Oróbio de Castro

Bastaria este relato, quando outros testemunhos não existissem, para penetrarmos na trágica cissura moral, quando não duplicidade, em que se decompôs a consciência íntima dos marranos, assim como para se nos tornar compreensível a vigilância ortodoxa da Sinagoga contra as interpretações da ignorância e do personalismo autodidata. Oróbio de Castro, porém, foi mais do que observador da consciência religiosa dos emigrados, porque além de descrever e denunciar os germes da heterodoxia, procurou atalhá-los e extirpá-los com o rancor próprio do converso.

A crítica da tradição e do farisaísmo, no seio da comunidade de Amesterdão, eclodiu em três momentos, cada um de valor diverso, mas ligados entre si pelo sentimento de confiança na razão: Uriel da Costa, Juan (Daniel) do Prado, e Baruch de Espinosa.

Contra os dois últimos se ergueu Oróbio de Castro; quando Uriel da Costa, em 1616, lançou as Propostas contra a Tradição, ainda Oróbio não havia nascido, e quando anos depois, em 1624, o mesmo mísero revoltado publicou o Examen das tradiçoens Phariseas conferidas com a Ley escrita por Uriel Jurista Hebreo com resposta a hum Semuel da Silva, seu falso calumniador, era menino de colo.

Oróbio não conheceu, pois, Uriel da Costa; porém a ironia do remonstrante Filipe Limborck ligou indissoluvelmente os nomes de um e de outro, ao associar na mesma apologia do Cristianismo a censura anticristã de Oróbio e a diatribe antijudaica de Uriel, no De veritate Religionis Christianae. Amica Collatio cum Erudito Judaeo (Guda, 1687). O Judeu erudito é Oróbio, sendo neste livro que pela primeira vez viu a luz da publicidade o Exemplar Vitae Humanae, trágico e vingativo testamento de lidei.

Mas se Oróbio não lidou com o homem, conheceu-lhe a doutrina, e contra os que a continuaram, pelo menos na oposição e na crítica ao rigorismo estreito da Sinagoga, se ergueu como polemista intransigente e aguerrido, primeiro contra Juan do Prado, depois contra o espinosismo.

Juan (Daniel) do Prado foi um marrano espanhol, nascido talvez em 1615 e falecido porventura em Amesterdão, em 4 de Fevereiro de 1663. Da sua vida e ideias quase tudo se ignora; sabe-se, porém, que viveu em Amesterdão, e pelas suas opiniões heterodoxas foi posto em herem em 1656, isto é, apartado da judiaria de Amesterdão, por «aver reensedido em suas mas e falsas opinioins contra nosa St. Ley e seducio com elas a alguns mansebos estudantes».

Cabe ao Dr. Carl Gebhrardt, duca e maestro do movimento espinosano do nosso século, cuja amizade recordo saudosamente, o mérito de haver provado que Baruch de Espinosa fora um dos «mancebos estudantes» seduzidos pelas «falsas opinioins» de Juan do Prado. A prova afigura-se-nos irrefragável; não assim a hipótese que o engenho de Gebhrardt sobre ela construiu, ao procurar a nascente do espinosismo no esforço crítico e na libertação racional que Uriel da Costa iniciou e parece ter crescido com Juan do Prado. Depois de tantas e tão variadas opiniões sobre a origem remota do espinosismo, como a filiação cartesiana (Leibniz, Hegel), a teologia judaica, assim medieval (Joel) como quinhentista (Dunin-Borkowsky, Solmi, a escolástica contemporânea (Freudenthal), a filosofia da Renascença, em especial de Giordano Bruno (Sigwart), o movimento político e teológico da Holanda do seu tempo (Meinsma), a hipótese de Gebhrardt, embora possua indiscutivelmente o encanto da novidade, carece de amplitude explicativa. Existe, sem dúvida, um fio de continuidade entre Prado e Espinosa, cabendo a Gebhrardt o mérito de o haver descoberto na diatribe de Oróbio intitulada Epistola Invectiva contra Prado un Philosopho medico, que dudava, e no crehia la verdad de la divina Escritura, y pretendió encubrir su malicia con la affecta confession de Dios, y Ley de Naturaleza.

Baste, para prova, o seguinte passo da Epistola Invectiva:

«Assi el Philosopho ignorante, como los que le comunicavan affectuosos, y todo este miserable precipicio tubo su origen en la ignorancia de un estudiante Medico cuya soberbia no permitió el divino antidoto de la doctrina de nuestros sabios, y Doctores antiguos, y prezentes. Y porque une con grandíssimo escandalo de nuestra nacion llegó a su extrema reina por estos passos, y contagió a otros, que fuera de Judaismo le an dado credito a sus necios sophismas, me pareció cosa necessaria y aceptable à los pios impugnar aquellas opiniones que su malicia procuró introduzir en los animos de los simples respondiendo a las propusiciones que propone con pretexto de dudas».

Com efeito, quem pode ser, senão Espinosa, aquele heresiarca que «con grandissimo escandalo de nuestra nacion llegó a su extrema ruína por otros passos, y contagió a otros, que fuera de Judaismo le an dado credito a sus necios sophismas? »

A relação entre Prado e Espinosa é manifesta, e como contraprova da Epístola o Dr. Gebhrardt invoca vários factos, designadamente o testemunho de Daniel Levi de Barrios, na Corona de la Ley, já citado: «Espinos son los que en Prados de impiedad, dessean luzir con el fuego que los consume; y llama es el zelo de Mortera que arde en la çarça dela Religion por no apagarse».

A relação de continuidade, porém, sendo real, não é clara nem distinta, isto é, não podemos traçar-lhe com segurança os contornos e feições. Cumpria conhecer-se com individuação o pensamento de Juan do Prado, e a verdade é que sabemos apenas o pouquíssimo que por contraste ressalta da Epístola de Oróbio. Pode dizer-se, com Gebhrardt, que Prado admitira a existência de uma «Ley de Naturaleza» e de um critério da verdade, segundo o qual cada um «deve governarse por lo que le dieta su entender»; é possível, porém, filiar nestas vagas opiniões a identidade espinosana das leges naturae e dosdecreta Dei, do Tratado Teológico-Político, a conceção de Deus sive natura, da Ética e da clara ratio infallibilis, também da Ética?

A Epístola Invectiva não autoriza, pois, a que consideremos o espinosismo herdeiro e continuador do pensamento de Juan do Prado, embora entre os dois dissidentes da Sinagoga houvesse comunidade de índole e de autonomia crítica.

Como Samuel da Silva, com o Tratado da Imortalidade, no caso de Uriel da Costa, Oróbio de Castro, com a Epístola Invectiva, foi o defensor da ortodoxia e o polemista decidido e intransigente. O paralelo não significa, porém, que Oróbio limitasse o apostolado de controversista à diatribe contra Prado, pois no seu tempo a Sinagoga de Amesterdão não teve quem se lhe comparasse no zelo ortodoxo e no furor anticristão. Durante pouco mais de vinte anos, da circuncisão à morte, a sua pena não teve um momento de descanso: discute com Protestantes e Católicos, defende a tradição israelita, comenta e explica profetas bíblicos, denuncia Juan do Prado como responsável da «sofística» espinosana. Oróbio fora contemporâneo de Espinosa; no entanto nada escreveu contra ele, diretamente, durante a vida do filósofo. Compreende-se. Os termos fulminantes da condenação de Baruch impunham a todos os judeus o silêncio sobre o réprobo e as suas doutrinas; discuti-lo em vida seria reconhecê-lo, e não cominava o herem a morte moral do homem e a interdição do seu pensamento?

Entre o epistolário de Espinosa, publicado pela primeira vez nas Opera Posthuma (1677), incorporaram os editores uma carta de Lambert de Velthuysen, de 24 de Janeiro de 1671, acerca do Tratado Teológico--Político, dirigida a um correspondente, de cujo nome se indicavam apenas as iniciais J. O. Não faltou quem lesse nestas letras o nome de Isaac Oróbio; porém sabe-se hoje com segurança, graças a uma carta de Schuller a Leibniz e sobretudo às investigações de Meinsma, que o verdadeiro destinatário da epístola de Velthuysen fora o cirurgião Jacob Osten (1625?-1678), de Utrecht, da roda dos amigos de Espinosa. Só sete anos depois da morte de Espinosa, em 1684, ousou Oróbio defrontar-se com o espinosismo. Os escrúpulos de consciência já não tinham razão de ser, tanto mais que a filosofia espinosana se tornara como que independente da mente que a cogitara; no entanto, um casuísta habilidoso talvez pudesse sustentar que Oróbio respeitava ainda a terrível sentença contra a pessoa e escritos de Espinosa, pois visava diretamente Joham Bredenburgo, pretenso espinosista. Relatemos o episódio, curioso nos incidentes e árduo pela discussão que provocou, a saber, a validade da demonstração more geometrico da essência e da existência de Deus.


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