2. Com a razão nas mãos

São assim aqueles dizeres e fazeres do Ivan de Moscovo e do César romano — tudo pelo Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado —, mas é de si claro que há razões para que tais dizeres e fazeres existam na garganta do tenor e na garra do leopardo.

Façamos uma paragem na subida da montanha, e porque as razões só se colhem mediante a sondagem dos diversos estratos espirituais do nosso tempo, prepararemos para amanhã a sonda indiscreta e reveladora. A tarde está agradável, e a natureza convida-nos a que admiremos, sobre o ritmo periódico dos dias e das noites, da luz e das trevas, o Sol que nunca se apaga e sempre aquece.

III

Os factos nunca se aprumam; permanecem sempre horizontalmente. Existem, estão e muitas vezes não são — contraste inconsútil, que em raríssimas línguas se pode dizer com verbos tão afins e só de per si revela os inviolados tesouros de expressão metafísica do nosso falar vernáculo.

É de sua natureza jazerem silenciosa e longitudinalmente, aqui e acolá, inertes e grávidos, à espera que a mente lhes desentranhe as recônditas essências e os situe nas três dimensões do comprimento, largura e altura. Sua função é dar serventia, ao pedreiro e ao arquiteto, ao sábio e ao filósofo, ao homem trivial e ao político, e como as sete notas da música e as vinte e cinco letras do alfabeto, sempre as mesmas, consentem, os grandes brutos, que os manipulemos dissonante, melódica ou sinfonicamente, com transparente sentido ou algaraviada.

Conta-se que um crítico quis vulnerar certa teoria de Hegel, objetando-lhe que os factos a contrariavam. Com lacónica e admirável simplicidade, o filósofo respondeu-lhe apenas: «Ah, sim! tanto pior para os factos.».

O que importa não são os factos, mas a maneira como se consideram os factos e o comprimento, largura e altura que se lhes confere. Por isso, Hegel teve razão, e ter razão no caso quer dizer que não devemos confundir o verbo existir com o verbo estar, e um e outro com o verbo ser.

Não há sociedade sem indivíduos, não há lei sem consciência a quem se dirija, não há Estado sem pessoas, estes são os factos grávidos e pedernais, dos quais chispam variadíssimas perguntas, designadamente estas duas mais acutilantes: o que é o indivíduo, e que relação há entre indivíduo e sociedade?

Aqui começa o ser dos factos e, como ser não é estar, responder às perguntas é inocular dos factos umas essências destiladas pelos factos, quando não são extraídas da razão. Atualmente a inoculação faz-se quase sempre pelo processo da autovacina, e preparar e injetar a vacina segregada pelos próprios factos é, simplicissimamente, o que se chama método experimental. Claro que não vamos convidar o paciente leitor a preparar a vacina, nem a descobrir a pólvora; desejaríamos apenas que visse o que pode jazer dentro — o ser — desta palavra indivíduo, e com os olhos bem fitos notasse que as visões podem incidir sobre coisas diversas, de cada uma das quais resulta necessariamente uma política diferente, tão necessariamente como quando diz que de 2 mais 2 resultam 4.

Indivíduo é uma palavra vetusta, cuja longa vida nos exibe mutações de sentido, das quais decorrem conceções diversas do homem, do convívio social e da história da humanidade. Primitivamente significou em latim o que não pode ser dividido ou separado. Assim em Séneca, o filósofo, em Cícero, os quais a empregam no sentido tradicional da palavra grega átomo.

Neste sentido, indivíduo é o elemento inseparável, atómico, de um conjunto, do qual não pode ser destacado sem destruição do conjunto.

Fixe o leitor este primeiro conceito ou ser do indivíduo, porque o vai encontrar à hora atual em conceções políticas crismadas de recentíssimas.

Se dermos umas passadas no tempo, transpondo as fronteiras do mundo antigo para o mundo medieval, encontramo-nos com outro conceito completamente diverso, o conceito formal.

Indivíduo é para o escolástico da Meia-idade, o ser último na escala lógica dos seres, isto é, aquilo que estando contido no género e na espécie possui, no entanto, caracteres privativos ou acidentais que o singularizam dentro da espécie. É que o escolástico concebeu as coisas hierarquicamente, desde o sumo ser, absolutamente geral, até ao indivíduo, relativamente particular, e foi desta cadeia lógica e formal que brotaram o substantivo individualidade e o adjetivo individual para significarem a espécie ínfima, o termo derradeiro no encadeamento das ideias e das coisas.

Mais outras passadas no tempo, e sobretudo com Leibniz metafisicamente e com os românticos pelo sentimento da vida e pela ânsia de evasão para o país distante na era ou no planeta, surge-nos o terceiro conceito, o conceito moderno. Indivíduo é então o ser isolado e único, diverso de todos os outros, e que só existe na medida em que a sua diversidade é irredutível. Pessoa, génio, microcosmos, consciência, cissura moral com o existente, mal da vida — expressões do nosso falar moderno, plenas de sentido humano, nas quais vibra a ideia de que o indivíduo não é uma molécula do mundo, mas um mundo autónomo, o ponto único onde a infinidade cósmica e da vida se torna imediatamente presente e consciente.

Destes três conceitos irrompem três respostas diversas à pergunta sobre as relações do indivíduo com a sociedade, respostas que por seu turno servem respetivamente de suporte e cibo metafísico a três políticas diferentes — absolutista, hierárquica e liberal.

Indivíduo é o que não pode ser separado do conjunto? Então é lógica a conceção orgânica para explicar as reações entre o indivíduo e a sociedade, e consequentemente a política absolutista ou transpersonalista, para empregar uma palavra de feliz importação germânica sobre a qual entreteremos noutra ocasião o leitor. Se os indivíduos, sem consistência própria, só valem como membros do conjunto, como elementos subsidiários e dependentes do corpo social, o pensar, o querer e o agir do conjunto dominam necessariamente os elementos que o constituem. Daí, a concentração de todos os valores na sociedade e de todo o vigor no seu órgão, o Estado, e a política do Estado sou eu, de Luís XIV e a do Tudo pelo Estado, Nada contra o Estado, Nada fora do Estado de Mussolini e seus imitadores. A coerência exige a negação dos direitos individuais e, quando isso não é possível, a visão vesga e a expressão oblíqua da «eminente dignidade da pessoa humana», porque só vale o que os indivíduos pensam ou realizam dentro dos quadros sociais, sob o comando do Estado. Como as peças de um relógio, os indivíduos só valem integrados no conjunto, e desintegrados perdem o valor e a significação.

Assim pensam os absolutistas de todos os tempos. Podem variar os dizeres, os fazeres, e os quadros sociais; porém, a unidade de inspiração ideológica conserva-se inalterável, revelando de per si só que no domínio puro das ideias, das essências donde brotam as realidades, não há progresso; há verdade, há erro, há probabilidade.

No pensar medieval, subtil e profundo, indivíduo é o termo derradeiro e íntimo do encadeamento dos seres. Quanto mais geral, tanto mais real, pensava-se, e o indivíduo, por natureza singular, é apenas a aparência das verdadeiras realidades. Pedro existe com seus cabelos pretos, sua tez morena, sua estatura média, etc., mas Pedro só vale como expressão da ideia de homem e a ideia de homem como expressão da ideia de humanidade. De sorte que o que é real em Pedro não é o seu ser físico, constituído por qualidades acidentais, mas o seu ser metafísico, isto é, aquelas coisas, como as ideias de homem (hominidade) e humanidade, que se conjugam num momento para darem existência a Pedro e persistem quando Pedro morre.


?>
Vamos corrigir esse problema