1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

O apelo foi prontamente ouvido, porque era esperado e desejado.

Gaspar Teixeira, que mais tarde D. Miguel honrou com o título de visconde do Peso da Régua, respondeu logo, corroborando a indignação do exército ao verificar que as instruções eleitorais não só desatendiam a indicação da lei eleitoral espanhola, como ordenavam um sistema, pelo qual a Nação não era plena e livremente representada, e se não remediavam peitas e subornos. «Numa palavra, teríamos uma constituição em tudo e por tudo ministerial». Por tudo isto, rogava ao Juiz do Povo e ao seu escrivão que comparecessem pelas onze horas da manhã, do mesmo dia 11, no Paço do Governo, onde, juntamente com os representantes do exército, se procederia por forma que se fizesse «suprimir imediatamente essas parciais instruções e imediatamente se mande publicar o método espanhol, conforme a expressa vontade geral».

Gaspar Teixeira respondera com rápido desembaraço e indicações precisas, o que não admira, porque à autoridade do cargo acrescia a existência de um plano de ação previamente combinado. Por seu mandado, na noite de 10 para 11 o ajudante geral do exército percorrera os comandos da capital para que estivessem de sobreaviso, e na manhã de 11 as forças do exército do norte recebiam ordem de se postarem nas praças principais, como o Terreiro do Paço, Rossio, Praça da Alegria, etc. A artilharia, colocada no Rossio, tinha as peças apontadas para as ruas principais, notadamente para o Terreiro do Paço, e as forças do exército do sul ficaram de prevenção nos quartéis. O aparato e a disposição da força pública anunciavam a coação, e com efeito Gaspar Teixeira, acompanhado de uma deputação de oficiais e do Juiz do Povo e seu escrivão, dirigiu-se para a sala das sessões do Governo Provisional, onde os ministros estavam reunidos, para lhes apresentar as resoluções da conferência militar, realizada pouco antes.

Era um ultimato ao governo, no qual a tropa impunha:

1.°) Que se jurasse a Constituição espanhola. A Constituição de Cádiz seria lei até à convocação das Cortes, cujos deputados, em número não inferior a cem, deveriam ser eleitos pelo método que ela determinava e lhe «fariam as modificações que fossem convenientes, não sendo jamais para nos tornarmos menos liberais»;          

2.°) Que os ministros do Reino, Guerra e Marinha, Estrangeiros e Fazenda, só tivessem voto nos negócios das respetivas repartições, porém sem fazerem provimento, «nem qualquer outra coisa sem a decisão do governo», nem acumularem outro ramo público;      

3.°) Que se aumentasse de quatro membros o governo, os quais seriam o conde de Sampaio, Pedro Leite Pereira de Melo, José Manuel Ferreira de Sousa e Castro, e Francisco de Sousa Cirne de Madureira;      

4.°) Que o comando de toda a força armada do reino fosse entregue a Gaspar Teixeira.            

Ignora-se o que se passou nos Paços do Governo; é possível que a toga houvesse vindicado o direito e a prudência contra as imposições e desacertos da farda, mas, impotente, teve de ceder, sagrando com o juramento a promessa de as cumprir. Os ministros civilistas, como Fernandes Tomás, eram publicamente humilhados; mas transigindo, não respondendo à afronta com a demissão, impediram que a espada substituísse totalmente a vara do magistrado e a ordem castrense esmagasse politicamente, à nascença, a soberania da Nação, desiderato supremo.

Vencendo os impulsos do orgulho e recalcando a afronta, sacrificaram a altivez pessoal ao dever público, e por uma destas mutações frequentes na vida política a breve trecho a opinião transfigurava-os de vítimas em heróis. Compreende-se. O pronunciamento nascera da união passageira de duas forças antagónicas: o liberalismo exaltado, e o conservantismo militarista, aquele representado por Bernardo de Sá Nogueira, este por Teles Jordão. Coincidiram apenas na hostilidade ao governo. Tudo o mais os afastava; por isso a partir do momento em que viram satisfeitas as suas reclamações — os liberais, a revogação das instruções eleitorais e a adoção da lei espanhola; os conservadores, a restrição da atividade ministerial e a humilhação de Fernandes Tomás —, separaram-se, para recomeçarem a eterna luta da liberdade e da autoridade, que enche quase toda a história humana. Na fase preparatória do movimento tiveram os liberais o comando; mas, deflagrado e vitorioso, ambicionaram os conservadores e militaristas arrebatar-lhes o domínio dos acontecimentos. Conseguiram-no; a vitória de facto, porém, trouxe-lhes a derrota política, porque a opinião, reagindo pela rarefação e pela inércia, significou claramente que preferia os desmandos apaixonados da liberdade ao jugo ordeiro da oligarquia militar.

A oposição de liberais e militaristas, da revolução e da contrarrevolução, foi consecutiva ao juramento dos ministros. Deflagrou-a um ligeiro incidente.

Após a conferência militar, enquanto Gaspar Teixeira subia aos Paços do Governo e a oficialidade se reunia aos respetivos corpos, o brigadeiro Sepúlveda, protagonista audaz do 24 de Agosto, retomou o comando da divisão ligeira, postada no Terreiro do Paço, e ordenou uma manobra, que Gaspar Teixeira considerou hostil. Este tomou imediatas precauções. Mandou vigiar Sepúlveda e ordenou o transporte de pólvora para o Castelo; e o brigadeiro Cabreira, levando mais longe as precauções, deu ordem aos artilheiros para carregarem as peças a bala e metralha, assestarem-nas contra as principais ruas da Baixa e acenderem os murrões.

Os efeitos morais do espetáculo bélico foram extraordinários e diversos; por um lado, sobressaltou a população civil, por outro, encorajou o partido militarista, e em especial o seu chefe, António da Silveira, vice-presidente do governo. Vencido no Porto, em Alcobaça, em Sacavém, Silveira acreditou ter soado a hora da desforra, e não contente com a humilhação infligida aos ministros liberais quis a demissão deles. Dois dias depois do pronunciamento propôs em conselho de ministros que se autorizasse a publicação de um periódico, proibida pela censura, no qual se insinuavam calúnias contra certos membros do governo, por demais adversários do movimento triunfante. O periódico não nomeava os ministros; era, porém, manifesto que visava Fernandes Tomás, Hermano José Braamcamp do Sobral, Frei Francisco de São Luís e José Joaquim Ferreira de Moura, os quais, em face da conduta de Silveira votaram a publicação do periódico, ao que a maioria não se associou, e pediram a demissão.

Pela sua constituição e pelos compromissos assumidos, o governo não se julgou competente nem para a aceitar, nem para a recusar, e resolveu a dificuldade colocando-os na situação de ministros sem pasta e confiando a secretaria do Reino a Sousa e Castro, a da Fazenda ao conde de Sampaio e a dos Estrangeiros a António da Silveira. Praticamente, a solução equivalia á demissão e à vitória da orientação política contrarrevolucionária.

Ao tornar-se pública, o sobressalto da opinião civil volveu-se em indignação, e a indignação em campanha de murmúrios, boatos e por fim nos artigos dos jornais, que com veemência criticaram os sucessos do dia 11 e atacaram o Juiz do Povo, a quem contestavam a autoridade e direito para representar a vontade nacional.


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