Hegel e o conceito de história da filosofia

Afastar-nos-ia do nosso objetivo a consideração da circularidade desta conceção e do princípio de que ela se nutre, ou seja a imanência da Ideia, segundo a qual a realidade, a verdade e o valor são atuais, isto é, resolvem-se sempre na história presente do espírito. Atentemos, por isso, na tese da temporalidade da Filosofia.

O que acima dissemos é suficiente para mostrar que o conceito hegeliano de temporalidade histórica, ou mais propriamente, de transtemporalidade, sofreu a deformação resultante do «espírito de sistema», mas, sem embargo disso, a invalidação da objetividade histórica das opiniões e da contingencialidade do acontecer filosófico libertou a História da Filosofia da cegueira, mais ou menos cética, a que conduz a poeirada dispersiva das «opiniões», da incompreensão presumida dos eruditos e da tagarelice dos curiosos de singularidades do espírito humano, o que, aliás, não quer dizer que tenham desaparecido estas causas do extravio de mentes mais ou menos capacitadas.

Com efeito, a admirável floração da historiografia filosófica da segunda metade do século XIX não é compreensível nem explicável, por um lado, sem a conceção hegeliana da história filosófica como desenvolução e exteriorização do pensamento no tempo, mediante a qual o passado se torna condição do conhecimento reflexivo do presente, e por outro, sem a correlação das exigências metodológicas, operadas coetaneamente, em virtude das quais se tornou essencial ao trabalho do historiador a análise prévia e crítica das fontes e a coordenação dos respetivos dados em ordem ao estabelecimento das características e da conexão dos factos. A função destas exigências corrigiu nos primeiros grandes historiadores o sistematismo dialético de Hegel dando consistência criticamente fundada à conceção fundamental da História da Filosofia como desenvolução conceptual. É o que mostram os monumentais trabalhos de Edouard Zeller sobre A Filosofia dos Gregos no seu Desenvolvimento Histórico (1844-1852, 1.° vol.), de Kuno Fisher sobre a História da Filosofia Moderna (a partir de 1854), de Prantl sobre a História da Lógica no Ocidente (1.° vol., 1855) e de Windelband sobre a História da Filosofia (1892). Estas obras gigantescas nasceram sob a influência da conceção hegeliana — os três primeiros como que em primeira geração, o último como epígono, e todos, afinal, como expressão fundada da legitimidade do saber histórico filosófico e do alcance filosófico da respetiva compreensão. Pode dizer-se que estes historiadores, os mais representativos e normativos, têm de comum a investigação do processo histórico dos sistemas de abstrações e de explicação geral, mas divergem na extensão do conceito de abstração e na função da História da Filosofia. Zeller e Windelband podem considerar-se os representantes mais altos, nesta orientação e dentro da conceção que radica o pensamento especulativo na Grécia e o seu desenvolvimento na e pela mentalidade europeia.

Como filósofo influenciado por Hegel, Zeller propôs-se reportar a sucessão aparentemente casual dos sistemas filosóficos helénicos a uma evolução, ou melhor, desenvolvimento, racionalmente coerente, e como historiador, procurou apurar objetiva e criticamente os elementos de cada sistema e estabelecer entre eles a respetiva coordenação. Legou-nos assim uma história sabiamente fundada e admiravelmente coerente da génese e desenvolução dos sistemas helénicos, cujo traçado serviu de base à estrutura filosófica da introdução de Latino Coelho à Oração da Coroa, de Demóstenes, mas esta história é de âmbito relativamente limitado. É que por Filosofia entendeu o pensamento conceptual da realidade natural, de sorte, que exclui do âmbito da História da Filosofia a atividade artística e prática. A conceção teórica do Mundo é o seu objeto próprio, por forma que o historiador-filosófico não ter de se ocupar das reflexões acerca da vida habitual nem das conceções religiosas ou poéticas do Mundo.

Windelband, na introdução ao Tratado de História da Filosofia, atribuiu âmbito mais largo e escopo mais complexo à historiografia filosófica. O seu propósito consistiu em mostrar historicamente os princípios pelos quais compreendemos e julgamos o Mundo e a Vida, pelo que considerou como objeto próprio da História da Filosofia os problemas, conceitos e soluções que concretizam no pensamento europeu as conceções gerais acerca do Mundo e da Vida. O âmbito da História da Filosofia torna-se assim mais amplo e a sua função mais complexa, porque o historiador-filosófico tem por tarefa não só a indagação e crítica das fontes e a reconstituição do processo genético, mas também a apreciação do valor das doutrinas, pelo que, sob aqueles pontos de vista, a História da Filosofia é disciplina histórico-filosófica, e sob o terceiro aspeto  é disciplina filosófico-crítica.

Estas são as duas conceções fundamentais do século XIX. O nosso século possui já uma literatura pujante de historiografia, geral e nacional, da Filosofia, da história biográfica e autobiográfica de filósofos, da monográfica de problemas e de conceções de orientação determinada, e tão variada, que é possível organizar urna tipologia característica dos métodos expositivos. Na estrutura, porém, esta atividade continua a nortear-se pelo essencial da conceção hegeliana, despojada, todavia, da definitividade sistemática e terminal, e por inovadoras que sejam as lições de Ruggiero, Brehier, Rivaud, Muirhead, Heimsoeth, etc., as páginas de Zeller e de Windelband conservam toda a frescura e vigor normativo e formador. O pensamento de um e de outro recolheu o que de fecundo jazia na conceção hegeliana, sem cair no sistematismo apriorístico, na mera erudição e na curiosidade dispersiva das opiniões, que são os pecados mortais do historiador da Filosofia; por isso, ambos ensinam exemplarmente que uma História da Filosofia que tivesse exclusivamente por objeto os puros conceitos seria vazia, para empregar a significativa expressão kantiana, como seria cega a que somente narrasse as circunstâncias externas em que se dão os conceitos.

Figueira da Foz, Setembro de 1951.


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