Saber e filosofar

Sob certo ponto de vista, a marcha do saber exato apresenta-se sob o aspecto de uma caminhada que partiu inicialmente dos descobrimentos matemáticos dos Pitagóricos e progressivamente atingiu o mundo dos seres físicos, dos entes sensíveis e, de algum modo, das criações humanas, embora estas não hajam tido ainda o seu Arquimedes nem o seu Galileu, se é que os podem vir a ter. Contrariamente a esta marcha, levada a cabo tanto na ordem da extensão como na da profundidade dos conhecimentos, o saber filosófico aparece como um saber cujo âmbito se tem reduzido progressivamente, por forma que não falta quem pense que o saber filosófico é uma espécie de saber que pode um dia vir a ser, mas ainda não é saber científico. Sempre que se delimita um sector da realidade pensável e se aborda com a metodologia adequada, surge uma ciência nova arrancada à temática da Filosofia —, tal como aconteceu, sucessivamente, na sequência da respectiva constituição, primeiramente com a Matemática e depois, por exemplo, com a Física, a Química, a Lógica e a Sociologia.

Segundo esta maneira de ver, assaz generalizada entre nós, o objecto do filosofar é um objecto fluido, sem consistência; quando se compara aos objectos do saber científico, a Ciência aparece como uma esfera crescente de conhecimentos exatos, enquanto a Filosofia se pode representar por uma esfera minguante de discorrências verosímeis, que um dia se anulará completamente por falta de objecto.

Subjaz nesta maneira de ver a concepção da existência real de dois processos afins e de inelutável marcha histórica: um, de desintegração do objecto da Filosofia como explicação total da realidade pensável, graças ao qual se foram constituindo à custa da Filosofia os saberes especializados das ciências actuais; outro, de cientificação crescente do pensamento, graças ao qual a Filosofia deveria tornar-se uma ciência particular exacta, tendo por objecto o significado e o valor implícitos em qualquer campo de conhecimentos.

É óbvio que esta maneira de ver assenta na noção de Filosofia como explicação total e tem principalmente presente a desenvolução, realmente instrutiva e de significado profundo, da filosofia helénica; no entanto, se se admitir que a Filosofia não consiste propriamente na explicação total mas na problematização e teorização de tendência, pelo menos, unitária, quando não sistemática, suscitadas uma e outra pela situação do saber científico e pelas instâncias da nossa existência como seres naturais, morais e sociais, não é menos óbvio que a relação do saber e do filosofar comporta uma solução diferente.

Abstraindo das implicações de qualquer ponto de vista particular, podem considerar-se em geral três soluções para o problema das relações do saber e do filosofar: o filosofar contém o saber como o género a espécie; o saber exclui o filosofar como atividade que se constitui com objecto e método próprios; o filosofar e o saber coexistem com domínios próprios.

Consideremos separadamente cada uma destas concepções.

A segunda e terceira das aporias do livro beta da Metafísica de Aristóteles propõem os problemas de saber se há ou não uma ciência cujos princípios sejam comuns à diversidade das investigações em função da diversidade dos objectos e se existe ou não autonomamente uma ciência do ser enquanto ser e se as ciências particulares podem ou não considerar-se espécies de um único género.

Como autênticas aporias, o seu esclarecimento comporta uma tese e uma antítese, encontrando Aristóteles a solução (livro gamma, 3) na necessidade da existência de uma ciência “in-condicionada e necessária”, que outra não é que a ciência dos primeiros princípios universais de todo o conhecimento e de todos os objectos de todas as ciências.

O Estagirita reconheceu a existência das ciências diversas, isto é, para empregar terminologia aristotélica, a existência de ciências de géneros, constituídas pelas propriedades privativas de cada género, mas a par deste conceito, que é coerente com a tendência do seu espírito para o particular empírico, afirma-se com não menos vigor a tendência oposta, que se exprime no conceito de que “a ciência é do geral” (Anal. post., I). Há assim, como tem sido reconhecido, uma dificuldade, senão antinomia, no íntimo da concepção aristotélica do saber; não obstante, pode dizer-se que a “teoria” própria do filósofo é a ciência propriamente dita, isto é, a ciência dos primeiros princípios e que respeita ao necessário e eterno. O seu problema capital consiste em indagar o que faz com que um ser seja o que é, uma estátua, uma estátua, um cavalo, um cavalo, desdobrando-se a indagação em duas inquirições que se implicam: a de saber o que é o ser como ser, isto é, originariamente, e o ser como individuado em entes, isto é, derivado. O ponto de vista do filósofo é diferente do do físico: este procura conhecer os entes decompondo os elementos que os constituem, enquanto o filósofo faz ontologia, isto é, procura saber o que é o ser enquanto ser, isto é, o que é comum a todos os seres, sensíveis e incorpóreos, corruptíveis e incorruptíveis, ou como disse Pedro da Fonseca no comentário do Alfa maiúsculo da Metafísica, o conhecimento do que não consta da matéria nem em matéria se resolve e é atribuível a coisas diversas.

Saber este saber é resolver o dilema posto pela individuação concreta dos seres e pela estrutura universal do conhecimento científico: ou o objecto concreto é objecto de ciência, e então é universal, ou é exclusivamente sensível e individuado, e então não é objecto de ciência. Por isso, somente este saber realiza as condições do saber perfeito, as quais são dadas pelo concurso da inteligibilidade e absoluta certeza dos princípios fundamentais, pela universalidade da aplicação e pela dedução rigorosa. Saber pelas causas, isto é, explicar pela razão de ser e por dedução rigorosa, torna-se paradigma do verdadeiro saber, pelo que se pode dizer que para Aristóteles não há propriamente distinção entre o saber filosófico e o saber científico perfeito, isto é, o saber que respeita à teoria e não à acção ou à utilidade prática, embora o Estagirita haja empreendido o estudo da Botânica e da Zoologia indutivamente e com reconhecimento do valor da descrição.

A concepção aristotélica é coerente com a noção de Ciência como visão total de um universo concluso e de curvatura finita, isto é, Cosmos. Saber torna-se sinónimo de sistematizar em sentido vertical, e saber filosoficamente equivale a interpretar de maneira unitária e mediante conceitos todas as manifestações da realidade.

Daí, o duplo destino desta concepção: por um lado, a persistência do ideal em que assenta, e por outro, o seu eclipse, pelo aparecimento de ciências particulares e autónomas, mediante as quais se manifesta a complexa variedade do ser real e se afirma a inconsistência do sistematismo metafísico.

A constituição das ciências particulares, acompanhada do correlativo desenvolvimento dos conhecimentos em extensão, profundidade e fecundidade prática, o qual modificou a morfologia do conviver social, deu ensejo à atitude que encontrou no positivismo a sua adequada expressão; e a concepção da Filosofia como sistema que engloba o saber científico surgiu com novas articulações, das quais baste tão somente aludir às de Descartes e de Hegel.


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