2. As liberdades públicas e as garantias individuais

Desigualdade em matéria de religião: tal era a consequência do regime da Carta. «Não conhecemos», escrevia o jurisconsulto Alves de Sá em 1872, «nada mais revoltante, e mais indigno de um povo livre. E a primeira das nossas leis, a lei da nossa liberdade, dos nossos direitos, a lei sagrada, não podendo separar a ideia de reino da ideia de dinastia, e a ideia de dinastia da ideia de religião, logo em seu átrio gravou o odioso princípio de uma religião do Reino, com todos os privilégios e todas as intolerâncias da velha monarquia! Sofremos hoje as consequências deste facto».

A querela das irmãs de caridade, a questão do casamento civil, a polémica sobre as conferências do Casino e o debate sobre Os Lazaristas de António Enes cujas representações entusiasmaram delirantemente as plateias, deslocaram o problema da liberdade de cultos do plano jurídico e constitucional para a praça pública. Levar-nos-ia longe a análise de cada um destes temas. Atente-se, porém, e fugazmente, em Herculano, pelo magistério moral e intelectual que exercia na sociedade portuguesa.

O descenso à ação na questão das irmãs de caridade e a intervenção no debate do casamento civil são índices da integridade das suas convicções, corajosamente afirmadas sempre em tantos passos da sua vida. Se em todos eles se descobre a nítida ideologia liberal, em nenhum talvez ele a exprimisse com mais amplitude do que na epístola a José Fontana acerca da proibição das conferências do Casino (1871). Neste escrito memorável, sob o ponto de vista que nos interessa, partindo do princípio de que «a religião do Estado num país livre não pode significar senão uma homenagem à crença da grande maioria dos cidadãos», Herculano afirmava que «não pode deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade de consciência, e removida completamente a mistura dos atos e fórmulas religiosas com os atos da vida civil em que tal mistura produza anulação de direitos ou da igualdade de direitos». Em seu juízo, a história da Igreja nos últimos anos era «uma contradição permanente com a Carta», não hesitando, perante «a rebelião manifesta» dos bispos, párocos e missionários, os quais com suas doutrinas inovadoras em matéria religiosa e ofensivas do pato social estavam aluindo «pelos fundamentos a monarquia representativa», em reclamar do governo o cumprimento do seu dever. E este dever consistia em «compelir o clero oficial a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplácito a tudo o que venha de fora alterar a religião do país, a religião como ela era em 1826, e obstar a que os prelados aceitem e promulguem como dogmas erros de fé, como direito a quebra dos cânones, como doutrina católica as blasfémias contra as máximas fundamentais da sociedade civil. O governo tem o arbítrio para conceder ou negar o exequatur às decisões conciliares ou às letras apostólicas quando não colidirem com a Constituição do Reino. As que forem hostis a esta, é óbvio que há-de rejeitá-las, combatê-las, anulá-las. Podem em Roma inventar o que quiserem, proclamar o que lhes convier, anatematizar o                que lhes parecer. Em Portugal é que nada disso pode ser admitido, se repugnar às instituições políticas de que forma parte a religião do Estado».

Estas afirmações, feitas em 1871, após a queda do poder temporal dos papas, a revolução espanhola e a República em França, soavam como clarins de guerra. A intangibilidade da Carta e uma política presa à sua letra, surda ao espírito do tempo e tendo por alvo a sufocação das vozes não conformes e a defesa da «ordem», tornaram possível a formação de uma consciência cívica independente e autónoma da política farisaicamente cartista. A mocidade universitária, acompanhando com entusiasmo o movimento de ideias e da política europeia, deu alento e vigor à nova consciência, tanto mais que o ensino de mestres como Vicente Ferrer Neto Paiva, Rodrigues de Brito, Dias Ferreira, Lopes Praça e Frederico Laranjo, embora com fundamentação filosófica diversa, lhe inculcava uma conceção do Estado e do Direito tendente à defesa e garantia dos direitos naturais e ao «desenvolvimento integral e harmónico» das possibilidades do homem.

A reivindicação destas liberdades denegadas ou sofismadas, confluindo no curso das reivindicações democráticas da soberania, trouxe consigo o divórcio da política constitucional. Nesta ordem de factos verificamos o mesmo processo de dissolução que surpreendemos no capítulo anterior, e de ambos se desprende a conclusão de que o sentimento republicano nasceu como reação contra a imobilidade insubstancial em que decaíra a ideologia e a política cartista. Todos os anelos de reforma se quebraram perante os interesses consolidados e o temor das inovações.

O republicanismo português procede, portanto, da fonte viva do liberalismo; mas para além do processo de desintegração sentimental, que observamos até agora, descobre-se um outro processo, puramente ideológico, isto é, de anelos, aspirações e ideias renovadoras, as quais, fortalecendo a sua autonomia, exortaram à despedida da política constitucional monárquica.


?>
Vamos corrigir esse problema