III - Discurso proferido na sessão plenária da Academia das Ciências de Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 1951

É que Sanches viveu numa quadra em que a conceção aristotélica da Natureza se encontrava em crise e se não haviam constituído ainda a metodologia e o sistema de ideias que estruturam a ciência moderna. Daí a sucessão de duas instâncias principais: primeiramente, a justificação racional do naturalismo, metafísica que não exclusivamente física, de tudo o que ocorre no Universo e, mais tarde, com base nesta justificação, a constituição de um saber estritamente natural, rigorosamente científico e universalmente válido. A primeira instância foi desenvolvida negativamente, isto é, pela refutação do maravilhoso e da causalidade sobrenatural, no sentido geral do termo, e positivamente, isto é, pela conceção de que a Natureza pode ser explicada por princípios estritamente naturais; a segunda instância, assente já firmemente na noção de lei científica, manifestou-se com a criação da ciência moderna e com a consequente renovação da problemática filosófica, pois Descartes e seus epígonos não são compreensíveis sem a nuova scienza de Galileu.

A teoria sanchesiana da Natureza somente é compreensível à luz da primeira instância e não da segunda, isto é, à luz da atitude donde brotou principalmente a conceção do mundo de Bernardino Telesio e dos seus continuadores, e não à luz da atitude donde brotou a «nova ciência» de Galileu. Consequentemente, o nome de Sanches não conta entre os descobridores de conhecimentos exatos no domínio das ciências experimentais mas é inseparável dos que tornaram possível tais descobridores pela refutação das conceções que obstavam a que a Natureza fosse explicada por princípios estritamente naturais, iuxta propria principia, no expressivo dizer de Telesio.

Por isso, coerente com a sua posição epistemológica e com a tendência extrovertida e polémica da sua constituição, Sanches criticou no Carmen de cometa, que foi a primeira obra que deu a público, a legitimidade dos presságios astrológicos e no De divinatione per somnum ad Aristotelem, tendo em vista diretamente as opiniões de Jerónimo Cardam), cujo talento aliás admirava, a presciência de quaisquer conhecimentos adquiridos por via onírica ou demoníaca, ou por outras palavras, por via não sensível e racional. Sinceramente religioso, Sanches não duvidou da existência de acontecimentos sobrenaturais, mas somente no plano da Revelação; porém como filósofo que se coloca no terreno da «ciência natural», não reconheceu sombra de fundamento às previsões que não radiquem, como ele próprio diz, «na razão e na experiência».

A crítica a que submeteu o conceito de adivinhação, especialmente na definição de Cardano, assenta na conceção sensista e na noção de causa natural, em virtude da qual os acontecimentos da Natureza se produzem necessariamente. Com outras palavras, é esta mesma noção que nutre os hexâmetros do Carmen de cometa, pois a construtura deste poemeto anti-astrológico não é compreensível sem a conceção de que o Mundo é pensável somente em função da ideia de «Natureza eterna», isto é, da imanência da causalidade e da correlação dos seres e eventos naturais. Criação da vontade divina, nem por isso a Natureza é teatro do arbítrio e da incongruência, manifestando, pelo contrário, uma ordem eterna, cuja identidade e constância priva de fundamento real e de credibilidade lógica o recurso a explicações não-naturais da fatualidade física.

Bastam estas rápidas considerações para sugerirem que a epistemologia sensista do Quod nihil scitur e do De divinatione per somnum ad Aristotelem suscitou uma teoria da Natureza se é que não é mais exato a inversa, isto é, de que foi a noção de realidade física que gerou no espírito de Sanches a conceção sensista do conhecimento. É que ao contrário de Descartes, que iniciou o seu filosofar fitando os olhos na irresistibilidade lógica da demonstração matemática, Sanches, jamais deixou de ter presente a sua ciência e experiência de médico. Por isso, a reflexão cartesiana gerou uma conceção da Ciência essencialmente explicativa, isto é, em que a coisa se torna sabida quando se lhe conhece a causa ou razão de ser; e a reflexão sanchesiana não gerou mas anunciou uma conceção da Ciência essencialmente descrita, isto é, em que a coisa se considera sabida quando é apreendida pela experiência sensível. Daí a repulsa de Sanches por todas as abstrações ou pressupostos que se insiram no ato da percepção, o propósito reiteradamente confessado de conjugar a problemática da Filosofia com os ensinamentos da Medicina, e uma teoria da Natureza diretamente fundada no contato imediato da realidade natural com o espírito.

Perdido o Examen rerum, cuja publicação iminente anunciou no Quod nihil scitur, as referências esparsas permitem dizer que Sanches abordou a teorização da Natureza com atitude diversa da de Cardano e com o sentido do De rerum natura iuxta propria principia, que Bernardino Telesio deu a público em 1565.

Com a tradição, Sanches distinguiu a causalidade primeira, que é a vontade divina, da causalidade segunda, que é a causalidade natural. Mediante a distinção, julgou obviar ao ateísmo, que indaga somente os efeitos da causalidade natural, e à credulidade do vulgo, que tudo explica por causas sobrenaturais, e faz de Deus, no juízo de agnósticos, o «asilo de ignorantes», para empregar as próprias palavras de Sanches, que, por singular coincidência, são quase as mesmas que Espinosa empregará mais tarde na Ética. A superação das duas limitações encontrou-a Sanches na conceção da Natureza como ancilla Dei, mas na qual, salvo nas intervenções miraculosas, a vontade divina opera mediante as causas secundárias ou naturais. Por isso, a sapientia summa consiste em remontar à causa primeira mediante o conhecimento das causas segundas, de sorte que o conhecimento das causas segundas constitui um assunto não só fundadamente legítimo mas necessário à compreensão da causa suprema.

Sanches abordou a explicação da Natureza com os conceitos da física aristotélica, mas repudiou algumas das explicações do Estagirita. Com Aristóteles admitiu a existência de uma só matéria e da contrariedade universal como condição da geração dos seres naturais, mas divergiu do Filósofo, como se dizia na Meia-Idade, relativamente ao número dos contrários fundamentais.

Aristóteles estabelecera que a Natureza era teatro de duas qualidades ativas, o calor e o frio, e de duas passivas, a secura e a humidade, derivadas das qualidades ativas. Sanches, influenciado porventura por Telésio, pensou que esta teoria quebra a unidade da Natureza, pelo que foi levado a admitir a existência de duas únicas realidades, o calor e a humidade, atuando o calor como força, ato e pai, e a humidade como matéria, possibilidade e mãe. Calor e humidade são de essência unitária e simples, mas o calor, porque procede do Sol, é o mesmo no mundo celeste e no mundo terrestre, o que se não pode afirmar da humidade. É o calor a força ativa que compõe, mistura e decompõe tudo o que existe, e a humidade o que conserva o calor e impede que ele se evole para o seu lugar natural, que é a região celeste donde procede. Daqui resulta que a existência e conservação dos seres naturais dependem de certa quantidade de calor e de certa quantidade de humidade e que quando se altera a respetiva relação os seres se corrompem.


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