Leibniz e a cultura portuguesa

Como se vê, Leibniz não ultrapassou o conhecimento fragmentário da nossa história, compreendendo-se que não houvesse emitido um juízo geral sobre o País, pois não merece que como tal se considere a opinião formulada pouco antes de falecer acerca do bom governo dos nossos reis de nome João, e que referia como testemunho da insensatez da crença na existência de nomes desventurados e de mau agoiro.

Como elemento cultural, pelo contrário, as referências são variadas e numerosas, desde os escritos da mocidade aos derradeiros dias de vida. As investigações históricas e arquivísticas, que assinalam um dos rasgos mais singulares do génio omnímodo de Leibniz, não o conduziram nunca ao exame sistemático de qualquer período da nossa história. Teve, sem dúvida, presente alguns documentos da nossa atividade diplomática, havendo mesmo publicado no Codex juris gentium diplomaticus, em 1693, o tratado acerca das Canárias celebrado com a Espanha em 1481, cuja crítica interna lhe mereceu reparos, assim como certo documento referente às Ordens militares, porém, jamais se deteve sobre um acontecimento ou período com intenção historiográfica.

Compreende-se. Portugal distava sentimental e politicamente dos seus interesses e preocupações e além disto parece que não chegou a possuir o conhecimento perfeito da nossa língua, o que aliás não impediu que lhe fizesse algumas alusões, suscitadas pelo desenvolvimento da sua problemática de filologia comparada, especialmente na parte relativa à consideração das línguas como veículo da descoberta da linguagem primitiva e da origem dos povos. Assim é que, numa antecipação das atuais teorias do substrato linguístico, formulou a conjetura da primitiva linguagem peninsular ter origem africana  e referiu, sem se pronunciar criticamente, a opinião de Luís Alphitander sobre a correlação do nome do deus Endovélico com as palavras Tubal e Teufel.

Como filólogo e bom conhecedor do latim e do francês, é de crer que a soletrasse, mas o facto de não citar qualquer escrito redigido em português e de Job Ludolf, poliglota famoso de quem se dizia que dominava vinte e cinco idiomas, lhe verter para latim um período de uma carta do oficial maior da secretaria de Estado, António Rodrigues

Costa, em 1692, que veio a conhecer, certamente, em 1708, no palácio do Conde de Lippe, na receção da rainha D. Mariana de Áustria, pois fazia parte da comitiva real, inculcam fortemente a presunção de que conheceu os assuntos portugueses por livros escritos por nossos compatriotas em latim, ou vertidos nesta língua e na francesa, e pelos de estrangeiros nas línguas que lhe foram familiares.

Do que venho dizendo se conclui que Leibniz encontrou alguns livros portugueses ou sobre assuntos de Portugal no estupendo jornadear da sua mente, neles se detendo, naturalmente, com vária demora, desde o desfolhar episódico e apressado à consulta atenta e reiterada. Tais encontros deram-se ao longo de toda a sua vida, mas predominaram na juventude, na fase por assim dizer preparatória, e na maturidade, pelos anos em que a especulação teológica e a investigação histórica o atraíram com mais intensidade.

No período de formação, da precoce meninice ao doutoramento utriusque juris em Altdorf, em Novembro de 1666, aos 23 anos, os seus olhos de insaciável leitor pousaram sobre variadas páginas de autoria portuguesa.

A dar crédito à autobiografia breviter delineata, o primeiro encontro deu-se na adolescência, pelos doze anos, ao abordar o estudo da Filosofia. Iniciou-se com a Escolástica, lendo com delícia, como ele próprio declara, Zabarella, Pedro da Fonseca e outros escolásticos, e com tais progressos que ao cabo de pouco tempo já lia correntemente Suárez, isto é, as Disputationes Metaphysicae, como se fora um romance.

Não disse Leibniz que livros do Aristóteles conimbricense estudara, mas temos por certo que foram as Institutiones dialecticarum, sobre cujas páginas se debruçaram muitíssimos bacharelandos de Lógica, à cabeça dos quais Descartes. É possível que conjuntamente tivesse tido o primeiro contato com os comentadores do Curso Conimbricense, dado que as Institutiones dialecticarum foram por vezes antepostas no vol. I do comentário de Pedro da Fonseca à Metafísica de Aristóteles.

É possível, repetimos, não apenas por esta circunstância, como pelo facto do Curso Conimbricense, e em geral, os escolásticos peninsulares, haverem usufruído larga voga e prestígio na Alemanha do século XVII; mas se a leitura se não verificou então, deu-se seguramente pouco depois, em 1663, quando redigiu a tese De principio individui.

A partir de então, os comentários dos Conimbricenses, como, de modo geral, os escolásticos peninsulares, principalmente Suárez, são  frequentemente citados, quer para corroborar opiniões, quer mesmo para os criticar, como na teoria das proposições reflexivas, proposta no comentário ao Peri Hermeneias para designar a falsidade simultânea de duas contraditórias, e que Leibniz considerava ambíguas.

 Se a todos os Conimbricenses prestou atenção, nenhum igualou Pedro da Fonseca na sua estimativa. Nas Institutiones dialecticarum do Aristóteles Conimbricense, aprendeu, como dissemos, os rudimentos da Lógica, e quando deu ao prelo em 1670, aos vinte e quatro anos, a Dissertatio de stilo philosophico Marii Nizolii indicava-o entre os grandes tratadistas da Metafísica, embora mais tarde, em 1709, lhe censurasse a falta de sistematização.

Na frequentação do Leibniz com os escolásticos não é possível isolar a parte que pertence aos comentários dos Conimbricenses nas “belas e importantes verdades” que o inquiridor da perennis quaedam philosophia avistava na filosofia de irlandeses e de hispanos, como ouro oculto in stercore.

O seu génio fulgurante, que repensava como próprio o pensamento alheio e dele extraía originalmente correlações e consequências despercebidas, não tolera que se lhe interpretem as leituras no vulgar sentido das influências normativas; não obstante, temos por eminentemente provável a influição das Instituições Dialécticas, de Pedro da Fonseca, na génese do profundo conhecimento e da admiração de Leibniz pela silogística tradicional. As conceções do teórico da Speciosa generalis e da Mathesis universalis radicam, segundo parece, nas suas próprias invenções lógico-matemáticas. São originais, no denso sentido da palavra, mas antes de as haver formulado, ou talvez mais exatamente, de lhes haver apontado a estrutura e o sentido, Leibniz estudara a Lógica da Escola com a penetração que lhe era habitual. Jamais se lhe desvaneceu o contato que então teve com os teólogos e filósofos peninsulares da Segunda Escolástica, que empreenderam a gigantesca empresa de enfrentar a problemática suscitada pela Reforma protestante e de rejuvenescer a conceção aristotélica do mundo e da ciência, pensada para uma situação do saber diversa da modernidade. Não é possível, porventura, avaliar com segurança o alcance deste contato em quem, mais tarde, numa página dos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, afirmou que cumpria render justiça aos mais profundos escolásticos, como Suárez, que Grócio também teve em alta conta, e reconheceu que eles controverteram reflexões dignas de consideração, designadamente “sobre o contínuo, o infinito, a contingência, a realidade das abstrações, o princípio de individuação, a origem e o vazio das formas, a alma e suas faculdades, o concurso de Deus com as criaturas, etc., e até na moral, sobre a natureza da vontade e os princípios da justiça”.


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