Ensaios filosóficos e pedagógicos

Não pretendo, pois, diminuir Suárez nem revisar a generalidade dos juízos contemporâneos a seu respeito; pretendo tão-somente notar que Fonseca não foi apenas um notável intérprete do pensamento de Aristóteles porque também deu expressão vigorosa e original a uma atitude metafisica que deve ser situada a par da de Suárez, na linha em que História e Sistema se dão as mãos para investigarem os temas filosóficos mais necessários à fundamentação da Teologia.

Nesta ordem de ideias, não é agora oportuno investigar a biografia de Fonseca, aliás deficientemente conhecida, nem situar a sua obra de lógico, especialmente das Institutiones Dialecticae (1564), e de editor e intérprete de Aristóteles, quer em relação ao anterior aristotelismo retorizante dos humanistas do Colégio das Artes de Coimbra, antes da entrega do Colégio à Companhia de Jesus (1555), quer ao desenvolvimento ulterior dos Comentários do Colégio Conimbricense, quer ainda em relação aos propósitos e às conveniências pedagógicas da sua Ordem.

A consideração destes assuntos levaria longe e afastar-nos-ia do nosso objetivo imediato, que consiste fundamentalmente em chamar a atenção para a dupla configuração dos Comentários de Fonseca aos primeiros nove livros da Metafísica, únicos de que se ocupou como comentador.

Com efeito, os Comentários são, por um lado, obra de editor, tradutor e exegeta de Aristóteles, isto é, estabelecem o texto grego, apresentam a respetiva tradução latina, e explicam mediante explanationes o pensamento do Estagirita; e, por outro, são obra de filósofo, principalmente no estabelecimento e resolução de quaestiones, cuja índole metafisica dita um tratamento completamente diferente do do filólogo, exegeta ou comentador, e cuja estrutura se apresenta quase sempre com independência em relação ao texto de Aristóteles.

Basta atentar de modo geral no assunto e na sucessão das quaestiones para se lhes reconhecer o seu valor autónomo, isto é, a possibilidade de serem destacadas sem que o comentário perca o valor interpretativo nem elas próprias o sentido que lhes é peculiar e como que independente do texto aristotélico. Nas explanationes, procurou acima de tudo explicar Aristóteles com o próprio pensamento aristotélico: dedimus operam ut praecipuis quibus que auctoribus uteremur, ipso praesertim Aristotele como ele próprio declara; nas quaestiones teve particularmente em vista quae in philosophia potissimum probanda esse judicaremus.

Daí, os Comentários representarem, sob o ponto de vista textual, a expianatio do pensamento aristotélico, e sob o ponto de vista doutrinal, o estabelecimento e a sistematização de alguns temas capitais da Metafísica, especialmente da Ontologia.

Levaria longe a indicação de todas as quaestiones; baste, por isso, deixar acentuado que nelas Fonseca se ocupa do objeto da Metafísica e da Ciência, dos universais, das causas, da matéria primeira, das formas substanciais, da, teoria do ser, da analogia, do conceito, da contingência e dos futuros contingentes, da potência e do ato, etc., etc.

A sua sistematização da temática não apresenta a feição harmoniosa das Disputationes Metaphysicae, mas sem embargo do carácter algum tanto dispersivo cremos que as quaestiones de Fonseca mantêm entre si uma travação lógica, como partes de um todo, e devem ser consideradas como fonte e estímulo da enciclopédia metafísica suareziana.

São-no em primeiro lugar, pelo esforço de arrancar a Metafísica à glosa literal do texto aristotélico. Se as Disputationes afirmam clara e pujantemente a autonomia da Metafísica, as quaestiones de Fonseca assinalam a primeira tentativa afortunada deste esforço.

São-no, em segundo lugar, pelo método. O ritmo do pensamento de Suárez nas Disputationes tem o compasso do de Fonseca nas quaestiones. História e sistema dão-se as mãos em ambos para encontrarem a solução desejada; e além disto, a marcha dialética é num e noutro similar, no sentido de procurarem a solução conciliatória que compreenda e supere as soluções extremas.

São-no, ainda, na utilização de uma copiosa erudição histórico-filosófica, e das correntes da Escolástica, sem esquecer o nominalismo e o terminismo, e são-no, finalmente, na relativa independência perante a tradição tomista, pois não cremos que deva ser tomado inteiramente à letra o juízo de Conze ao afirmar que Fonseca fora «em n recht ortodoxer Thomist», pois como em Suárez é nele vivíssimo o sentido do concreto e do existente.

A história da constituição autónoma da Metafísica, em especial da sistematização da problemática ontológica, no trânsito do século XVI para o século XVII, deve, pois, tomar em consideração o esforço, gigantesco pela erudição e penetrante na profundidade e alcance da visão, que Fonseca desenvolveu nas quaestiones insertas nos Comentários à Metafísica de Aristóteles.

A prova analítica esperamos dá-la na edição autónoma das Quaestiones, convencidos como estamos de que a cultura filosófica dos povos ibéricos e ibero-americanos, agora tão alentada pelo estímulo juvenil da Universidade de Cuyo, merece as fadigas de um trabalho que confirmará o juízo de Leibniz ao considerar Pedro da Fonseca um «espírito incomparável» (unvergleichliche Geist).

4. LEIBNIZ E A SUA ÉPOCA

Este livro ocupa lugar inconfundível na vasta bibliografia leibniziana e é modelo acabado do método e das conceções historiográficas do seu autor.

Há biografias mais extensas e minuciosas, repletas de informes sobre o estudante precoce e pouco afortunado que foi Leibniz, sobre o homem feito, na multiplicidade dos seus recursos e ocupações, sobre o político e vidente, sobre o patriota e o europeu, sobre os escritos do filósofo, do matemático, do físico, do filólogo, do historiador, do teólogo e do controversista; e há também exposições e interpretações críticas da filosofia leibniziana, mais profundas e, por assim dizer, tecnicamente mais engenhosas, tanto sobre as ideias do lógico, do metafísico e do teólogo como sobre o ponto de partida e o desiderato supremo, nunca claramente confessado da meditação do autor da Monadologia.

Não é pois, como repositório de informações nem como guia no labirinto das ideias de um homem prodigiosamente enciclopédico e genialmente inventivo e fecundo que este livro se assinala. Para isso há outros, de ontem e de hoje, e sem dúvida de manhã, porque ainda se não dissipou o véu de dúvidas que vela o ser íntimo de Leibniz e o sentido profundo de algumas das suas conceções, — nem nunca se dissipará, porventura, mesmo que se leve a cabo a publicação integral dos, ao parecer inesgotáveis, inéditos da biblioteca de Hanôver.

O que estes livros disseram é, por vezes, de consulta imprescindível, mas como que o disseram quotizada e longitudinalmente, cindindo a individualidade do filósofo, de cuja mente o pensamento jorrava com pujante vigor e assombrosa largueza de vista, e desligando o fundamento lógico, metafísico ou religioso (coisa controvertida), que lhe estruturou o sistema, do impulso pessoal, dos estímulos epocais e do sentido cósmico que deram alento e densidade à sua meditação.

Comparem-se, superficialmente que seja, as páginas deste livro com quaisquer outras de qualquer historiador de Leibniz, e logo ressaltará a originalidade do método e da conceção que as ditou. Em vez da exposição de filosofemas decorrendo abstratamente pelas regiões intemporais da lógica ou da metafísica, a inserção do filósofo na individualidade irredutível da pessoa de Leibniz e na plenitude do tempo que ele realmente viveu, em conexão com as demais manifestações da cultura coetânea, assim científicas, como institucionais, literárias e musicais, designadamente Bach e Haendel.


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