Algumas ideias capitais do Tratado Teológico-Político

«5.° — O culto de Deus e a obediência que se lhe deve consistem apenas na Justiça e na Caridade, isto é, no amor do próximo;

6.° — Os que vivem em conformidade desta regra de vida obedecem a Deus, são salvos, e só eles o são; os que vivem n volúpia estão perdidos. Se os homens não acreditassem nisto firmemente, nenhuma coisa poderia levá-los a preferir Deus à volúpia;

«7.° — Finalmente, Deus perdoa os pecados aos que se arrependem. Não há ninguém que não peque; se não se admitisse isto, toda a gente desesperaria da salvação e não haveria razão para acreditar na misericórdia divina. Aquele que acredita nisto firmemente, isto é, que por misericórdia e graça soberana e reguladora, Deus perdoa os pecados e que por esta causa arde de amor para Deus, esse conhece verdadeiramente Cristo segundo o Espírito, e Cristo é nele.

« (...) Quanto a saber o que é Deus, isto é, o modelo da verdadeira vida, se é fogo, espírito, luz, pensamento, etc., não diz respeito à Fé... » assim como « é indiferente à Fé a crença que Deus existe em toda a parte por virtude da sua essência ou da sua potência; que dirige as coisas livremente ou por necessidade da sua natureza; que prescreve leis à maneira dos príncipes ou como verdades eternas; que o homem obedece a Deus por decisão livre ou por necessidade de decreto divino, e, finalmente, que a recompensa dos bons e punição dos maus é natural ou sobrenatural.»

«Tais questões e outras semelhantes de qualquer modo que cada um as esclareça, nada importam acerca da Fé, contanto que nas respetivas conclusões se não tenha em vista a maior liberdade de pecar ou de ser menos obediente a Deus... A Fé, repitamo-lo, não exige tanto a verdade como a piedade e ela é piedosa e fomentadora da salvação na medida em que se é obediente; é-se fiel na proporção em que se é obediente. Portanto, não é aquele que melhor expõe razões o que mostra a Fé melhor; é aquele que expõe as melhores obras de Justiça e de Caridade.

«(...) A Fé, portanto, reconhece a cada um soberana liberdade de filosofar, de tal sorte que pode, sem crime, pensar o que ele quiser acerca de todas as coisas; condena apenas como heréticos e cismáticos os que ensinam opiniões conducentes a derramarem entre os homens o ódio, o espírito combativo e a cólera; os seus fiéis, pelo contrário, são apenas aqueles que na medida em que a Razão os força e as suas faculdades lhes permitem, espalham a Justiça e a Caridade».

Eis o credo de Espinosa; o seu paraíso, é o conhecimento e o amor de Deus, o seu inferno, a privação do amor e do conhecimento de Deus. Nada mais, e também nada menos.

Entre a filosofia e a religião não há antagonismos; o objeto de cada uma é diverso, porque se a filosofia se propõe a investigação da verdade, a religião tem por fim a obediência e a piedade. Por isso, nem a teologia é serva da razão, nem a filosofia o é da teologia; cada uma é autónoma no seu domínio A revelação não se demonstra more mathematico; o princípio supremo da revelação, isto é, que a obediência por si só pode salvar os homens, é indemonstrável, e implica uma espécie de certeza, que só pode emanar diretamente de Deus. Por isso, foi necessária a revelação: «O que tem sido confirmado pelo testemunho de tantos homens inspirados, o que é uma fonte de consolação para os humildes, o que traz à sociedade grandes benefícios, o que podemos acreditar sem risco intelectual, seria loucura rejeitá-lo pelo único pretexto de não poder demonstrar-se matematicamente». Não há duas leis diversas, uma para o povo, outra para os filósofos; há apenas pontos de vista diferentes, porque se o mandamento de amar a Deus é lei para o povo, é para o filósofo verdade eterna.

Se o filósofo não pode denunciar a crença popular como absurda, assim também o povo não pode acusar o filósofo de impiedade. A piedade e a impiedade não estão nas ideias; estão nas ações, e só é herético o que exorta à rebelião e ao ódio: «aquele que possui a caridade, a alegria, a paciência, a doçura, a bondade, a fé, a mansuetude, dele digo, com Paulo, que a lei de Deus não está escrita contra ele».

Tal é, nas suas linhas gerais, o credo do Tratado.

É a religião de um filósofo que considerou insolúvel o problema das relações da fé e da razão nos termos tradicionais, isto é, na oposição recíproca da fé e da razão e na vitória final e decisiva de uma sobre a outra. Para o resolver, isto é, para pôr termo à interminável querela, Espinosa formula-o em termos novos, e a sua fórmula, acabamos de a ver, assenta na separação nítida da filosofia e da teologia: a revelação bem compreendida nada tem que ceder à filosofia, como a filosofia nada tem que ceder à teologia. A autoridade da Escritura é de ordem moral; as verdades da Revelação são verdades morais: a virtude da obediência e a virtude do amor dos homens. Tudo o mais que constitui a Bíblia, relato histórico ou mandamento legal, é de origem humana, contingente e local, e não consente o estabelecimento de uma teologia exclusiva, de uma legislação intangível, de uma metafísica absolutista. Se a Escritura é o testemunho vivo da Variedade de opiniões e de crenças, se a piedade e o amor dos homens, de essências divinas, não sofrem com a liberdade dos critérios humanos, qual deve ser o procedimento do Estado em face das confissões religiosas e dos pensamentos filosóficos e teológicos?

A resposta é fácil, porque a demonstração da independência da filosofia e da teologia acarreta logicamente a da separação da teologia e da política.

Na essência, a fórmula política do Tratado é a do liberalismo autoritário, na feliz expressão de Couchoud: liberdade do pensamento, submissão dos atos ao Estado. Era a fórmula do partido republicano, de que Hugo Grócio no De imperio summarum potestatum circa sacra (1647) havia sido defensor, e esta fórmula ditava que a liberdade de pensamento não é apenas possível, porque é a primeira condição da saúde do Estado: quando os homens pensam uma coisa e dizem outra, por temor ou coação, destrói-se a lealdade (fides), verdadeiro sustentáculo do Estado. A dissimulação e a hipocrisia são frutos do constrangimento das consciências e da compressão do pensamento.

Concluamos, pois, «que a segurança do Estado requer, acima de tudo, que a Piedade e a Religião sejam compreendidas apenas no exercício da Caridade e da Equidade, que o direito do Soberano a regulamentar todas as coisas, assim sagradas como profanas, diz respeito apenas às ações, e que no restante se conceda a cada um o direito de pensar o que quiser e de dizer o que pensa».

É esta a mensagem do Tratado, cujas derradeiras palavras são um cântico de paz e de modéstia: «Sei que sou homem e posso ter errado; empreguei, porém, toda a diligência em evitar o erro e, sobretudo, em não escrever alguma coisa que brigasse com as leis do país, a liberdade e os bons costumes».


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