3. Defensão do Tratado da Rumação do Globo para a arte de navegar

Quando o projeto lhe chegou às mãos, certamente em princípios de Maio, Pedro Nunes estava jubilado da sua cátedra da universidade havia três lustros (4-11-1562) e aos achaques próprios do peso de 76 anos, que tantos eram os que então levava de existência, é de crer que acrescesse o retraimento pelo desgosto de ver que o nome de sua filha D. Guiomar, a “Dama da cutilada”, andava nas bocas do mundo pelo desabrimento com que no começo do ano (17-1-1578) deixara assinalado no rosto do ex-noivo a sua indignação pelo repúdio de promessas solenemente feitas.      

Entretanto, de Roma insistiam pelo parecer, o que bem se compreende não só pela fama do nosso astrónomo como pelo facto de Cristóvão Clávio (Schlüssel) ser o mais ativo vogal da comissão nomeada pelo pontífice. De Bamberg, onde nascera em 1538, Clávio viera para Coimbra em 1556 a fim de estudar no Colégio das Artes, e embora não tivesse sido discípulo de Pedro Nunes, como é corrente dizer-se, conhecia muito bem a sua obra, que algumas vezes utilizou e sempre referiu com louvor, quando o ensejo se lhe proporcionava.              

É até possível que Clávio conjeturasse que Pedro Nunes se tivesse ocupado do problema da reforma do calendário, dadas as considerações a propósito do equinócio da primavera expostos no capítulo IV (“De Solis declinatione”) do Livro II (“De regulis et instrumentis ad uarias rerum tam maritimarum quam et caelestium apparentias deprehendendas ex Mathematicis disciplinis) do De arte atque ratione nauigandi, impresso pela primeira vez em 1566, em Basileia, na oficina Henricpetrina.

O interesse da comissão romana, ou mais propriamente de Clávio, ressalta com nitidez dos ofícios que monsenhor Roberto Fontana enviava de Lisboa ao cardeal Como. Assim, no de 3 de Agosto de 1578 informava-o de que Miguel de Moura renovara oficialmente o pedido e que ele próprio, particularmente, recorrera à intervenção de amigos para que Pedro Nunes não demorasse o parecer acerca do “compendio delia rinovazione dell'anno” — maneira de dizer significativa de que ele tinha em seu poder cópia do Compendium novae rationis restituendi Kalendarium, que a comissão redigira como base de discussão.

Advertia, porém, que a demora do sábio português, “singolarissimo in questa professione”, tinha toda a desculpa “por estar velho e enfermo”, e que o informe não era exagerado, mostrou-o o facto de Pedro Nunes exalar o derradeiro suspiro em 11 de Agosto de 1578, oito dias depois deste ofício do coletor da Nunciatura.

Impossibilitado de responder por escrito, Pedro Nunes nem por isso retraiu a sua opinião contrária ao projeto, manifestando-a a Fr. Luís de Souto Maior, que em 30 de Agosto de 1578, dezanove dias depois do falecimento do sábio, enviou para Lisboa a seguinte declaração:

“O doutor Poro Nunez cosmographo moor estando na cama muito doente pouquos dias antes que morresse, me disse por vezes que S. A. lhe mandara que visse hit certo tratado enviado pello Santo Padre de celebratione Paschaepara que scrivesse o seu parecer acerqua disto.

E que por elle estar tão doente não podia fazer isto como desejava; mas porque elle não era de parecer que se fizesse nhua mudança no Kalendario acerqua deste ponto e que era melhor proceder desta maneira que procede a igreja catholica tantos anos há que não fazer esta novidade, porque de nhua maneira se podem evitar os inconvenientes, nem as regras que o Autor do sobredito tratado daa são muito certas, antes são incertas e falsas ou falliveis, como elle determinara mostrar se não morrera tão depressa. Em fee disto asiney aqui de minha mão. Oje dia de S. Caterina martyr 1578.     

Fr. Luis de Sotto mayor

“Ecce non placet doctissimo mathematico Petro Nonio methodus Aluisii Lilii”. 

Em Lisboa, porém, admitia-se que Pedro Nunes se tivesse ocupado do assunto; assim, Miguel de Moura logo providenciou no sentido de se verificar se o sábio fizera a revisão do Compendium e monsenhor Fontana procedeu a análoga diligência por intermédio do D. Prior de Santa Cruz de Coimbra.

O exame foi oficialmente confiado a Fr. Luís de Souto Maior (1526-1610), pelo que o espólio literário de Pedro Nunes lhe foi mandado entregar, como acima dissemos. O famoso teólogo, que havia estudado em Lovaina e assistido ao Concílio de Trento, era então lente de prima de teologia (1567), de cuja dignidade e proventos foi demitido por Filipe II, por ser partidário de D. António, o Prior do Crato; o seu prestígio, que Gregário XIII confirmaria, exortando-o a dar publicidade à sua obra, a respeitabilidade do seu nome e o próprio parentesco com a família a que se ligara a filha de Pedro Nunes, D. Isabel — “meu tio” lhe chama Matias Pereira de Sampaio —, eram garantia de idoneidade como fiel depositário e examinador.

O exame foi negativo: Pedro Nunes não procedera à revisão do Compendium nove rationis restituendi Kalendarium nem tão pouco consignara por escrito a sua opinião acerca da reforma do calendário.

Os achaques da velhice impediram-no de levar a cabo a comissão oficial, mas viu o bastante para de viva voz dizer, no leito de morte, a Fr. Luís de Souto Maior, que a reforma lhe parecia inútil, por ser impossível eliminar os erros de todo e qualquer calendário, e que as regras do Compendium eram “incertas e falsas ou falliveis”.

As primeiras diligências oficiais junto de Pedro Nunes ocorreram no reinado de D. Sebastião, mas quis o destino, depois da loucura de Alcácer-Quibir, que o informe de Fr. Luís de Souto Maior, acompanhado da devolução do Compendium novae rationis restituendi Kalertdarium, fosse recebido pelo cardeal-rei D. Henrique, aclamado em 28 de Agosto de 1578. O novo monarca, inteirado do interesse de Gregório XIII pelo projeto da reforma do calendário, logo chamou a si o assunto, incumbindo de substituírem Pedro Nunes, na revisão do Com pendium, em fins de Novembro, os astrónomos Tomás Orta, que veio a ser o segundo cosmógrafo-mor do reino por nomeação de Filipe II (30-V-1582), e Manuel Mendes Vizinho, cujos pareceres diretamente remeteu ao Pontífice. 

Terminado o exame de Fr. Luís de Souto Maior procedeu João Pereira de Sampaio à restituição do espólio literário de seu sogro, guardando-o em dois caixões na sua casa de Ardazubre. Foi uma fatalidade; ignorando o valor do que possuíam, por não serem coisas de sua “profissão”, tanto ele como seu filho Matias desfalcaram pouco a pouco os “dois caixões de livros e papéis” com dádivas “às pessoas que os pediam”, a quem “muitas vezes davam as chaves dos caixões para que fossem escolher os que houvessem mister”.

Dos livros, diz Matias Pereira, que havia dado “ultimamente”, isto é, pouco antes de 1645, “a D. Vicente  duas canastra” e a D. André  alguns “outros por troca”. É possível que se tratasse de sobejos de anteriores dádivas; no entanto, se é lamentável o desinteresse que levou à dispersão e à perda do espólio, a verdade é que o fundo da livraria com que Pedro Nunes trabalhou pode ser reconstituído com alguma particularidade. Homem do seu tempo, em cuja mente, como na dos mais representativos sábios da Renascença, confluíram a retrospeção erudita e a indagação original, Pedro Nunes comprazia-se em salientar as raízes antigas de conceções modernas, em abonar com a autoridade de gregos a sua própria opinião e em pôr a nu o erro de contemporâneos relativamente às suas próprias explicações. Referiu, por isso, numerosas citações, mediante as quais é possível a reconstituição dos livros com que trabalhou, cujo catálogo dará a conhecer algumas facetas do seu espírito, alguns dos manuscritos e edições raras que utilizou, e, sobretudo a notável atualização dos seus conhecimentos.


?>
Vamos corrigir esse problema