Ensaios filosóficos e pedagógicos

Nesta jornada por várias capitais, parece ter-se demorado principalmente em Paris, frequentando as sociedades literárias «desta corte polida e elegante». Não sabemos ao certo quantos anos esteve ausente de Portugal, examinando, como Descartes, le grand livre du monde; sabe-se apenas ter regressado em 10 de Julho de 1720, aos 27 anos de idade, pois nascera em 11 de Janeiro de 1693.

Os pormenores desta longa viagem, empreendida sem a paixão do exotismo, seriam sem dúvida interessantes; e se Martinho de Mendonça, como alguns viajantes do seu século, tivesse revelado aos portugueses, sepultados ainda sob as ideias da Contra-Reforma, o panorama intelectual e moral da Europa, talvez louvássemos no seu espírito um renovador da mentalidade nacional. Podendo ter sido, pela inteligência, pelo bom senso, e até pela posição social, um renovador da cultura, como Jacob de Castro Sarmento, um crítico como Verney ou um mentor do ensino público como Ribeiro Sanches; o seu regresso granjeou-lhe apenas uma admiração fácil e provinciana.

As Academias conquistaram-no; e D.S João V confia-lhe incidentalmente serviços diplomáticos e permanentemente a direção da Livraria real, lamentavelmente destruída pelo terramoto de 1755. Vivendo num meio gloriosamente erudito, — o período mais intenso da erudição nacional, cujo espólio tem ainda hoje de nos ser familiar, mas onde o espírito crítico e o amor das ideias gerais entorpeceram sob o peso das fadigas de pormenor, — a sua inteligência de estrangeirado adormeceu na memória erudita. Manteve sempre, sem dúvida um divórcio entre o seu ideal pedagógico e a prática comum do ensino; mas o estímulo renovador, que deveria ter sido vibrante e insistente na crítica, foi, por assim dizer, confidencial, legando-nos apenas os Apontamentos para a educação de um menino nobre que para seu uso fazia. Dedicados ao Marquês de Alegrete, estes Apontamentos foram publicados em 1734. D.S Luís de Meneses, terceiro Conde da Ericeira e autor da História de Portugal restaurado, na censura preliminar, abre a série dos panegiristas; e o melhor depoimento da aceitação deste livrinho está na circunstância de se ter exaurido completamente ao cabo de poucos anos, a ponto de em 1761 ter saído nova edição, no Porto, saudada «como uma das boas obras, que temos na nossa língua», pelo mais culto e exigente crítico literário da época, Francisco Bernardo de Lima . As benéficas revoluções do ensino público da segunda metade do século XVIII e do liberalismo, de espírito e sentido mais profundo e largo, obscureceram um tanto este livro, que Ribeiro Sanches, em 1760, considerava «o mais excelente» dentre «os milhares de tratados [que] se têm impresso da educação doméstica» , mormente pela sua finalidade nobiliária. Só nos últimos tempos, as suas ideias foram recordadas, pelo livro e pelo magistério oral: assim Ferreira Deusdado, no elenco dos Educadores Portugueses (Coimbra, 1910) e o Prof. Queirós Veloso, em brilhantes lições do curso da História da Pedagogia, na Escola Normal Superior de Lisboa.

Não é na tradição, ou se se quiser, na prática usual e orientação do ensino na sua época, que Martinho de Mendonça vai procurar o norte das suas ideias.

Tradicionalista na ordem moral, inseparável em seu juízo da religião, conservador na ordem social, não o é no conceito da finalidade da educação e principalmente nos meios de a atingir.

Uma atitude pedagógica consciente e coerente pressupõe uma filosofia e uma psicologia, porque não existe ideal pedagógico, isto é um ideal de formação humana, sem uma conceção do valor da vida e das possibilidades da natureza humana. Esta filosofia tem em Martinho de Mendonça dois aspetos solidários. O aspeto negativo, corroborando o juízo do Cavalheiro de Oliveira, traduz-se pela crítica do conteúdo do ensino e no reconhecimento da inutilidade e vícios do método escolástico. Assim, a gramática será mais útil que a retórica, cujas regras tem «quase por inúteis» e antecipando Manuel de Azevedo Fortes, na Lógica racional, geométrica, e analítica (Lisboa, 1744), considera o estudo da lógica «livre de inconvenientes» quando o entendimento se tiver fortificado no conhecimento da geometria e da álgebra.

Esta atitude supõe uma filosofia empírica, no sentido do século XVIII.

Ele próprio confessa ser «notado de oposto às opiniões dos antigos» ,porque os venera e não adora; mas o aspeto positivo do seu pensamento, sufocado porventura pelo historicismo do ambiente, não chegou a sistematizar-se em conceitos, acusando no entanto um forte sentimento de racionalidade e admiração pelos progressos das luzes e da técnica, embora encontre nas literaturas grega e romana uma «majestade natural e simplicidade nobre», «que não sabem ou não podem imitar os modernos».

Os Apontamentos visam sobretudo a formação moral, isto é, «uma virtude sólida, sem a mais leve mistura de hipocrisia, e uma ciência moderada e prudente, que não... conduza à pompa e ostentação sofística». Era seu intuito, como declara, fazer seguir estes Apontamentos de outros sobre o estudo, nos quais trataria especialmente da educação intelectual.

Não lhe faltaram estímulos, designadamente do Conde da Ericeira, que publicamente o exortou, exprimindo na censura já aludida, o voto de que D.S João V lhe ordenasse a continuação «dos estudos que naturalmente se seguem», pois assim ficariam «os vassalos igualmente instruídos na prática das virtudes cristãs e civis, que nas artes e ciências úteis e agradáveis». É possível que tivesse escrito os apontamentos sobre o estudo; mas nos nove anos que viveu, depois de ter dado ao prelo os Apontamentos para a educação, não os imprimiu, nem nenhum dos seus biógrafos acusa a existência do respetivo manuscrito. Com este livro, cujo plano talvez se inspirasse no Traité des études (1.a p. 1726 — 2.a p. 1728), de Charles Rollin, teria ficado completo o curso pedagógico de Martinho de Mendonça; mas não obstante a sua falta, os Apontamentos para a educação são suficientes para definir uma posição pedagógica e um sistema de ideias coerentes.

3. PEDRO DA FONSECA PRECURSOR DE SUÁREZ NA RENOVAÇÃO DA METAFÍSICA

Em 1577 saiu a público em Roma o volume I dos comentários de Pedro da Fonseca (1528-1599) in Libros Metaphysicorum de Aristóteles, e em 1597 concluía-se em Salamanca a impressão das Disputationes metaphysicae, de Francisco Suárez (1548-1617). São estes livros marcos capitais do pensamento filosófico peninsular e dos mais famosos títulos da bibliografia conimbricense.

À primeira vista, separa-os a distância que vai da glosa textual à construção sistemática ou, por outras palavras, da erudição filológica à reflexão metafísica. Fonseca é no próprio juízo de Suárez o autor de uma tradução tão «elegans et dilucida, ut fere sine expositore a quovis intelligi possit», e como crítico do texto da Metafísica de Aristóteles não faltam louvores ao seu labor gigantesco (A. Carlini; Ramón Cefial, etc.); e Suárez, por seu turno, aparece aos olhos da crítica contemporânea, sobretudo depois do juízo de Martin Grabmann (1917), como o verdadeiro instaurador da investigação objetiva e sistemática da Metafísica, sem vinculação direta à letra de Aristóteles.

Longe de mim a ideia de menosprezar o esforço genial do filósofo granadino no sentido de arrancar a Metafísica à tradição dispersiva da glosa e de sistematizar a respetiva problemática, especialmente da Ontologia, num corpo coerente e consistente. É este um facto assente e reconhecido, como é outro facto assente, embora ainda não tratado com o desenvolvimento que merece, a necessidade de se ter presente o pensamento de Suárez, especialmente nos países da Reforma, para a compreensão da filosofia moderna até Kant, sem esquecer incidências ulteriores, designadamente em Schopenhauer.


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