praça entendia que «a doutrina da Carta sobre liberdade religiosa não deveria substituir-se pela que consagrasse a imediata separação da Igreja do Estado, por causa das complicações que daí poderiam advir, e pelos efeitos contraproducentes que não deixariam de seguir-se»; mas considerava a separação como «o verdadeiro ideal para que todos deveremos constantemente dirigir-nos» e que a «diferença de cultos não deveria produzir desigualdades nem civis nem políticas, e todas as providências deveriam tender a aproximar-nos da justiça, isto é, da proteção igual a todos os cultos, até o momento em que a separação da Igreja do Estado fizesse triunfar o regime mais conforme à ciência, e mais fecundo em melhoramentos morais e sociais».

O estabelecimento imediato da separação seria «uma revolução ruinosa, instável e contraproducente. Seria contraproducente porque passaria da liberdade desejável à mais odiosa intolerância. Dada liberdade inteira e completa aos diversos cultos, nenhum poderia competir com o católico, porque nenhum dispõe do pessoal, dos recursos, dos meios e da organização poderosa do catolicismo, nem de uma tradição e experiência mais profícuas. Dentro em pouco tornar-se-ia supremo dominador da ordem moral e portanto do povo e do Estado. Dir-nos-ão que combatemos a pronta separação da Igreja do Estado em ódio ao catolicismo, contra o que lavraremos o nosso protesto, de acordo com as nossas convicções. Entre os cultos existentes nenhum pode disputar primazia, ainda racionalmente, com o catolicismo; e, se entendemos que um dos inconvenientes da imediata separação da Igreja do Estado seria a dominação da sociedade pelo catolicismo, é porque entendemos que essa dominação absoluta seria nociva à Igreja católica, ao Estado e à sociedade. Seria nociva à Igreja católica, porque daria incremento a tendências menos evangélicas e cristãs, aumentando uma centralização sempre fecunda em dissidências, e contrária à missão civilizadora do Evangelho, por isso que antepõe a dominação ao aperfeiçoamento, a força ao ensino, a direção espiritual ao mandado da prepotência. Porque ao progresso e à vida tentaria substituir a imobilidade mortuária. Seria nociva ao Estado e à sociedade. O corpo do clero é dominado, ainda hoje, pela fação ultramontana, que prefere a autoridade à liberdade, a prevenção à repressão, a dominação à direção; é esta doutrina que dimana da história da corte pontifícia nos últimos tempos. Até modernamente se tem apresentado franca e categoricamente contra os direitos individuais, contra o regime constitucional, contra as Cartas e contra as Constituições. Nesta situação lançaria mão da liberdade para a extinguir e com ela o futuro da humanidade. Certamente, como diz Jules Simon, há no seio do catolicismo homens sábios e pios que não podem ver sem indignação bispos funcionários, curas e serventuários nomeados pelos bispos sem intervenção dos fiéis, ministros sem fé nem ciência colocados no candelabro da Igreja, os decretos dos concílios julgados por um conselho de leigos, sem carácter religioso e talvez sem crenças, as missões proibidas no interior, os conventos fechados, a tradição dos concílios provinciais e dos sínodos interrompida. Longe de receberem com reconhecimento, em compensação destes sacrifícios, a parte considerável da autoridade concedida à Igreja nos negócios do Estado, a proteção exclusiva assegurada pela lei à religião católica e a seus ministros, a pompa do culto e a riqueza do alto clero, pedem a igualdade para todos os cultos, a pobreza para a Igreja católica, a rutura de toda a aliança com o poder, numa palavra a separação imediata e absoluta da sociedade civil e da sociedade religiosa. Estes espíritos generosos entendem connosco que da descentralização da disciplina eclesiástica, e da reconciliação da Igreja com as ideias seguras da civilização moderna proviria a regeneração da humanidade e a possível unidade das crenças. Mas, infelizmente, estão em minoria, e as suas ideias são repulsadas pela fação ultramontana preponderante. Com aqueles a separação imediata da sociedade religiosa da civil não teria nenhuns inconvenientes, e seria muito para desejar; com a fação ultramontana, uma tal separação seria a morte da liberdade e dos governos liberais.»


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