Saber e filosofar

A constância da problemática filosófica não significa, porém, que o filósofo esteja condenado a ser repetidor de pensamentos alheios. O sábio não deixa de ser sábio quando prossegue na linha de investigações iniciadas por outrem, porque a Ciência se constitui essencialmente como adição e coordenação impessoal de observações e de demonstrações, mas o filósofo, se assim proceder, deixa de o ser, abdicando a qualidade exigente de pensador na de discípulo, de exegeta ou de comentador.

É que ao filósofo está vedado aceitar seja o que for, temas, problemas, métodos, soluções, etc., sem prévia reflexão crítica. Não carece de ser descobridor de problemas inéditos nem de soluções jamais apercebidas, e até se torna indigno se disfarçar o que deve a outrem e der mostra de aviltar a escrupulosidade do pensamento com lantejoulas de efeito vistoso e presumido. Não é, porém, filósofo se não redescobrir por si a instância e razão de ser dos problemas, se os não repensar com o suor do seu rosto e não incutir o alento vital da própria individualidade na proposição ou na desenvolução do que por essência é universal e afecta o ser humano considerado em geral.

Ë que o filosofar consiste essencialmente em problematizar em ordem a resultados logicamente coerentes e racionalmente consistentes, isto é, que estejam em razão suficiente com os demais conhecimentos ou em discurso coerente com a temática sobre que se problematiza, dado que se não problematiza por problematizar mas para atingir uma visão unitária e compreensiva. Daqui, por um lado, a existência de tantas filosofias quantas as séries de problemas conexos a que cada uma responde e, por outro, a temporalidade das soluções filosóficas, pelo menos no que respeita à conexão com o saber exato, pois variando este em extensão, em profundidade e em significação variará necessariamente a razão suficiente em que se fundam as generalizações de índole filosófica.

Por isso, os sistemas filosóficos se tornam anacrónicos, isto é, inadequados à realidade que pretendem teorizar, quando as bases que estabelecem ou de que partem deixam de ser coerentes com o saber exato e actual; por isso, Bacon sentiu a exigência racional de um Novum Organon coerente com a scienza nuova que alvorecia e numerosos lógicos contemporâneos se esforçam por estabelecer a formalização do Novissimum Organon coerente com os progressos das Matemáticas e das Ciências exactas, e com os novos conceitos da Física; e por isso ainda, Dilthey, não som acerto, justificou a ideia de uma “Filosofia das filosofias”, à primeira vista paradoxal mas no fundo penetrante e significativa, na medida em que ela exprime a mutabilidade das concepções filosóficas em contraste com a sempre viva exigência de integração e convergência dos conhecimentos e das aspirações da consciência.

Resumindo, pode dizer-se que tudo o que é explicável pela metodológica científica e pelo cálculo matemático está fora do campo imediato do filosofar, como domínio próprio do saber. Se se disser que o saber implica um sistema de observações e de demonstrações verificáveis, poderá dizer-se que o filosofar implica senão um sistema, pelo menos uma visão convergente de interpretações coerentes e plausíveis.

Os caminhos do filosofar não conduzem, pois, à explicação exacta do que as coisas são nem como são; porém, somente pelo filosofar é possível mostrar o significado do saber e insinuar porque se dão conhecimentos cientificamente exatos, formar a imagem do Mundo coerente com as conexões, convergências, significações e possibilidades prospectivas do saber científico, esclarecer o significado e valia da existência humana e dar a cada um as razões de assentir do que transcende a experiência imediata e direta.

Somente pelo filosofar, ou mais precisamente pelo apelo da problematicidade insatisfeita, se debilita a tendência à coisificação dos conhecimentos e à regulamentação prescribente da atividade espiritual, da qual Comte deu exemplo de “significação algo sinistra”, no justo dizer de Meyerson, naqueles períodos do Curso de Filosofia Positiva em que consignou a interdição de certas investigações, designadamente sobre a constituição química dos astros, e de observações microscópicas, visto o microscópio ser a seu juízo um instrumento ao qual se concedia um “crédito exagerado”.

Assim considerado, o filosofar não tem, em rigor, objecto próprio e definido, pois a instância teorética tanto pode incidir sobre o ser do Mundo, como sobre o conhecer da Razão e o valor da Vida ou sobre todos estes objectos numa visão completiva e sistemática, o que hoje se afigura, senão impossível, pelo menos muito improvável, à maneira de Leibniz, dada a quase impossibilidade da mesma mente ter vida e capacidade para abranger o imenso conjunto dos actuais saberes cientificamente especializados.

A marcha do filosofar é uma escalada de dificuldades que a razão põe a si mesma, e escalada árdua, de riscos que põem em perigo as constantes da ipsidade de cada um e de resultados inverificáveis mas exigentíssimos, cujos pontos de apoio têm de ser actuais, actualizados e actualizantes; e porque brota das problematizações que irrompem da mente e da consciência de cada um, tem por objecto a teorização, intrínseca e necessariamente metafísica, do fundamento, do significado ou do valor do que se problematiza.

Como expressão profunda da cultura humana, essencialmente instável e sempre em crise, isto é, jamais definitiva e conclusa, os resultados do filosofar são intrinsecamente vulneráveis, ou talvez mais propriamente, diversamente condicionados pela polaridade objectiva do

ser e pela polaridade subjectiva do conhecer, as quais variam com a situação do saber exato, que se pode representar como série crescente de verdades, e com o ponto de partida de quem empreende o esclarecimento de problemas; mas, sem as audácias e desânimos da razão que filosofa, o Homem não alcança a consciência clara e plena de si mesmo, do que o cerca e do que garante e dá sentido à sua atividade e às criações que ele acrescenta à Natureza bruta e indiferente. 


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