III - Discurso proferido na sessão plenária da Academia das Ciências de Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 1951

A teoria sanchesiana do Saber desenvolveu-se em dois sentidos convergentes: o negativo e o positivo. Conhecemos somente o sentido negativo, exposto principalmente no Quod nihil scitur e secundariamente no Carmen de cometa e no De divinatione per somnum ad Aristotelem, mas é seguro que Sanches se esforçou por estabelecer uma teoria positiva, que parece não ter levado a cabo —, nem podia levar, pelo pressuposto exclusivamente empírito de que partia.

Com efeito, a epistemologia de Sanches baseia-se nesta intuição fundamental: é vão o saber que não radique imediata e exclusivamente na empiria das sensações. É esta intuição que dá a chave da estrutura do Quod nihil scitur e torna compreensíveis as refutações e a promessa de fundamentar «uma ciência firme e fácil». Sanches não explicitou clara e ostensivamente o que entendia por «ciência firme e fácil», mas significou o que tinha em mente ao advertir o leitor do Quod nihil scitur que considerava «inexistentes» os átomos de Epicuro, as Ideias de Platão, os números de Pitágoras, os universais de Aristóteles e as teorias do intelecto ativo e das inteligências, separadas, subentenda-se. Repudiando por «inexistentes» estas conceções, Sanches significava que não considerava necessária à explicação do conhecimento científico a existência de princípios, formas ou universais, que precedessem ou transcendessem a experiência sensível. A primeira coisa que estabeleceu foi, pois, o afastamento das conceções e das atitudes que sotopõem ou condicionam a explicação do Mundo físico a formas aprioristas, a seres de razão ou a essências meramente inteligíveis; e porque a teoria da ciência de Platão recorrera a Ideias separadas e a de Aristóteles a universais para explicar o particular, cumpria agora lançar a dúvida sobre tudo o que estas conceções produziram e situar o espírito exclusivamente no imediato e concreto dos dados empíricos.

Coerentemente, Sanches prosseguiu as suas reflexões lançando a dúvida sobre a totalidade do saber, ou para empregar as suas próprias palavras, «revocou tudo em dúvida, como se até então nada se tivesse dito». Psicologicamente, a sua posição foi neste momento análoga à que Descartes descreveu cinquenta anos mais tarde na quarta parte do Discurso do Método e na primeira das Meditações Metafísicas, sendo crível que o genial instaurador do pensamento moderno tivesse tido sob a vista a página vívida e sugestiva da epístola ao leitor do Quod nihil scitur, mormente se se admitir que a dúvida cartesiana é fictio mentis. A vivência da radicalidade e da universalidade da dúvida apresenta analogias impressionantes nos dois filósofos, designadamente de vocabulário, e num e noutro se dá o propósito de a superarem por via estritamente racional. Provavelmente discutir-se-á sempre a extensão, a profundidade e a correlação das conceções sanchesiana e cartesiana da dúvida, por ser tema cujo esclarecimento depende de vários factores, mais ou menos variáveis. Formulado pela primeira vez, corno já disse, por Hubner em 1641, nos dias imediatos à publicação das Meditações Metafísicas, não faltam desde então as opiniões mais ou menos divergentes. A nosso ver, os dois filósofos somente têm de comum a vivência psicológica da dúvida radical e o anelo de a superarem pela fundamentação de uma teoria da Ciência. Ambos duvidaram e fizeram da fundamentação da Ciência um problema filosófico, mas na consciência reflexiva de Sanches a dúvida não resultou, como em Descartes, do exame parcelar da exatidão dos conhecimentos literários e científicos e das lições do «grande livre du monde», nem tão-pouco atingiu em ambos a mesma profundidade e idêntica desenvolução.

Descartes, havendo levado a dúvida à existência do próprio Mundo e à estrutura do exercício da própria razão, superou-a pela apreensão do cogito, pela análise das consequências lógicas que esta primeira verdade desentranha e pela suspensão provisória do cogitatum, isto é, do objeto ou referência intencional; Sanches, pelo contrário, olhos fitos na imediatidade dos dados sensíveis, isto é, dos factos e dos objetos, em vez de encontrar o termo da dúvida no cogito, isto é, na consciência que cogita, encontrou-o nos cogitata, isto é, na coisa dada ou intencionalmente referida no pensamento que cogita. A diferença implica divergências profundas e radicais, notadamente em relação ao conceito de evidência, que para Sanches foi sinónimo de imediatidade dos dados da perceção enquanto que para Descartes significou a irresistibilidade lógica inerente à clareza e distinção das ideias no juízo. Por isso, o filósofo francês empreendeu a sua genial jornada seguindo inicialmente a via do idealismo e Sanches não abandonou, nem podia abandonar, o terreno do realismo ingénuo. Daqui, a marcha do pensamento sanchesiano não se desenvolver com a fecundidade criadora da de Descartes, pois a bem dizer deteve-se quase exclusivamente na refutação das conceções contrárias à sua intuição de que o conhecimento exato somente pode dar-se na e pela perceção sensível.

Com efeito, o objetivo do Quod nihil scitur não consiste verdadeiramente em mostrar «porque nada se sabe», isto é, em refutar a possibilidade da Ciência em geral, mas em eliminar do horizonte filosófico as conceções da Ciência corno saber total e perfeito, de construtura lógico-metafísica e de metodologia dedutiva. Por isso, Sanches teve fundamentalmente em vista o que era dado como constituinte do conceito de Ciência, pelo que indagou, como anuncia o título do seu livro, o Porque Nada se Sabe, em vez de aprofundar, como Descartes, as razões psicológicas e metafísicas da sua própria dúvida. A reflexão sanchesiana da dúvida nasceu, pois, extrovertida e desenvolveu-se, por assim dizer, perifericamente. Sanches jamais duvidou da existência do mundo externo e da capacitação do espírito para o conhecer na imediatidade com que se oferece à intuição sensível; por consequência, não duvidou como ser que conhece e enquanto conhece, mas como ser a quem se apresenta uma scientia constituta e se pergunta por que caminhos se chegou à constituição dessa scientia. Por isso, o Quod nihil scitur se ocupa das definições de Ciência mais aceitas ao tempo, em ordem a mostrar que eram definições verbais, exprimindo um tipo de saber em relação ao qual se pode afirmar «que nada se sabe».

São quatro as definições que submete à crítica: duas, aristotélicas —, ciência é a conformidade que os conhecimentos adquirem pela demonstração e saber é conhecer pelas causas; uma platónica, saber é recordar, e uma quarta, da autoria de Sanches e que ele apresenta como antítese do ceticismo: ciência é o conhecimento perfeito do objeto. Estas definições divergem quanto à característica peculiar do conhecimento adequado, mas todas são dogmáticas, isto é, admitem sem reserva a possibilidade do espírito atingir conhecimentos plena e irresistivelmente certos. Sanches não empreendeu a refutação partindo deste denominador comum. A sua argumentação, por isso, não se introduz no essencial e nuclear, mas como que se extraduz, visando isoladamente cada uma das quatro definições, sempre com o mesmo método, colhido porventura em Galeno, o qual consiste em refutar separadamente os conceitos constitutivos de cada definição para concluir pela sem razão do conjunto. Assim, na primeira definição, expressa pela fórmula: Scientia est habitus per demonstrationem acquisitus, vulgar nas escolas como parece testemunhar Diogo de Sá no De navigatione libri tres, separou os conceitos de habitus, demonstratio e respetiva conexão; e na última — Scientia est rei perfecta cognitio —, distinguiu o objeto (ou coisa a conhecer), o ato de conhecer e o cognoscente enquanto ser capacitado para conhecer com perfeição.


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