5. Carlos Eugénio Correia da Silva

 “Enganei-me? Enganaram-se todos aqueles que me estimularam e que portanto alguma responsabilidade tiveram na orientação da minha vida?

“À luz do conceito estatolátrico e pombalino da universidade, que a Monarquia constitucional quis pôr em prática arrancando em 1857 Gomes de Brito à Universidade de Coimbra, por ser miguelista, e que a República transformou em verdadeira arma antiliberal, exigindo o atestado de republicanismo aos professores, eu nunca teria direito de entrar na universidade. Detestei a demagogia e renego a ditadura. Português de sentimento, não o sou de mentalidade. Confesso que não compreendo a universidade foco de cultura fanaticamente nacionalista; acho tão absurda a atitude mental de Treitschke ao preconizar o não--direito à vida das pequenas nações e ao teorizar o pangermanismo na sua cátedra de Heidelberg como a de Victor Bérard ao escrever um livro: Un mensonge de la science allemande.

“Se nos lembrarmos porém de que a ciência e a arte não têm pátria (o que não quer dizer que o homem de estudo não deva amar a sua pátria), se nos lembrarmos de que a Grécia perdura exatamente pelo que teve de cosmopolita, de que a única coisa que vingou do romantismo foi a universalidade estética de Goethe e de Chateaubriand e o cosmopolitismo de Madame de Staël, se não confundirmos a nobre ideia de liberdade com a defesa exclusivista de interesses transitórios (coisa que eu não perdoo à hipocrisia da Inglaterra e da França durante a guerra), então talvez eu tivesse direito a um pequenino e modesto lugar na universidade portuguesa.

“Tinha-o talvez pela dupla herança de cultura que em mim se acumulara e de que V. Exa. viu uma imagem na rica biblioteca da nossa velha casa da Rua de São Ciro: a cultura geral, herdada, por meu Pai, dos homens públicos do constitucionalismo; a cultura clássica, herdada por minha Mãe, de meu bisavô, o latinista Filipe Belford. Tinha-o ainda mais pela avidez de saber que sempre me caracterizou desde o dia em que, ao fazer dez anos, pedi que me dessem como únicos presentes um queijo flamengo e uma gramática até o dia em que, proibido de estudar e amarrado ao leito dum Sanatório, exprimi a minha ânsia de infinito numa dúzia de sonetos cerebrais. Tinha-o talvez ainda mais pela formação humanística que recebera em Friburgo do para mim inesquecível Padre Charpine e pela aplicação que, uma vez chegado a Lisboa, pusera ao estudo da filologia, ciência então nova para mim

Tinha-o pelo meu curriculum vitae de estudante em que em vinte e seis cadeiras tivera vinte e quatro distinções e dois quinze, e pela formatura que coroara o meu curso. Tinha-o pelo trabalho constante e pela minha atitude mental e moral que V. Exa. teve o condão de compreender desde a primeira hora, atitude feita de amor ao estudo, isto é, de recolhimento científico, de desinteresse, de incapacidade para a vida prática, de alheamento completo da política, dos negócios, das intrigas e mesmo quase dos divertimentos, numa palavra, de alheamento completo das realidades inferiores a que Platão chamara sombras. Tinha-o talvez ainda pelas minhas existentes ou inexistentes qualidades de expositor e de argumentador.

“Há talvez farisaísmo ou vaidade no que acabo de escrever. Se há, é vaidade de náufrago. Comparo hoje o meu caso aos dos defensores de Cápua que se suicidaram todos ao verem-se abandonados por Aníbal e cercados pelos Romanos e em cuja boca Tito-Lívio põe esta frase linda: 'Aníbal há de saber que atraiçoou aliados valentes' (Et Hannibal sciet fortes socios a se proditos esse). Aliás digo hoje de mim por necessidade, porque o pulmão direito e a pleura atraiçoaram o cérebro, o que os outros já tinham dito de mim, os lentes de Lisboa e V. Exa. em carta não confidencial ao Dr. Ladislau Patrício.           

“8 de Abril.

“Então, como o cérebro ainda está cheio de vida, encaro diante de mim cinco hipóteses:         

“1.ª) Hipótese ideal: ao sair do Sanatório em 1932, sem transtorno algum anterior para a Faculdade de Coimbra, encontro na Lusa Atenas um lugarzinho de assistente de Clássica (V. Exa. sabe muito bem — e nisso decerto eu não sou ambicioso — que prefiro ser assistente em Coimbra a ser lente catedrático em Lisboa; talvez o possa dizer — deixo ao seu critério —, ao Dr. Simões Ventura, embora evidentemente não lhe possa dizer o motivo confidencial em que isso assenta). E, enfim, no caso de não haver vagas em Clássica (não falaria nisto se V. Exa. não mo tivesse sugerido em conversa), talvez a Faculdade de Coimbra não se deslustrasse, confiando a cadeira de Estudos Camonianos (que Lisboa já tem e Coimbra ainda não) ao autor do Ensaio sobre os Latinismos d'Os Lusíadas. Solução provisória, evidentemente, à espera de haver concursos para assistente em Clássica. Uma cadeira dessas in perpetuum dá este resultado: o professor estraga a cadeira, dando-lhe um aspeto unilateral; a cadeira estraga o professor, confinando-o, na erudição pura, sem significado profundo, sem sistematização científica, sem finalidade superior.

“2.ª hipótese). Neste ano e meio fecham-se todas as vagas possíveis em Coimbra. Então nessa hora e só então eu teria o direito moral de aparecer em Lisboa, onde, como não há fome que não dê em fartura, há já hoje duas vagas em Clássica 1.1.

“3.ª hipótese). Fecha-se Coimbra, fecha-se Lisboa. Resta-me ainda dentro do ensino universitário uma solução que me sorriu vagamente nos dias que antecederam a minha tuberculose e em que vi Lisboa fechar-se: ser professor de universidade no estrangeiro. Solução que o Dr. Paul outro dia me sugeriu ao ver-me muito desanimado. Solução fantástica, pois a universidade estrangeira que mais facilmente me abriria as suas portas, a de Friburgo, está fechada para mim, pois o clima humidíssimo de Friburgo, de inverno um nevoeiro permanente, terra exposta aos ventos do Jura e dos Alpes, é contraindicado para um tuberculoso.

“4.ª hipótese). Ser professor de liceu? Para ser efetivo, teria de ser de novo aluno duma das faculdades, o que é ilógico, pois de ambas já fui assistente, pelo menos virtualmente; teria de passar como examinando as provas que em Maio último passei como examinador diante de V. Exa., o que também é ilógico. Mas, mesmo que isso se não desse, há em mim uma repugnância invencível, quase psicopática, pela vida de professor de liceu; um lunático, alheio à vida prática, não pode ensinar meninos desatentos; um ano de experiência, como professor de alemão no Colégio Vasco da Gama, exacerbou ainda mais a minha antiga repugnância; as explicações a alunos de faculdade interessavam-me, as explicações a alunos do liceu esgotavam e estiolavam-me. E, afora tudo o mais, não seria triste ver enterrar-se na vida de professor de liceu, a ensinar o rosa, rosae e umas fabulazinhas de Pedro e a estupidez ensossa do Cornélio Nepos, um rapaz com a escola humanística do Padre Charpine, com a escola filológica de Leite de Vasconcelos e José Joaquim Nunes, com o conhecimento construtivo do latim, o conhecimento razoável do grego e já um pouco de sânscrito, com o conhecimento do alemão, língua tão importante nos estudos filológicos, com uma razoavelzita cultura geral e uma preparação profissional imperfeita mas séria?

 “5.ª hipótese). Posta de parte esta hipótese, que me repugna radicalmente, que fazer? Nem eu sei bem... Talvez empregar-me em casas comerciais, que precisassem dum tradutor de alemão; faria esse trabalho por dever de ofício, sentado a uma secretária, sem cansar a laringe com garotos desatentos; e consagraria as minhas horas de ócio à filologia, como Gonçalves Viana, e à literatura, como Cesário Verde. Agrada-me mais ir como recebedor de finanças ou qualquer outra coisa para uma ilha quase deserta, longe de todo o bulício, onde poderia dizer como o epitáfio grego: `O tu que passas, não perturbes o meu silêncio e a minha sombra!' Seria Porto Santo, já que não pode ser o Corvo, por causa da humidade. Isto parece fantasia, mas olhe, em 1925 — era meu Pai ministro das Colónias, e eu aluno do 1.0 ano da faculdade—, apareceu num jornal um artigo sobre o Corvo; meu Pai comentou: `O Carlos Eugénio tinha feitio para viver numa ilha assim'.


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Vamos corrigir esse problema