2. Com a razão nas mãos

Uma ideia, um ideal, um valor, como a Justiça, a Beleza, a Bondade, a Verdade e é óbvio que a ideia, o ideal e os valores não mudam. Permanecem inalteráveis em seu estático ser, são o alvo, a estação terminus, o porto de destino. As máximas Amai-vos uns aos outros, Não faças a outrem o que não queres que te façam, por exemplo, pairam sobre todas as épocas e são ecuménicas, isto é, servem para qualquer planeta e para qualquer tipo de homem; pelo contrário, o território próprio do progresso são as coisas que ocupam ou se pensam no espaço e se desenrolam no tempo. Por isso, o progresso é visível e quase sempre tangível, porque consiste, em geral, em fazer as coisas com crescente brevidade, grandeza, rapidez e perfeição, aproximando-se cada vez mais do respetivo ideal. Um automóvel e um comboio progridem quando as respetivas máquinas se dispõem por forma que se vença com mais rapidez, segurança e comodidade a distância, isto é, se aproximem das ideias de automóvel e de comboio, mas, na essência, as ideias de automóvel e de comboio não progridem, porque são o alvo, ideias puras, e as ideias puras possuem individualidade inconfundível e não conhecem as limitações do tempo e do espaço. A «Vénus de Milo», uma fuga de Bach, «Las Meninas» de Velásquez, alguns sonetos de Antero, uma ação justa, um ato de caridade, a igualdade dos ângulos do triângulo a dois retos, não progridem. São valores eternos e únicos. Não mudam, e permanecem como expressão plástica, concreta, de ideais.

De tão breves reflexões podemos destilar agora uma noção de progresso, dizendo que o progresso não reside nas coisas, mas no esforço humano para realizar os ideais e os valores. Os ideais e os valores permanecem estáticos, inalteráveis e impassíveis. Vivem como os deuses no Olimpo de Epicuro, e por isso quando alguém diz que avançou em seus ideais, se tornou progressivo, em rigor não progrediu, porque deu um salto de um ideal para outro e tomou bilhete para outra estação terminus. O que acontece é que os ideais são numerosos e diversos, e assim como o homem faz descobertas geográficas, botânicas arqueológicas, etc., isto é, de coisas que desconhecia e não havia visto, assim também faz descobertas no território dos ideais, arrancando-os à sua inerte e incorpórea jazida e insuflando-lhes o sopro vital do esforço humano.

Esta é a missão do artista, do sábio, do moralista e do político, e fazer e dar forma às inauditas descobertas é, algumas vezes, para os homens, progresso de consciência e de ação, e para os povos, era nova em sua história.

Da palinódia do progresso que temos entoado desprendem-se muitas coisas. Basta uma para fixar a nossa atenção, e essa é a de que cada ideal político tem sua essência única e eterna e não consente que o confundamos com o instrumental e os processos técnicos a que se recorre em cada época para se lhe insuflar vida. Os motores dos automóveis progridem, mas não progride a ideia de automóvel, que é singular e diversa da de carro de cavalos e de comboio, embora todas tenham de comum a função de transporte e a conquista da distância terrestre. Assim também, em sua essência pura, os ideais políticos não progridem; o que pode progredir é o esforço humano no sentido de os realizar, isto é, de recorrer a processos e instrumentos mais eficientes e dinâmicos.

Isto não quer dizer que todos os ideais são equivalentes. Não. Há entre eles uma hierarquia, e estabelecer a respetiva ordem, modelar a respetiva pirâmide em cujo vértice se coloca o valor supremo, donde tudo o mais procede, é o problema decisivo, e cuja resolução serve de porto de destino à nossa vida moral e civil.

O meu porto é a Democracia liberal.

Depois de tantos rodeios, tenho que dizer as razões. Vamos a isto, e preparemo-nos para a única política de estabilidade, de paz e de fruição moral digna do homem.

V

Teremos que deixar em pousio, durante muitas primaveras os tópicos substanciais do liberalismo?

Eis a pergunta que há duas décadas se diria inverosímil e hoje reprime o gesto magnífico de alguns semeadores de ideias e turva as expectativas de muitos progressistas confiantes.

Os expedientes políticos da Grande Guerra, o primitivismo da ação direta, a proletarização da classe média, a correlativa primazia da repartição sobre a produção das riquezas, o advento das massas no cenário político, com suas formações em cunha compacta, seus instintos em ebulição e suas apetências em delírio, a substituição do diálogo entre governantes e governados pelo monólogo de Damócles, evaporaram a consciência jurídica coletiva, que paulatinamente se formara durante o século XIX.

Daí, o adeus ao direito natural e aos direitos individuais, e porque a faina rude do pão quotidiano atirou para as silveiras o grão da crítica e o luxo das ideias, com veracidade ou fingimento, todos riem do tenor romântico, que chora sobre as ruínas de Palmira, e ninguém acredita na eficácia do gesto, modernista e cinematográfico, de retrotrair a película.

E com razão. A vida social não é feita, como as películas cinematográficas, de quadros inertes, a que se empreste movimento.

O que uma vez surgiu na cena da história jamais volta a repetir-se em condições idênticas e com o mesmo semblante e portanto, quer queiramos, quer não, temos que fazer as despedidas ao estilo liberal do século XIX. Despedida honrosa e agradecida, pelo menos, porque só umas exéquias soleníssimas, oficiadas pelo génio da acrobacia, celebrariam dignamente as suas dádivas incomparáveis. Esse liberalismo, feito de candura e de confiança mística no amanhã progressivo, já lá vai e não pode retornar porque o homem mudou de pele, os tempos são outros e os filósofos acenderam novas candeias para nos iluminarem a estrada da vida.

O liberalismo do século XIX foi a política da classe média, do pequeno burguês agricultor, comerciante ou industrial. Nessa era de pronunciamentos, de generais políticos e de governos instáveis, em que cada manhã o presidente do ministério, ao fazer a barba, via no espelho a efígie do seu adversário político, houve uma coisa sagrada e intangível: o respeito pela propriedade individual e pela atividade de cada um. Sacava-se sobre o futuro com absoluta confiança, o comerciante sabendo muito bem que ao cabo de umas dezenas de anos teria uma velhice independente e o pai de família dormindo descansado sobre os rendimentos do capital economizados. Absolutistas e constitucionais unanimemente fiavam a paz social do livre exercício da atividade e ninguém duvidava que do mecanismo da oferta e da procura dos produtos e do próprio trabalho não resultasse necessariamente a harmonia dos interesses, tanto para o produtor como para o consumidor.

Como é ingénua e profundamente significativa a estupefação de Alexandre Herculano, quando Oliveira Martins, em páginas de romântico discípulo de Proudhon, lhe põe diante dos olhos aquele diabólico juízo de que a liberdade económica é, afinal, a liberdade de morrer de fome!

Sob um Estado instável, governado pelo génio da acrobacia, uma sociedade estável; por isso, após 1834, todas as revoluções foram superficiais, alvejando apenas a posse do poder político, de todos os poderes da época o mais frágil e o menos mandão.


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Vamos corrigir esse problema